Licitações e Contratos

Prioridade judicial em licitações: ainda em busca da eficiência

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  • é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

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25 de janeiro de 2025, 18h30

I – Introdução: o marco legal da prioridade processual

A Lei nº 14.133/2021 estabeleceu um marco no ordenamento jurídico ao inserir, no inciso IV do artigo 1.048 do Código de Processo Civil, a prioridade de tramitação para processos judiciais relacionados a licitações. Em artigo anterior, na revista eletrônica Consultor Jurídico (“A Lei 14.133/2021 e a prioridade judicial das licitações”https://www.conjur.com.br/2021-mai-07/licitacoes-contratos-lei-141332021-prioridade-judicial-licitacoes) este autor tratou da inovação legislativa, mas os obstáculos práticos persistem na sua efetiva implementação no cotidiano forense.

Cabe lembrar que o princípio da duração razoável do processo, consagrado no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, adquire contornos específicos e urgentes em matéria licitatória e contratual, quando conjugado com o princípio da eficiência administrativa, previsto no caput do artigo 37 da Carta Magna. Esta conjugação principiológica demanda especial celeridade nos processos que envolvem contratações públicas, considerando sua natureza instrumental para a consecução das finalidades estatais e a imperatividade do interesse público que as norteia.

II – Da evolução normativa e da realidade prática

A ampliação do escopo da tramitação prioritária, anteriormente circunscrita ao mandado de segurança conforme disposição do artigo 7º, §4º, da Lei nº 12.016/2009, representa significativo avanço. A expansão normativa demonstra o reconhecimento pelo legislador da necessidade premente de tratamento diferenciado para as demandas que envolvem o interesse público primário manifestado nas contratações administrativas.

A nova sistemática processual, contudo, ainda está em descompasso com a realidade forense. O Poder Judiciário brasileiro acumula expressivo volume de processos relativos a licitações e contratos anteriores à Lei nº 14.133/2021, muitos com mais de uma década de tramitação, em prejuízo da garantia constitucional da duração razoável do processo, da eficiência e da efetividade da jurisdição em matéria de contratações públicas.

III – Do diagnóstico sistêmico

A análise empírica do cenário atual revela um padrão alarmante de morosidade processual em matéria licitatória. Verifica-se com preocupante frequência a existência de liminares pendentes de apreciação por excessivo lapso de tempo, até ocorrer a inutilidade prática. Por exemplo, existem agravos de instrumentos em busca de liminares há 8 anos, bem como sentenças aguardadas há 10 anos. Quando finalmente proferidas, estas decisões perdem total utilidade prática, pela modificação substancial da situação fática ou pela satisfação da necessidade administrativa por vias alternativas, até mais onerosas e menos eficientes.

Jonas Lima Tarja

A temporalidade própria das licitações exige compreensão diferenciada por parte do Poder Judiciário. O travamento de um pregão por questões judiciais frequentemente obriga a Administração a recorrer a contratações emergenciais ou soluções alternativas que, em parte dos casos, mostram-se não vantajosas. A situação mostra-se particularmente crítica em áreas sensíveis como saúde e segurança pública e outras que não podem aguardar, nas quais a continuidade dos serviços é imperativa e sua interrupção pode acarretar danos irreparáveis à população.

IV – Da análise de casos paradigmáticos

Abuso do direito de ação, descaso administrativo e inefetividade judicial

Caso emblemático que merece análise aprofundada refere-se a determinada empresa que impetrou mandado de segurança após deliberadamente não participar da licitação. A impetrante, além de indicar autoridade impetrada ilegítima, não possuía expertise no ramo do objeto licitado e o alegado direito era flagrante contra a jurisprudência reiterada do Superior Tribunal de Justiça, tendo a empresa, ainda, ocultado do juiz peças essenciais do processo administrativo.

O órgão público, por sua procuradoria, além de ter aguardado bastante tempo para reagir em defesa do que seria o correto, acabou chegando aos autos com petição de uma página apenas encaminhando ao juiz “informações” que a autoridade condutora da licitação, que não possuía formação em direito, fez constar em sua visão, de modo que não houve uma atuação de advocacia pública em face de aspectos processuais e questões legais de uma significativa relevância.

O juiz, de outro lado, desconsiderando a necessária análise dos pressupostos processuais e das condições da ação, inclusive, não se atentando que a autoridade estava errada e que a empresa escolheu nem mesmo participar da licitação, concedeu liminar que paralisou o contrato administrativo por 10 meses. Por fim, esqueceu de ordenar prontamente que o licitante vencedor fosse chamado a figurar como litisconsorte passivo necessário.

Disso, quando as situações avançaram, não havia mais utilidade ou como “salvar” o caso, porque a demanda precisou ser atendida emergencialmente e não houve sequer tampo hábil de prorrogação do contrato de origem.

