Termo inicial da prescrição nas ações de consumo sobre contratos de mútuo quitados em parcelas
24 de janeiro de 2025, 17h16
De acordo com o entendimento dominante do Superior Tribunal de Justiça, em se tratando de pretensão de repetição de indébito decorrente de descontos indevidos por falta de contratação de empréstimo com a instituição financeira, aplica-se o prazo prescricional do artigo 27 do CDC [1], cujo termo inicial seria a data do último desconto realizado no benefício previdenciário.
Trata-se de posicionamento firmado em 2017 e que, desde então, tem sido reiteradamente aplicado pelo STJ [2], embora não haja precedente vinculante sobre a matéria.
Sem dúvida, o entendimento dominante e atual do STJ tem como objetivo proteger as instituições financeiras dos abusos dos mutuários que buscavam alongar excessivamente o termo inicial do prazo prescricional a partir de uma visão subjetivista da actio nata. Os mutuários defendiam que o termo inicial do prazo prescricional deveria ser a data que tiveram conhecimento da lesão, com a obtenção de extratos do benefício previdenciário.
Nesse sentido, a escolha — pelo STJ — da data da quitação do contrato de mútuo pelo mutuário (actio nata objetiva baseada na data do último pagamento) permitiu, naquele momento histórico, a fixação de um marco temporal seguro para a dedução das pretensões relativas ao contrato. Repise-se que a outra “opção” que se desenhava anteriormente (actio nata subjetiva baseada na ciência inequívoca do mutuário a partir da data do extrato obtido na agência do INSS) era de extrema insegurança, uma vez que as instituições financeiras poderiam ser acionadas décadas depois do encerramento daquelas relações jurídicas, onerando seu dever de guarda e gestão de documentos, dados e informações.
Ou seja, a ideia foi trazer o marco inicial do prazo prescricional para dentro de rédeas seguras e objetivamente controláveis (data do último pagamento), não se permitindo que o prazo prescricional fosse alongado em demasia ao talante exclusivo do mutuário. Portanto, o objetivo, à época, era impedir abusos processuais de mutuários e uma espécie de litigância abusiva (mais rudimentar e menos sofisticada do que aquela que vivenciamos hoje).
Mudança de entendimento
Todavia, as condições em que a jurisprudência dominante se consolidou, associadas às mais recentes alterações sociais e culturais justificam a necessidade de superação do entendimento até aqui firmado, adotando-se outro termo inicial do prazo prescricional que efetivamente esteja em conformidade com a regra do artigo 27 do CDC, mais consentâneo à realidade social atual.
Como se sabe, a superação de um entendimento dominante não deve acontecer sem que haja motivos relevantes. Como bem assinala a doutrina, “o dever de estabilidade jurisprudencial, mesmo quando observado com rigor, não obsta a ocorrência de câmbios jurisprudenciais”. Isso porque, “por mais que o tribunal adote cautelas para evitar a pura e simples oscilação de orientações, haverá casos em que será imprescindível que se modifique um entendimento antes adotado, por força de alterações no contexto político ou sociocultural” [3].
Nesse contexto, a principal modificação que justifica a superação do entendimento atualmente em vigor no âmbito do STJ é de índole social e cultural.
Há anos, o controle — por parte do mutuário — sobre a existência de contratos de empréstimo consignado era particularmente mais complexo porque dependia de seu comparecimento físico às agências do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para a obtenção de extratos impressos do benefício previdenciário ou do recebimento desses extratos em sua residência pelo serviço de correios, por exemplo.
Dados previdenciários online
Atualmente, a grande maioria da população brasileira reúne condições de acessar dados relativos aos seus benefícios previdenciários de forma online. Dados do CGI.br/NIC.br e do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) apontam que 84,1% dos domicílios brasileiros possuem acesso à internet [4].
Nessa condição, os segurados podem ter livre acesso ao Instituto Nacional do Seguro Social, seja pelo seu website, seja pelo aplicativo Meu INSS. Esse tipo de acesso, imediato e em tempo real, permite a verificação instantânea de qualquer espécie de anomalia, contratação de crédito consignado sem autorização, débito indevido ou transações deste gênero, tudo em questão de segundos. Sem dúvida, as inovações tecnológicas exigem que antigos problemas sejam vistos sob novas lentes [5].
Sob outro prisma, não há dúvidas de que o atual entendimento do STJ, ainda que criado para combater uma forma específica de abuso processual, não se amolda corretamente à teoria de actio nata, seja sob o enfoque objetivo (a prescrição se inicia no exato momento em que ocorre a violação do direito, sendo irrelevante a ciência, ou não, pelo titular [6]), seja sob a ótica subjetiva (não basta a ocorrência da violação, devendo haver, ainda, a ciência por seu titular [7]) [8].
