O impacto das redes sociais na formação da vontade política: um desafio à democracia
24 de janeiro de 2025, 9h14
A formação da vontade política em uma democracia é um processo coletivo fundamentado na interação entre diferentes atores sociais, mediados por veículos de comunicação que servem como canais para o debate público e a disseminação de informações. Tradicionalmente, a imprensa desempenhou um papel central na construção da opinião pública, contribuindo para o fortalecimento das instituições democráticas. Contudo, a ascensão das redes sociais como principal veículo de comunicação revolucionou esse panorama, gerando novos desafios para a integridade do processo político.
No Brasil, as plataformas da Meta (principalmente Facebook, Instagram e WhatsApp) têm uma penetração profunda na sociedade brasileira. A empresa controla ferramentas centrais de comunicação e informação para grande parte da população. Muitas pessoas, especialmente em regiões onde o acesso a fontes tradicionais de notícias é limitado, dependem quase exclusivamente dessas plataformas para obter informações, inclusive sobre política.
Segundo pesquisa do Senado e da Câmara dos Deputados, realizada em 2019, as redes sociais influenciam o voto de 45% da população. Quase metade dos entrevistados (45%) afirmou que decidiu o voto em período de eleições levando em consideração informações vistas em alguma rede social. As redes sociais mais citadas foram o Facebook (31%) e o WhatsApp (29%) [1].
Em 7 de janeiro de 2025, a Meta informou publicamente a decisão de encerrar a sua política de checagem independente de fatos. Mais do que isso – na contramão do movimento que vinha fazendo nos últimos anos – seus algoritmos voltarão a recomendar publicações sobre política para os usuários, mesmo que as postagens sejam de contas que eles não seguem [2].
O presente artigo examina como as redes sociais, ao ocuparem um papel central no debate público e na formação de opiniões políticas, podem gerar problemas significativos para o funcionamento da democracia. Nesse contexto, identifica os fatores que tornam as redes sociais suscetíveis à manipulação. Por fim, o texto busca explorar os impactos dessas dinâmicas não apenas no nível individual, mas também numa estrutura política e social mais ampla.
1. O papel das redes sociais e da imprensa tradicional na formação da vontade política
Historicamente, a imprensa tradicional foi a principal mediadora entre os acontecimentos políticos e o público. Guiada por princípios editoriais e éticos, como a verificação dos fatos e o compromisso com a imparcialidade, a imprensa contribuía para a formação de uma opinião pública informada. Ainda que sujeita a críticas quanto à concentração de poder informacional, a imprensa tradicional era limitada por legislações específicas, como leis de responsabilidade civil e penal, e por códigos de conduta profissional.
As redes sociais, todavia, trouxeram uma democratização do acesso à informação e ampliaram as possibilidades de participação política. Plataformas como Facebook e Instagram permitem que cidadãos comuns se tornem emissores de conteúdo, desafiando o monopólio da informação pela imprensa. No entanto, essa descentralização informacional é acompanhada por uma ausência de padrões éticos e regulatórios comparáveis aos aplicados à mídia tradicional.
Ao contrário da imprensa tradicional, que é juridicamente e moralmente vinculada a determinados padrões de responsabilidade, as redes sociais operam, em grande medida, sob uma lógica algorítmica que prioriza o engajamento ao invés da veracidade. Isso significa que conteúdos sensacionalistas ou polarizadores frequentemente têm maior alcance, promovendo uma “bolha informacional” onde indivíduos se expõem apenas a opiniões que reforçam suas crenças pré-existentes, comprometendo o debate público.
Demais disso, enquanto a imprensa tradicional está em regra sujeita a regulamentações nacionais, as redes sociais operam em um espaço transnacional, muitas vezes sem supervisão adequada. Isso dificulta a aplicação de normas e a responsabilização de conteúdos nocivos ou prejudiciais, criando um ambiente onde é mais difícil garantir a conformidade com padrões éticos e legais.
2. Fatores de manipulação da opinião pública nas redes sociais
O escândalo da Cambridge Analytica revelou ao mundo como a manipulação de dados eleitorais representa uma ameaça significativa à integridade democrática ao evidenciar o uso indevido de informações pessoais de milhões de usuários do Facebook para influenciar resultados eleitorais. A empresa utilizou algoritmos avançados para criar perfis psicológicos detalhados dos eleitores, direcionando campanhas personalizadas que exploravam vulnerabilidades emocionais e reforçavam discursos polarizadores [3].