Superficialidade de decisão judicial e seus danosos reflexos sistêmicos

Outro caso paradigmático evidencia a superficialidade decisória em matéria licitatória. Na situação, o magistrado, ao analisar petição inicial da ação, que apontava 5 ilegalidades em certa licitação, apenas colou apenas duas afirmações da autoridade no pregão, nada comentou dos fundamentos da petição da ação e ainda se limitou 2 assuntos periféricos e não do cerne da discussão da ação, isso em decisão de meia página. Este proceder, com grave falta de fundamentação, é inadmissível diante do artigo 93, IX, da Constituição Federal e do artigo 489, §1º, do Código de Processo Civil e contribui para a multiplicação recursal e o prolongamento da indefinição jurídica.

A prática demonstra que decisões desta natureza frequentemente resultam em sucessivos recursos que poderiam ser evitados caso houvesse análise adequada, responsável e completa das questões suscitadas desde o primeiro momento. O ciclo vicioso que se estabelece contribui para o congestionamento das instâncias recursais e para a perpetuação da insegurança jurídica no âmbito das contratações públicas.

V – Das pertinentes reflexões sobre patologias identificadas

Da conduta dos atores processuais

A análise da atuação dos diversos atores processuais revela padrões preocupantes que aumentam a morosidade e a inefetividade da prestação jurisdicional em matéria licitatória.

Certos licitantes adotam condutas que caracterizam litigância de má-fé, como a dedução de pretensão contra texto expresso de lei ou fato incontroverso, alteração da verdade dos fatos e o uso do processo para conseguir objetivo ilegal. De outro lado, alguns agentes da administração pública, vendo a maioria dos processos como ações de pessoas “inimigas” (isso não deveria ocorrer), apresentam respostas ao juiz sem um crivo de análise jurídica e ocultando informações, como se o objetivo fosse defender atos administrativos a qualquer custo, mesmo com a ciência de que erros ocorreram na licitação, inclusive, fazendo chegar ao juiz apenas um conjunto fragmentado, seletivo, de alguns documentos, o que viola o dever de cooperação processual, estabelecido no artigo 6º do Código de Processo Civil: “  Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”. Por fim, o juiz que passa pelo caso sem sequer atentar ao que estava no conjunto das petições e das provas e decide de modo raso, com colagens simples de frases e sem conexão com o que realmente está no processo, prejudica também o interesse público, porque se fizesse algo correto poderia, inclusive, de logo, estancar eventuais recursos infundados que vão quase perpetuar aquele processo.

Dos reflexos sistêmicos da morosidade

As consequências da morosidade processual em matéria licitatória transcendem a esfera individual dos processos, afetando todo o sistema de contratações públicas. O cenário de insegurança jurídica resultante desestimula a participação de licitantes idôneos, compromete a eficiência das contratações públicas e gera prejuízos significativos ao erário através da perpetuação de contratações emergenciais.

A paralisação de serviços essenciais e o comprometimento de políticas públicas em áreas sensíveis são consequências diretas da inefetividade da prestação jurisdicional em matéria licitatória. O impacto social desta situação é especialmente grave quando considerada a natureza dos serviços públicos afetados, que frequentemente envolvem necessidades básicas da população. O direito sempre deve ser resguardado, mas não o abuso de ação.

VI – Da necessidade de efetivação da prioridade judicial

A efetivação da prioridade legal estabelecida pela Lei nº 14.133/2021 demanda uma transformação profunda no tratamento processual das questões licitatórias. Esta mudança deve ser pautada pelo comprometimento institucional dos tribunais e pela implementação de medidas concretas que assegurem a celeridade e efetividade da prestação jurisdicional.

Mostra-se necessária a implementação de um monitoramento processual específico para demandas licitatórias, com vigilância sobre prazos máximos para apreciação de medidas urgentes e desenvolvimento de protocolos de análise adequados à matéria. A capacitação específica de magistrados e servidores para lidar com peculiaridades do direito licitatório é medida que se impõe, assim como o desenvolvimento de mecanismos eficazes para a identificação e a sanção de condutas protelatórias.

VII – Conclusão

A superação do atual cenário de morosidade e inefetividade na prestação jurisdicional em matéria licitatória depende do engajamento coordenado de todos os atores processuais. A prioridade estabelecida pela Lei nº 14.133/2021 representa importante avanço normativo, mas sua efetivação prática demanda mudança cultural profunda no tratamento processual das questões licitatórias e contratuais.

Autores

  • é advogado, sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia, ex-assessor da Presidência da República, especialista em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e autor de cinco livros, incluindo "Licitação Pública Internacional no Brasil".

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