Sob a ótica objetiva (ocorrência da lesão), não há absolutamente nenhuma correspondência entre a data do pagamento (quitação do contrato) e a data da alegada lesão ao direito do mutuário. Nessa espécie de negócio jurídico, poder-se-ia considerar existente a lesão ao mutuário apenas em dois diferentes momentos: por ocasião da averbação da margem [9] ou por força da formalização do contrato.
Quanto à ótica subjetiva (justamente aquela adotada pelo artigo 27 do CDC), também não há absolutamente nenhuma correspondência entre a data do pagamento (quitação do contrato) e a data da alegada ciência da lesão pelo mutuário. Isso porque, nessa espécie de negócio jurídico, pode-se considerar que a ciência da lesão ao direito pelo mutuário poderia ocorrer em dois diferentes momentos: por ocasião do saque dos valores pelo mutuário ou por força do primeiro desconto, isto é, do primeiro pagamento realizado mediante desconto no contracheque ou débito em conta do mutuário.
Prazo prescricional ultrapassado
Note-se que o atual entendimento do STJ permite que o maior prazo prescricional existente no ordenamento jurídico, que é decenal (artigo 205 do CC), seja ultrapassado. Esse entendimento também supera, com ainda mais folga, o prazo prescricional efetivamente aplicável à espécie, que é quinquenal (artigo 27 do CDC).
Convenhamos, não é minimamente crível que o mutuário quite dezenas de parcelas de um empréstimo consignado e, somente então, perceba que aqueles débitos seriam indevidos ou incorretos. A negligência e o abandono do mutuário não podem contar com a complacência do Poder Judiciário.
Sob outro enfoque, essa possibilidade de alongamento do termo inicial do prazo prescricional contribui para a chamada litigância abusiva (Recomendação 159/2024 [10]).
Trata-se de tema da mais alta relevância social, econômica, política e jurídica e que, inclusive, está afetado para a Corte Especial do STJ para julgamento sob o rito dos repetitivos (Tema 1198/STJ, originado do IRDR 16 do TJ/MS). O que se pretende definir é se o juiz pode “vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários”.
Essa afetação demonstra a preocupação do STJ em relação aos abusos e às fraudes que têm sido constatadas, com bastante frequência, em processos judiciais.
Litigância abusiva
Em linhas gerais, a litigância abusiva está assentada e organizada a partir de determinados pilares. Um deles, indiscutivelmente, é o tempo. Por razões um tanto óbvias, quanto mais distante no tempo for a pretensão deduzida em relação aos fatos que lhe servem de base, maior será a chance de êxito de quem envereda pelo caminho da fraude e do abuso.
Especificamente no caso das instituições financeiras, a gestão de contratos de financiamento é sempre um desafio. São milhares de contratos que envolvem bilhões de reais geridos por centenas de pessoas que operam múltiplos sistemas e bases de dados internas ou conectadas a diversos órgãos ou entidades responsáveis por atendimentos, liberações, aprovações e afins.
O tempo é um grande aliado do fraudador porque dificulta a reconstrução dos fatos, diminui a possibilidade de recuperação das memórias e impede a rastreabilidade dos dados e das informações necessárias a recontar a história como de fato ela ocorreu.
Nesse contexto, imagine-se, por exemplo, um prazo prescricional quinquenal que somente se inicie a partir da data do último pagamento de contratos de crédito consignado cujas quitações ocorrerão em 72 meses. Isso permitirá que os litigantes abusivos ajuízem as demandas apenas próximo do 11º ano contado das celebrações dos respectivos negócios jurídicos, apostando na impossibilidade de a instituição financeira reconstruir adequadamente todos os detalhes da relação jurídica, valendo-se, ademais, de atualização monetária sobre os valores pleiteados na ação judicial cujos índices superam, em muito, aos de uma poupança.
Perceba-se que o financiamento em seis anos ou 72 meses sequer é dos maiores que se encontram no mercado financeiro. Há contratos de mútuo com prazos ainda maiores. Logo, se mantido o entendimento atualmente em vigor, os litigantes abusivos podem ter 15 ou 20 anos para propor as suas demandas, o que fere completamente a razoabilidade (artigo 8º do CPC).
