A construção de um Direito Administrativo Sancionador democrático
24 de janeiro de 2025, 10h41
A diretriz constitucional quanto à conformidade dos atos praticados pelos agentes estatais exige a criação de mecanismos de controle preventivo e reparatório, associados às noções de accountability [prestação de contas; responsabilidade] e de “compliance” no espaço público-privado [1]. A partir da Constituição da República de 1988 e a adoção dos Princípios da Administração Pública (Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência), os instrumentos e mecanismos de controle estatal interno operam de modo independente às iniciativas de controle jurisdicional por meio de ações direcionadas à responsabilização. Em consequência, o Direito Administrativo Sancionador passou a ocupar lugar de destaque no contexto público, especialmente por força da promulgação da Lei 8.429/92 e da atribuição de legitimidade ao Ministério Público para o exercício da ação de improbidade administrativa.
Entretanto, desde a edição da Lei de Improbidade Administrativa, as discussões sobre os pressupostos de existência, os requisitos de validade e as condições de eficácia dos atos genericamente classificados como de improbidade são controversos, muitas vezes incoerentes e inconsistentes. Por um lado, o sentido atribuído aos dispositivos legais demanda o prévio ajuste quanto ao suporte teórico fundamentador do lugar e da função do controle judicial do ato de improbidade e, por outro, a criação de tipicidade administrativa difusa, genérica, descrita abstratamente pela violação genérica dos princípios da administração abre espaço para comportamentos oportunistas, dentre eles a prática de perseguições ou de Lawfare Administrativo. As especificações inerentes ao domínio do Direito Administrativo são mescladas, sobrepostas e instrumentalizadas para obtenção de responsabilização administrativa, impondo-se interpretações quanto ao significado de “moralidade” descolados dos pressupostos do positivismo jurídico (cisão direito e moral), isto é, com suporte em preferências morais flutuantes, inverificáveis e subjetivas dos agentes públicos julgadores de ocasião. A tarefa defensiva, por sua vez, além de se tornar dificultosa, muitas vezes mostra-se impossível, diante da ausência de critérios mínimos de legalidade objetiva, previsibilidade, confiança e de estabilidade.
O Poder Legislativo, no espaço que lhe é atribuído, com a Lei 14.230/2021 procurou realinhar as disposições legais, por meio da inserção de alterações significativas quanto aos requisitos e condições da responsabilidade administrativa, nem sempre a partir de critérios republicanos ou coerentes com o ordenamento jurídico. Em face das alterações, rivalizam posições ideológicas quanto à função de controle, principalmente a partir da lógica enviesada de punir o oponente ou do supostamente corrupto, de modo implacável, desprovido de garantias e, muitas vezes, julgado a partir de critérios subjetivos e inverificáveis. O estatuto do valor de verdade do ato improbo, então, corre o risco de deslizar no imaginário da responsabilidade objetiva, aproximando-se ao Direito Administrativo do Inimigo, a partir da clássica distinção entre amigo/inimigo de Carl Schmitt.
O problema subsequente é o de que as vítimas de imputações e/ou de condenações orientadas pela lógica do amigo-inimigo não se dão conta de que o poder, como tal, não existe, motivo pelo qual é exercido no contexto espaço-tempo. A alteração dos agentes no exercício do poder abre espaço para atribuições de responsabilidade administrativa de modo inválido e espúrio. Talvez a ânsia de punir, de se livrar do oponente ou do supostamente inimigo, desconsidera a evidência de que amanhã a vítima poderá ser o poderoso de hoje. Corre-se o risco de se instaurar um círculo não virtuoso, mas viciado. Vide os EUA.
Por isso, a construção de balizas normativas minimamente sólidas, construídas a partir de tipicidade administrativa verificável, com observância do devido processo legal, longe de ser privilégio ou favor aos imputados, configura atributo inerente do Estado Democrático de Direito. Os arroubos punitivistas, dissociados de conformidade procedimental, autorizam a incidência de práticas de Lawfare Administrativo, justamente o oposto do que aponta o livro [2] de Bernardo Strobel Guimarães, Caio Augusto Nazário de Souza, Jordão Violin e Luis Henrique (aqui). A obra dialoga com os fundamentos históricos, as novidades legislativas, a doutrina e a jurisprudência atualizada, antecipando o julgamento do Tema 1.199, conduzindo a abordagem nas curvas tortuosas da improbidade administrativa.