Este caso ilustrou como a coleta e o tratamento inadequados de dados pessoais podem distorcer o debate público, comprometer a igualdade de condições entre candidatos e violar direitos fundamentais, como a privacidade e a liberdade de escolha [4]. O episódio gerou intensos debates sobre a necessidade de regulamentação mais rigorosa da proteção de dados, bem como sobre a responsabilidade de plataformas digitais e consultorias políticas em processos eleitorais [5].
Não bastasse a manipulação de dados, a disseminação de notícias falsas, conhecidas como fake news, constitui um dos principais mecanismos de manipulação informacional no ambiente digital. Estudos revelam que notícias falsas se espalham cerca de seis vezes mais rápido do que as verdadeiras, graças ao seu caráter sensacionalista, que naturalmente atrai mais atenção [6]. Esse processo não apenas compromete a qualidade da informação consumida, mas também intensifica a polarização no debate público, criando divisões profundas entre grupos sociais, que se tornam cada vez mais radicalizados e distantes dos fatos e da realidade.
Essa polarização é agravada pelos algoritmos das redes sociais, que personalizam o conteúdo exibido com base no comportamento online de cada usuário. Esse mecanismo dá origem às chamadas bolhas de filtro, nas quais as pessoas são expostas quase exclusivamente a informações que confirmam suas crenças pré-existentes, limitando a diversidade de pontos de vista [7].
Outros fatores que contribuem para a manipulação do debate público é o uso de Bots [8], trolls [9], e microtargeting [10] nas redes sociais. Bots podem replicar mensagens em massa, sugerindo que uma ideia tem mais apoio popular do que realmente possui. Trolls são usuários que atuam em conjunto para amplificar mensagens específicas e criar uma falsa sensação de consenso. Paralelamente, a prática de microtargeting aprofunda essas dinâmicas de manipulação ao direcionar mensagens políticas personalizadas a indivíduos ou grupos específicos [11] com base em dados pessoais, como preferências, comportamentos e características demográficas.
3. Consequências para a democracia
As redes sociais, ao permitirem a disseminação rápida de informações, têm desempenhado um papel crucial na transformação do debate público. Contudo, a desinformação e a polarização ideológica têm causado uma erosão significativa desse espaço. Discussões racionais e construtivas, que deveriam promover o intercâmbio de ideias e a busca por soluções coletivas, estão sendo substituídas por confrontos ideológicos que frequentemente carecem de embasamento factual.
A manipulação da opinião pública é outro fator que agrava esse cenário, afetando a confiança da sociedade em instituições fundamentais. A imprensa, o sistema eleitoral e o Judiciário, pilares da democracia, têm sua credibilidade abalada por campanhas que promovem desinformação e narrativas falsas. Quando os cidadãos deixam de confiar nessas estruturas, o tecido social e democrático se fragiliza, criando um ambiente de descrença generalizada que pode ser explorado para fins autoritários ou antidemocráticos [12].
Por fim, a falta de moderação efetiva nas plataformas digitais permite a amplificação de discursos de ódio e intolerância. A propagação de conteúdos que promovem discriminação, preconceito e violência exacerba tensões sociais e cria ambientes hostis, tanto online quanto offline. Sem mecanismos robustos para identificar e conter esses discursos, redes sociais tornam-se terreno fértil para a radicalização de grupos e o aprofundamento de conflitos.
4. Conclusão
Confiar a formação da opinião política de uma sociedade a empresas privadas cujo principal objetivo é o lucro revela uma ingenuidade preocupante, pois ignora os potenciais conflitos entre os interesses corporativos e os valores democráticos. Essas empresas, frequentemente baseadas em plataformas digitais, priorizam algoritmos que maximizam engajamento e receita publicitária, muitas vezes amplificando conteúdos polarizadores, sensacionalistas ou mesmo desinformativos, em detrimento de informações equilibradas e confiáveis.
Além disso, considerando que os detentores de tais plataformas exercerem controle significativo sobre o fluxo de informações, é de se esperar um ambiente suscetível à manipulação, onde os interesses comerciais tendem a sobrepor-se às necessidades da sociedade por um debate público saudável e imparcial. Tal cenário expõe a fragilidade de uma democracia que permite que atores privados, repita-se, motivados por ganhos financeiros, desempenhem um papel central na modelagem do discurso político e na formação da vontade coletiva.
