Segunda Leitura

Afinal, o concurso para juiz federal é difícil como dizem?

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26 de janeiro de 2025, 8h00

No último domingo, dia 19/1/2025, o TRF-3 aplicou a prova preambular do seu 21º concurso para o cargo de juiz federal substituto (acesse a prova aqui [1]). Esta prova selecionará os 300 candidatos [2] que prosseguirão para a segunda etapa do concurso.

Na coluna de hoje, você está convidado a passear pelo tema e a visitar o conteúdo da prova a partir da visão de alguém que dedicou toda uma vida profissional a este assunto.

Concursos pelo mundo

O concurso público é uma realidade mundial. O Reino Unido tem concursos [3], o Japão tem concursos [4], Portugal tem seus “procedimentos concursais” [5], inclusive para o ingresso na magistratura [6], além de muitos outros países e organismos internacionais.

No passado, sem dúvidas, a grande protagonista dessa cultura foi a China [7]:“Há registros das primeiras seleções de candidato por mérito sendo realizadas na China Antiga. As avaliações escritas datam da Dinastia Han (202 a.C. a 200 d.C), com a primeira “seleção” tendo ocorrido no ano 165 a.C. Os candidatos precisavam mostrar seu conhecimento das ideias do filósofo Confúcio e autores clássicos chineses” [8].

Atualmente, parece justo dizer que o título de potência mundial dos concursos públicos pertence ao Brasil, país que traz a exigência até no texto constitucional (artigo 37, II). Esta relevante disposição normativa impulsionou fortemente os concursos nas últimas décadas e conduziu o setor a um altíssimo grau de especialização, o que faz do Brasil um destaque não apenas pela quantidade de editais publicados ou de cargos à disposição, mas pelo elevado nível de sofisticação de seus concursos.

A divisão de elite dos concursos brasileiros

O Brasil tem concursos para inúmeros cargos: auxiliares gerais, professores, médicos, engenheiros e tantas outras profissões. Dentro deste ambiente, os concursos para as carreiras jurídicas pertencem a uma divisão de elite, ao lado dos concursos para as carreiras diplomáticas, cartórios, tribunais de contas e certos cargos no Legislativo.

As carreiras jurídicas englobam as defensorias e inúmeras procuradorias, mas o destaque especial costuma recair sobre os concursos para ingresso na magistratura e no Ministério Público.

Diversos indicadores evidenciam o protagonismo dos concursos da magistratura e do MP: o maior detalhamento na regulamentação das provas; a existência de um estatuto específico para a carreira; a oferta dos maiores salários; o expressivo número de interessados; e a própria complexidade do certame, que, no caso da magistratura, pode contar com até seis etapas: (1) prova preliminar no Enam, (2) prova objetiva do tribunal, (3) prova discursiva, (4) provas de sentença, (5) etapa documental e de investigação da vida pregressa e (6) prova oral. Um tropeço em qualquer dessas etapas significa a eliminação e a necessidade de retornar ao começo – exceto quanto à aprovação no Enam, que tem validade de até quatro anos [9].

A prova do TRF-3

Todos os 1.625 candidatos [10] que compareceram aos locais de prova no último domingo já haviam obtido a aprovação no ENAM em 2024 [11]. Portanto, esta prova do TRF-3 representou o segundo degrau rumo ao cargo de juiz federal. Trata-se de uma prova de múltipla escolha com 100 questões. O conteúdo foi assim dividido:

Bloco 1 (35 questões) – Direito Constitucional, Direito Previdenciário, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Econômico e de Proteção ao Consumidor;

Bloco 2 (35 questões) – Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Empresarial, Direito Financeiro e Direito Tributário;

Bloco 3 (30 questões) – Direito Administrativo, Direito Internacional Público e Privado, Noções Gerais de Direito, Formação Humanística e Direitos Humanos.

Alguns dos temas cobrados

Nos próximos parágrafos, você encontrará uma síntese temática da prova. A descrição não é exaustiva, mas reflete os assuntos mais evidentes ao longo do exame, agrupados por matéria:

Direito Constitucional: controle de constitucionalidade, competências, ilícitos internacionais, direitos individuais, direitos sociais, responsabilidade civil, administração pública, servidores públicos, concurso público, Poder Judiciário, processo legislativo, direito à educação e direito indígena.

Direito Previdenciário: princípios, categorias de segurados, condição de dependente, perda da qualidade de segurado, carência, aposentadoria especial, aposentadoria por tempo de contribuição, auxílio-doença, salário-maternidade, pensão por morte, prescrição, decadência, benefícios assistenciais e judicialização da saúde.