É neste contexto difuso, controverso e perigoso que se construiu, a partir das inovações legislativas, sólida orientação quanto à existência de “dolo”, a necessidade de imputação única, ampliando as condições para o “fair trial”. Longe de impedir condenações, a nova legislação aparou alguns desvios decorrentes da “tipicidade anêmica” do então artigo 11 da Lei 8.429/92. Por mais que se possa criticar excessos, inclusive suspensos pelo STF na ADI 7.236 [3], o saldo é positivo, indicador da construção de um Direito Administrativo Sancionador de cariz democrático.
Dentre as novas conformações da jurisprudência, vale destacar:
(1) Exigência de dolo, rejeitada a “culpa”:
“APELAÇÃO DOS RÉUS CONDENADOS POR PREJUÍZO AO ERÁRIO. PREFEITO E SECRETÁRIA DE CULTURA À ÉPOCA DOS FATOS. CONDENAÇÃO POR ATO CULPOSO DE AUSÊNCIA DE CAUTELA NA HOMOLOGAÇÃO DE PROCEDIMENTO ILEGAL. INFORMAÇÕES FALSAS APRESENTADAS PELA EMPRESA CONTRATADA. PARECER JURÍDICO DA PROCURADORIA MUNICIPAL FAVORÁVEL À HOMOLOGAÇÃO. CONTEXTO QUE DEMONSTRA A INEXISTÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO DE CAUSAR PREJUÍZO AO ERÁRIO. REVOGAÇÃO DA MODALIDADE CULPOSA PELA LEI N. 14.230/2021. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. RETROATIVIDADE DA NORMA EM BENEFÍCIO DOS RÉUS. TESE FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DO TEMA 1199. RECURSO PROVIDO PARA ABSOLVER OS RÉUS.
“APELAÇÃO DOS RÉUS CONDENADOS POR ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. ABSOLVIÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS QUE IMPLICA ABSOLVIÇÃO DOS PARTICULARES. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO ISOLADA DOS PARTICULARES [LEI N. 8.429/1992, ART. 3º]”. (TJSC, Apelação n. 0900079-16.2014.8.24.0067, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, 5ª Câmara de Direito Público, j. 05-12-2024).
“ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LICITAÇÃO PARA CONTRATAÇÃO DE SERVIÇO DE CONSULTORIA ADMINISTRATIVA NAS ÁREAS DE RECURSOS HUMANOS, COMPRAS E CONTRATOS. MUNICÍPIO DE PEQUENO PORTE. PROVA TESTEMUNHAL QUE DEMONSTRA A INEXISTÊNCIA DE SERVIDORES COM QUALIFICAÇÃO TÉCNICA PARA ATUAR NAS ÁREAS ABRANGIDAS PELO CONTRATO. ESCOLHA DA MELHOR PROPOSTA. SERVIÇO EFETIVAMENTE PRESTADO E DENTRO DO VALOR DE MERCADO. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO DE PRATICAR ATO DE IMPROBIDADE. SENTENÇA REFORMADA. RECURSOS PROVIDOS PARA ABSOLVER OS RÉUS”. (TJSC, Apelação n. 0900057-85.2018.8.24.0044, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, 5ª Câmara de Direito Público, j. 05-12-2024).
(2) Exclusão da Responsabilidade Objetiva na modalidade culposa:
“IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. NULIDADE DE SUBVENÇÃO SOCIAL CONCEDIDA MEDIANTE NOTAS FISCAIS FALSAS E COM DESVIO DE FINALIDADE NA APLICAÇÃO DA VERBA. CONDENAÇÃO DOS SETE RÉUS POR PREJUÍZO AO ERÁRIO. INSURGÊNCIA DE APENAS DOIS RÉUS. CONDENAÇÃO DOS RECORRENTES PORQUE OS DOCUMENTOS FALSOS FORAM ENVIADOS POR APARELHO DE FAX LOCALIZADO NO ESTABELECIMENTO DE SUA PROPRIEDADE. AUSÊNCIA DE PROVAS DE QUE ESTES FORAM OS RESPONSÁVEIS PELO ENVIO DO DOCUMENTO FALSO. ESTABELECIMENTO E MÁQUINA DE FAX QUE ERAM ACESSÍVEIS POR OUTRAS PESSOAS [FUNCIONÁRIOS E TERCEIROS]. IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAR QUEM EFETIVAMENTE ENVIOU O DOCUMENTO. ÔNUS DA ACUSAÇÃO. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. INVIABILIDADE DE CONDENAÇÃO DOS RÉUS PELO SIMPLES FATO DE SEREM PROPRIETÁRIOS DO ESTABELECIMENTO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA QUE NÃO SE APLICA. AUSÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES DA PARTICIPAÇÃO DOS APELANTES. INEXISTÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. RECURSOS PROVIDOS PARA ABSOLVER AMBOS OS RÉUS RECORRENTES. MANTIDA A CONDENAÇÃO DOS OUTROS CINCO RÉUS [NÃO RECORRENTES] E A NULIDADE DA SUBVENÇÃO SOCIAL”. (TJ-SC, Apelação n. 0900025-63.2016.8.24.0040, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, 5ª Câmara de Direito Público, j. 05-12-2024).
“ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SUBVENÇÃO SOCIAL REPASSADA PELO ESTADO DE SANTA CATARINA À ASSOCIAÇÃO DE PAIS E PROFESSORES DE ESCOLA PÚBLICA. PROVA DOCUMENTAL QUE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO DA VERBA PARA A AQUISIÇÃO DE MATERIAIS E ALIMENTOS DESTINADOS AO ESTABELECIMENTO DE ENSINO. IRREGULARIDADES FORMAIS NA PRESTAÇÃO DE CONTAS QUE, POR SI SÓ, SÃO INSUFICIENTES À CONFIGURAÇÃO DE ATO ÍMPROBO. DESORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA QUE NÃO SE CONFUNDE COM IMPROBIDADE. AUSÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES DO SUPOSTO DESVIO DAS VERBAS OU PRODUTOS. INEXISTÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. DIREITO SANCIONADOR. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NÃO AFASTADA PELA ACUSAÇÃO. SENTENÇA REFORMADA PARA ABSOLVER OS RÉUS. RECURSO PROVIDO”. (TJSC, Apelação n. 0003608-71.2007.8.24.0016, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, 5ª Câmara de Direito Público, j. 21-11-2024).
“RECURSO DA PRESIDENTE DA COMISSÃO DE LICITAÇÃO À ÉPOCA DOS FATOS. AUSÊNCIA DE INDIVIDUALIZAÇÃO DA CONDUTA. IMPUTAÇÃO GENÉRICA. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO APENAS POR EXERCER CARGO DE GESTÃO NO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. ILEGALIDADE DA LICITAÇÃO QUE, POR SI SÓ, NÃO IMPLICA AUTOMÁTICA CONDENAÇÃO DE TODOS OS MEMBROS DA COMISSÃO POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. SENTENÇA REFORMADA PARA ABSOLVER A RÉ. ABSOLVIÇÃO POR CIRCUNSTÂNCIA DE NATUREZA PESSOAL [INEXISTÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO] QUE NÃO SE COMUNICA AOS DEMAIS RÉUS NÃO RECORRENTES. RECURSO PROVIDO. EXCLUSÃO, DE OFÍCIO, DA PENA DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS DOS RÉUS NÃO RECORRENTES. CONDENAÇÃO POR VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS QUE NÃO PREVÊ MAIS ESSA PENALIDADE. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. ADEQUAÇÃO AOS PARÂMETROS INAUGURADOS PELA LEI N. 14.230/2021”. (TJSC, Apelação n. 0900028-40.2017.8.24.0086, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, 5ª Câmara de Direito Público, j. 14-11-2024).
(3] Princípio da Adstrição: imputação única para cada conduta [artigo 17, § 10-D]:
“ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA ADEQUAR A PETIÇÃO INICIAL AOS TERMOS DA LEI N. 14.230/2021. RECUSA DO AUTOR DA AÇÃO. INSISTÊNCIA NA CUMULAÇÃO DE QUATRO DISPOSITIVOS LEGAIS PARA A MESMA CONDUTA [LEI N. 8.429/1992, ART. 10, IX E XI, E ART. 11, CAPUT E I]. NORMA QUE PERMITE APENAS UM TIPO PARA CADA CONDUTA [LEI N. 8.429/1992, ART. 17, § 10-D]. VEDAÇÃO À CAPITULAÇÃO ALTERNATIVA. GARANTIA À DEVIDA CLASSIFICAÇÃO TÍPICA E INDIVIDUAL DA CONDUTA IMPUTADA. IMPOSSIBILIDADE DE READEQUAÇÃO TÍPICA DE OFÍCIO [LEI N. 8.429/1992, ART. 17, § 10, I]. VEDAÇÃO À SURPRESA [CPC, ART. 10]. AUTOVINCULAÇÃO DA PARTE AOS COMPORTAMENTOS [COMISSIVOS E OMISSIVOS]. CORRETA SENTENÇA DE INDEFERIMENTO DA INICIAL. RECURSO DESPROVIDO.