A manipulação informacional no processo eleitoral brasileiro constitui uma ameaça à integridade democrática, exigindo uma abordagem abrangente para seu enfrentamento. Em primeiro lugar, é imprescindível o fortalecimento da legislação eleitoral vigente, ampliando mecanismos de responsabilização de indivíduos e entidades que promovam a disseminação de desinformação. A modernização do Código Eleitoral e a criação de normas específicas para regulamentar a atuação de plataformas digitais devem ser prioridades legislativas.
Outra medida essencial é a promoção da educação midiática e digital entre os eleitores. Campanhas institucionais devem ser conduzidas de forma contínua, especialmente em períodos pré-eleitorais, com o objetivo de conscientizar os cidadãos e capacitá-los a identificar conteúdos falsos ou enganosos. Tal iniciativa deve envolver não apenas órgãos públicos, mas também organizações da sociedade civil, criando uma abordagem integrada para a formação de uma sociedade mais crítica e resiliente a influências manipuladoras.
Por fim, é indispensável assegurar a transparência no uso de ferramentas digitais por candidatos e partidos políticos, com a obrigatoriedade de prestação de contas detalhada sobre gastos com publicidade online, uso de dados pessoais e estratégias de comunicação. A implementação de auditorias independentes constitui uma salvaguarda essencial para impedir o uso abusivo de tecnologias que comprometam a equidade e a legitimidade do processo eleitoral. Somente por meio de um esforço coordenado será possível enfrentar de maneira eficaz os desafios impostos pela manipulação informacional no cenário eleitoral brasileiro.
[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/625052-redes-sociais-influenciam-voto-de-45-da-populacao-segundo-pesquisa-do-senado-e-da-camara/; Acesso em 18 de janeiro de 2025.
[2] Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2025/01/12/quais-mudancas-na-meta-ja-valem-para-o-brasil-entenda-em-5-pontos.ghtml; Acesso em 17 de janeiro de 2025.
[3] UR REHMAN, I. (2019). Facebook-Cambridge Analytica data harvesting: What you need to know. Library Philosophy and Practice, pp. 1-11.
[4] Sobre o tema vide DE OLIVEIRA, Luciana Carneiro. Democracia hackeada: o uso de dados pessoais em campanhas eleitorais e as garantias previstas nos regulamentos gerais de proteção de dados pessoais, 2023.
[5] No Brasil, o Facebook foi condenado no valor de R$ 6,6 milhões devido ao vazamento de dados de 443 mil brasileiros. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/facebook-e-condenado-a-pagar-r-6-6-mi-por-vazar-dados-de-usuarios; Acesso em 18 de janeiro de 2025.
[6] VOSOUGHI, S., ROY, D., & ARAL, S. (2018). The spread of true and false news online. Science, 359(6380), pp. 1146-1151.
[7] EADY, G., NAGLER, J., GUESS, A., ZILINSKY, J., & TUCKER, J. A. (2019). How many people live in political bubbles on social media? Evidence from linked survey and Twitter data. Sage Open, 9(1), p. 2.
[8] KELLER, T. R., & KLINGER, U. (2019). Social bots in election campaigns: Theoretical, empirical, and methodological implications. Political Communication, 36(1), pp. 171-189.
[9] BULUT, E., & YÖRÜK, E. (2017). Mediatized populisms| digital populism: Trolls and political polarization of Twitter in Turkey. International Journal of Communication, 11, p. 25.
[10] ZUIDERVEEN BORGESIUS, F., MÖLLER, J., KRUIKEMEIER, S., Ó FATHAIGH, R., IRION, K., DOBBER, T., BALAZS. B. & DE VREESE, C. H. (2018). Online political microtargeting: Promises and threats for democracy. Utrecht Law Review, 14(1), pp. 82-96.
[11] WAGNER, A. (2022). Tolerating the trolls? Gendered perceptions of online harassment of politicians in Canada. Feminist Media Studies, 22(1), pp. 32-47.
[12] LEVITSKY, S., & ZIBLATT, D. (2024). How democracies die. Routledge, pp. 73-80.
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