Direito Penal e Processual Penal: juízo de tipicidade, prescrição, regime disciplinar diferenciado, medidas não privativas de liberdade, crimes contra a administração pública, dosimetria da pena, convenções internacionais, juiz das garantias, competência, infiltração de agentes, ação controlada, interceptação telefônica, lavagem de capitais, provas digitais, prisão preventiva, prisão temporária, acordo de não persecução penal e destinação de bens apreendidos.

Direito Econômico e do Consumidor: Conselho Administrativo de Defesa Econômica, acordo de leniência, cooperação entre órgãos de defesa da concorrência, agências reguladoras e crimes contra a ordem econômica.

Direito Civil e Processual Civil: capacidade civil, ausência, morte presumida, responsabilidade civil, remissão, compensação, transação, novação, condição suspensiva, vícios construtivos, mandato, suspeição, impedimento, incompetência, nulidades, litisconsórcio, impenhorabilidade, remessa necessária, contestação, coisa julgada, cumprimento de sentença, tutela de urgência, recursos, mandado de segurança, financiamento estudantil e financiamento imobiliário.

Direito Empresarial: teoria geral da empresa, Direito Societário, subvenções, títulos de crédito, registro público de empresas, propriedade industrial, marcas, patentes e cooperativas.

Direito Financeiro e Tributário: interpretação da lei tributária, princípio da legalidade, sujeição passiva, multas, imunidades, reforma tributária, incentivos fiscais regionais, responsabilidade tributária, dissolução irregular da pessoa jurídica, redirecionamento da execução fiscal, causas de extinção do crédito tributário, lançamento, lei de execuções fiscais, aforamento, taxa de ocupação, laudêmio, receitas públicas, prescrição e decadência.

Direito Administrativo: contencioso administrativo, nulidades, consulta pública, acesso à informação, agências reguladoras (ANTT, Anvisa, ANP), Análise de Impacto Regulatório, administração pública indireta, organizações da sociedade civil, concessões, regime tarifário, contratos públicos, equilíbrio econômico-financeiro, desapropriação e regime jurídico do servidor federal.

Direito Ambiental: litígios climáticos, mudanças climáticas, concessões florestais, princípio da precaução, lei da biodiversidade, política nacional de educação ambiental, política nacional de defesa civil, serviços ambientais, comunidades tradicionais, mineração, segurança de barragens, e política nacional de recursos hídricos.

Direito Internacional: aplicação da lei no espaço, domicílio, casamento, execução de sentença estrangeira, competência, tratados internacionais, competência consultiva, autoridade central, cooperação internacional, adoção internacional e extradição.

Formação Humanística e Direitos Humanos: positivismo jurídico kelseniano, ética na magistratura, ouvidorias, competências do CNJ, Corte Interamericana, pactos internacionais, competência consultiva, competência contenciosa, justiciabilidade dos direitos humanos, Tribunal de Nuremberg, Tribunal Penal Internacional, direito ao desenvolvimento, políticas afirmativas, sistema de quotas, empresas transnacionais e lei brasileira de inclusão.

A visão do candidato

A extensão da prova impressiona. O caderno tem 28 páginas, isso porque o texto foi apresentado em duas colunas. Sob formatação básica (fonte Arial, tamanho 11, espaçamento simples), o mesmo texto rende um documento de 36 páginas.

Charles Giacomini, juiz federal

O desafio não é pequeno, pois o tempo máximo de prova é de 5 horas, ou seja: são 300 minutos para o enfrentamento de 100 questões. Porém, é preciso reservar alguns minutos para o preenchimento do cartão-resposta, o que reduz o tempo líquido de prova para aproximadamente 280 minutos. Cada questão possui cinco alternativas, totalizando 500 itens a serem lidos e julgados nos 280 minutos da prova. Isso resulta no tempo médio de 35 segundos por assertiva. Se o candidato reservar também alguns minutos para se alimentar ou usar o toalete, então terá o tempo médio de cerca 30 segundos para ler, raciocinar e superar cada parágrafo da prova. Fazer isso de maneira exitosa, alcançando 70 a 80% de acertos, exige algum profissionalismo.

Um teste rápido

Marque 30 segundos no seu relógio e tente julgar a primeira assertiva da questão nº 1, de Direito Constitucional, que teve o singelo enunciado “assinale a alternativa correta”: A) Conforme o Tema 1120/STF, em respeito à separação dos poderes, prevista no art. 2º da Constituição Federal, o Poder Judiciário não pode exercer o controle de constitucionalidade em relação à interpretação do sentido e do alcance de preceitos meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis.