“A devida capitulação da conduta [premissa fática] ao tipo legal [premissa normativa] é dever do acusador porque superada a concepção de que o “acusado se defende dos fatos”, incompatível com o “devido processo legal”. A hipótese acusatória [HAc] é composta pela “premissa fática” [PF] e pela “premissa normativa” [PN] que, em conjunto, delimitam o “objetivo cognitivo” do processo e o espaço das inferências quanto à realização da conduta típica [conclusão], vedada a alteração de ofício [vedação à surpresa e congruência entre o pedido e a decisão]”. (TJSC, Apelação n. 5006623-81.2021.8.24.0012, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, Quinta Câmara de Direito Público, j. 05-12-2024).
Talvez o maior avanço tenha sido o reconhecimento do “princípio da adstrição”. Na redação original da Lei 8.429/1992 prevalecia a posição ultrapassada de que a parte ré se defendia dos fatos (premissa fática), independentemente da capitulação (premissa normativa: tipo), de modo que era possível a alteração da adequação típica da conduta a qualquer momento durante o processo, inclusive de ofício pelo juízo (regra equivalente ao art. 383 do CPP).
O fundamento decorria da permanência da concepção defasada da teoria do processo democrático, ainda vinculada à “relação jurídica” [4], herdada de momento histórico em que não existiam instituições públicas com a atribuição de acusar (Ministério Público) e defender (advogados e defensores públicos). Salvo a função de julgador, privativa de bacharel em Direito, prevalecia a nomeação “ad-hoc” de “acusadores” e “defensores” desprovidos de formação jurídica, motivo pelo qual havia uma “justificação da norma”, para usar a gramática de Frederick Schauer [1], atualmente inexistente.
Além disso, há regra expressa da “vedação à surpresa”, conforme aponta Paulo Queiroz:
“Pois bem, o art. 10 do novo CPC visa a evitar decisões que surpreendam as partes, invocando fundamento que nenhuma delas tenha suscitado, quer explícita, quer implicitamente, assegurando-lhes a máxima efetividade ao contraditório. Ei-lo: Art. 10. ‘O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício’. Consequentemente, ainda que se trate de matéria conhecível de ofício (v.g., prescrição penal), é recomendável que o juiz criminal possibilite às partes manifestarem-se sobre o assunto. O artigo em questão é especialmente importante nos casos em que o julgador vislumbrar a possibilidade de proferir sentença condenatória em desacordo com a denúncia ou as alegações finais produzidas pela acusação (emendatio libelli). O art. 383, caput, do CPP, deverá, portanto, ser interpretado em conformidade com a referida inovação do CPC, assegurando-se o princípio da correlação entre a acusação e a sentença”. QUEIROZ, Paulo. Impacto do Novo CPC sobre o Velho CPP. Consultar: http://emporiododireito.com.br/impacto-do-novo-cpc-sobre-o-velho-cpp-por-paulo-de-souza-queiroz/
O devido processo legal substancial rejeita a possibilidade da surpresa por parte do órgão julgador (CPC, artigo 10), especialmente no domínio da ação de improbidade que estabeleceu regra expressa (artigo 17, §10-F, I). Deve existir congruência entre a imputação e a decisão judicial. A Lei 14.230/2021 acolheu o “princípio da adstrição”, pelo qual o juízo fica vinculado ao tipo definido na inicial, sendo nula a condenação com base em dispositivo diverso (artigo 17, §10-F, I):
“Art. 17. A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei.
§ 10-F. Será nula a decisão de mérito total ou parcial da ação de improbidade administrativa que: I – condenar o requerido por tipo diverso daquele definido na petição inicial;”.
Nesse contexto, é requisito da petição inicial a indicação de apenas um tipo administrativo para cada conduta dentre aqueles previstos na lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992, artigo 17, § 10-D), vedada a imputação “alternativa” ou “difusa”. O regime do Direito Administrativo Sancionador é mais democrático do que o do Processo Penal, embora se possa aplicar a mesma lógica, porque a “vedação da surpresa” decorre da “boa-fé objetiva”, inerente ao “processo justo”.