Inversão de ônus da prova
Antes de finalizar, é importante considerar ainda um outro elemento nesta equação. Em se tratando de ações de consumo, usualmente haverá a inversão do ônus da prova, cabendo à instituição financeira o encargo de reconstruir os fatos relevantes da causa mais de uma década depois de sua ocorrência. Não é exagero afirmar que o alongamento do prazo prescricional, além de contribuir decisivamente para o sucesso da litigância abusiva, gera um evidente desequilíbrio de forças no âmbito processo capaz de violar o princípio da isonomia (artigo 7º do CPC).
Dessa forma, a superação do entendimento atualmente em vigor no STJ é fundamental para evitar que a prescrição sirva de instrumento de manipulação e de abuso, sobretudo nas hipóteses de contratos de mútuo [11] que perduram por anos e décadas. Sugere-se, nesse sentido, a afetação do tema à Segunda Seção do STJ, a fim de que a matéria possa ser revisitada, proferindo-se precedente vinculante, capaz de conferir maior segurança jurídica e desidratar eventuais tentativas de litigância abusiva.
[1] Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.
[2] AgInt no AREsp 1.056.534/MS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 03/05/2017; AgInt no AREsp 1.078.294/MS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 01/08/2017; AgInt no AREsp 1.130.505/MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe 13/11/2017; AgInt no AREsp 1.319.078/MS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 09/11/2018; AgInt no AREsp 1.478.001/MS, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 21/08/2019; AgInt no AREsp 1.448.283/MS, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 28/08/2019; AgInt no REsp 1.799.042/MS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 24/09/2019; AgInt no AREsp 1.423.670/MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 02/08/2019; AgInt no AREsp 1.372.834/MS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 29/03/2019; AgInt no AREsp 1.407.692/MS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 02/05/2019; AgInt no AREsp 1.367.313/MS, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 28/05/2019; AgInt no AREsp 1.423.670/MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 02/08/2019; AgInt no AREsp 1.658.793/MS, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 04/06/2020; AgInt no AREsp 1.720.909/MS, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 24/11/2020; AgInt no AREsp 1.728.230/MS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe 15/03/2021.
[3] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 20. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 753.
[4] Pesquisa TIC Domicílios 2023 disponível em https://data.cetic.br/explore/?pesquisa_id=1&unidade=Domic%C3%ADlios. Acesso realizado em 13.01.2025.
[5] A revolução tecnológica permite que, em alguns cliques e em alguns segundos, o mutuário identifique o motivo pelo qual o seu benefício previdenciário foi creditado em valor supostamente menor, a origem do débito e o autor deste débito.
[6] CORREIA, Atalá. Prescrição: entre passado e futuro. São Paulo: Almedina, 2021. p. 165.
[7] LEAL, Antonio Luiz da Câmara. Da prescrição e da decadência: teoria geral do direito civil. São Paulo: Saraiva, 1939. p. 33/35.
[8] No Brasil, após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, compreende-se ter sido adotada, como regra, a teoria da actio nata em sua vertente objetiva, ressalvada a existência de regras específicas em sentido oposto, adotando-se a actio nata subjetiva, como é o caso, justamente, do art. 27 do CDC. CÂMARA, Alexandre Freitas. Repensando a prescrição. 1. ed. Barueri: Atlas, 2023. pp. 137 e 166.
[9] Averbação da margem ou averbação do empréstimo consignado é o procedimento por meio do qual a liberação do crédito é autorizada pelo órgão responsável pela renda do mutuário, como, por exemplo, o INSS. Nessa fase, é avaliado, pelo INSS, se o mutuário possui margem consignável (isto é, se os seus rendimentos não estão comprometidos), se as condições são compatíveis com os normativos que regem a matéria e, portanto, se pode haver a contratação do empréstimo indicado pela instituição financeira. Trata-se de etapa sem a qual o contrato de mútuo via consignação de benefício previdenciário não se concretiza.
[10] Art. 1º, parágrafo único, da Recomendação 159/2024 do CNJ: “Para a caracterização do gênero “litigância abusiva”, devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras, as quais, conforme sua extensão e impactos, podem constituir litigância predatória”. Sobre o tema da litigância abusiva ou predatória, ver a entrevista do Professor Fredie Didier Jr., disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Vthbf0h2jZs&feature=youtu.be. Acesso em: 13.01.2025.
[11] Ainda que a partir de hipótese fática distinta, o STJ assinalou que o contrato de mútuo é uma obrigação única (pagamento do valor emprestado), que somente se desdobra em prestações repetidas para facilitar o adimplemento do devedor, o que descaracteriza a relação de trato sucessivo. AgInt no REsp 1.791.165/RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 19/11/2019; AgInt no AREsp 2.439.042/MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe 11/04/2024.
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