Diga nos comentários como foi a sua experiência.

A propósito: de acordo com o gabarito preliminar (antes do julgamento dos recursos), a assertiva acima transcrita está incorreta.

Algumas estatísticas

Uma análise preliminar da prova permite encontrar alguns indicadores aproximados. Confira:

“Lei seca”: o conhecimento quase literal de textos legais foi cobrado, direta ou indiretamente, em cerca de 60% das questões, pelo menos em alguma alternativa.

Jurisprudência: cerca de 25% das questões da prova exigiram, direta ou indiretamente, o conhecimento da jurisprudência predominante do STF ou do STJ.

Simulação de casos concretos: nesta prova, pouquíssimas questões foram estruturadas sob a forma de problemas hipotéticos. Mais de 90% da prova observou o modelo de enunciado conciso e neutro (“assinale a alternativa correta”). Neste formato, a questão traz alternativas independentes, cujos temas não guardam necessária relação direta entre si.

Curiosidade

A maior questão da prova foi a de número 53: um verdadeiro tijolo-de-concurso. Seu assunto foi o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). O texto da questão, que ocupou duas páginas, tem 4.546 caracteres (o que corresponde à metade desta coluna). A maioria dos candidatos perde valiosos minutos em questões com essa extensão, o que, muitas vezes, acaba comprometendo a adequada conclusão da prova.

De acordo com a nossa experiência (foram 77 concursos prestados ao longo da vida), o conhecimento técnico não é o único aspecto avaliado no atual modelo de concursos; a capacidade de responder com agilidade, sob a forte pressão do relógio, é uma das principais habilidades esperadas do candidato.

Conclusão

O concurso para juiz federal continua sendo um dos mais difíceis do país. Para alguns, é o próprio “Monte Everest” dos concursos. A dificuldade está presente em todas as etapas do certame: primeiro, exige-se a capacidade de julgar 500 itens em velocidade supersônica; depois, exige-se uma excelente redação em provas manuscritas; por fim, exige-se capacidade oratória e muita confiança para encarar uma banca de experientes desembargadores e advogados que, por uma ou duas horas, irão colocar à prova o conhecimento técnico e a estabilidade emocional do candidato.

O tempo de caminhada desde a “decisão de se tornar juiz” até a posse no respectivo cargo varia de acordo com cada pessoa, mas costuma ficar entre cinco a dez anos de preparação específica. São frequentes os relatos de pessoas que realizaram dezenas de tentativas antes de obter sucesso. Fica claro que se trata de um propósito de longo prazo, que requer muita determinação e dedicação.

 


[1] https://conhecimento.fgv.br/concursos/trf3juiz

[2] Conforme o art. 44 da Res. nº 75/2009, do CNJ, somente serão aprovados para a segunda etapa do concurso os candidatos da ampla concorrência que obtiverem as 300 melhores notas. Os demais, mesmo tendo alcançado a nota mínima exigida (6,0 ou 60%), são eliminados.

[3] https://www.civilservicejobs.service.gov.uk/csr/index.cgi

[4] “Em 2017, foram aproximadamente 22 mil aprovados nos 4 concursos públicos do governo central”. Disponível em: https://burajiruhounokai.wordpress.com/2018/10/04/principais-caracteristicas-do-funcionalismo-publico-no-japao/

[5] https://www.bep.gov.pt/

[6] https://cej.justica.gov.pt/Ingresso/Ingresso-nas-magistraturas

[7] https://repositorio.enap.gov.br/jspui/bitstream/1/1834/1/124-404-1-PB.pdf

[8] https://ibrachina.com.br/invencoes-chinesas-concurso-publico/

[9] Artigo 4º-A, §7º, da Resolução nº 75 do CNJ.

[10] Este número é bem inferior ao observado no concurso anterior, que contou com mais de 13 mil inscritos, o que se deve à recente exigência de aprovação no Enam como pré-requisito para a inscrição no concurso. (https://web.trf3.jus.br/noticias-sjsp/Noticiar/ExibirNoticia/1334-trf3-empossa-juizes-federais-substitutos-aprovados)

[11] Para compreender melhor o Enam, acesse: https://www.conjur.com.br/2025-jan-05/um-balanco-do-primeiro-ano-do-exame-nacional-da-magistratura/

Autores

  • é juiz federal em Florianópolis, mestre em Ciência Jurídica, especialista em Direito Público, professor em Escolas da magistratura e cursos preparatórios. Foi aprovado em três concursos para a magistratura (TRF-4, TJ-RS, TJ-MS).

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