É relevante o debate qualificado sobre temas de alta importância democrática, especialmente porque a dinâmica jurisdicional é difusa, com “entendimentos”, “compreensões” e “decisões” desprovidas de integridade e coerência. A luta pela superação da interpretação e aplicação do direito de modo “paroquial” é constante na doutrina de orientação democrática. No entanto, atualmente, cada “paróquia judicial” acaba professando sua própria “doutrina” e “fé” de modo autônomo, não necessariamente coerente, nem consistente com as premissas do Estado Democrático do Direito [5].
Mas seguimos, porque: “Aqui estou, mais um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia” (Racionais MC’s). Boa sexta. Abraços, Madalena.
[1] SCHAUER, Frederick. Las reglas em juego. Un examen filosófico de la toma de decisiones basada em reglas em el derecho y em la vida cotidiana. Madrid: Marcial Pons, 2004], explicitadas por Noel Struchiner [Para Falar de Regras. O Positivismo Conceitual como Cenário para uma Investigação Filosófica acerca dos Casos Difíceis do Direito. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Doutorado em Direito, 2005] e Jorge Alberto de Andrade [Elogio às Regras: A previsibilidade do Direito em face da coerência normativa em Hart, Maccormick e Schauer. Itajaí: UNIVALI, Mestrado em Direito, 2017], dentro do paradigma “positivista decisional”, em que a distinção entre Direito e outras esferas é mantida, na linha do “positivismo conceitual” [Direito estável e sem elementos morais] e do “positivismo normativo” [com modulações de significado pelos agentes na prática jurídica da sociedade em que vivem, busca-se a produção normativa mais precisa e a redução da discricionariedade judicial, por meio da fixação prévia do conjunto de fontes identificáveis à decisão judicial, principalmente nos casos de antinomia e conflitos de normas], compreender o pressuposto de que as normas jurídicas são produzidas em face de generalizações de comportamentos e situações do cotidiano [conjunto de classes com os atributos “x”; hipótese de incidência] que, diante das múltiplas variáveis do mundo, podem ou não ter sido antecipadas/previstas pela norma jurídica. As regras prescritivas são decorrentes de processo legislativo [o Legislativo representa o conjunto de preferências coletivas agregadas] em que, dentre as diversas alternativas possíveis, o Parlamento escolhe a que se tornará de observância compulsória [lei]. Cada processo legislativo elege a justificação da norma [a meta a ser obtida ou o dano a ser evitado] da edição do comando normativo, com o qual as nossas preferências [crenças, opiniões e conhecimentos] podem ser dissonantes ou consonantes. A função própria dos procedimentos legislativos é a de promover o debate entre as alternativas e, em seguida, deliberar em nome de todos.
[1] ROBL FILHO. Ilton Norberto. Conselho Nacional de Justiça. Estado Democrático de Direito e accountability. São Paulo: Saraiva, 2013.
[2] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de; VIOLIN, Jordão; MADALENA, Luiz Henrique. A nova lei de improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Editora Forense Ltda, 2023.
[3] “SENTENÇA CONDENATÓRIA POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA TRANSITADA EM JULGADO. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA POR AUSÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES À CONDENAÇÃO [CPP, ART. 386, VII]. AUSÊNCIA DE EFEITOS NO DOMÍNIO PENAL. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS MANTIDA. NÃO FAZ COISA JULGADA NO ÂMBITO CÍVEL A DECISÃO PENAL QUE ABSOLVE O ARGUIDO POR AUSÊNCIA DE SUPERAÇÃO DO STANDARD PROBATÓRIO NECESSÁRIO À ATRIBUIÇÃO DO VALOR DE VERDADE À HIPÓTESE ACUSATÓRIA [CC, ART. 935; LEI 8.429/92, ART. 21, §3º]. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS. ART. 21, §4º, DA LEI 8.429/92 SUSPENSO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL [ADI 7236]. INEXISTÊNCIA DE HIPÓTESES DE RESCISÃO DA SENTENÇA [CPC, ART. 966]. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO RESCISÓRIA. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO”. (TJSC, Ação Rescisória n. 5062613-25.2023.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Alexandre Morais da Rosa, Quinta Câmara de Direito Público, j. 16-05-2024).
[4] BÜLOW, Oskar Von. Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais. Campinas: LZN. 2005.
[5] Obrigado ao amigo e parceiro Luis Henrique Madalena pela eterna luta por melhorar o país para os que virão, depois de nós.
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