Impactos do turismo de veraneio na infraestrutura de saneamento básico e riscos ambientais
24 de janeiro de 2025, 7h14
É dia 30 de dezembro, antevéspera de réveillon, e faz muito calor em Ilhabela, paraíso do litoral norte de São Paulo. De acordo com estimativas da Prefeitura, mais de 35 mil pessoas estiveram no município para aproveitar os dias que antecederam e sucederam a virada do ano.
Na avenida Princesa Isabel, principal via da cidade que conecta praias de norte a sul, observaram-se pontos de extravasamento de esgoto doméstico, consequência de uma rede coletora sobrecarregada, situação que se repete anualmente na alta temporada.
Segundo o Censo de 2022, Ilhabela possui 34.934 habitantes. No apagar das luzes de dezembro, portanto, a população da ilha mais que dobrou. Para além da questão da (in)suficiência do sistema de esgotamento no município — uma problemática complexa que envolve investimentos, licenciamentos e barreiras culturais —, surge o desafio de como dimensionar uma infraestrutura que atenda à demanda cotidiana, mas suporte a sobrecarga durante dois ou três meses do ano.
Esse dilema não é exclusivo de Ilhabela, a exemplo do que houve na cidade de Guarujá com o surto de gastroenterite. A verdade é que quase todas as cidades litorâneas enfrentam o mesmo problema: aumento exponencial da população, crescimento abrupto da demanda por água tratada e excesso na geração de efluentes sanitários.
Problema jurídico
Embora pareça uma questão técnica de engenharia, o problema adquire contornos jurídicos relevantes. Um sistema de saneamento básico operando no limite por excesso de demanda pode colapsar, sobretudo quando são somadas ao aumento populacional as ligações clandestinas de águas pluviais na rede coletora de esgotos e as fortes chuvas inerentes à época do ano.
O resultado disso não pode ser outro que não a escassez de água devidamente tratada, extravasamentos de efluentes in natura no meio ambiente e insuficiência no tratamento do esgoto. Essas situações, além dos impactos operacionais, podem configurar violações da legislação ambiental, sujeitando concessionárias a sanções administrativas, civis e criminais.
Em outras palavras, eventos decorrentes da sobrecarga do sistema de saneamento em períodos de alta temporada, embora fora da esfera de controle direto das concessionárias, podem impactá-la significativamente do ponto de vista jurídico, com a imposição de multas que chegam a valores milionários, obrigações acessórias de reparação de danos ambientais, além da instauração de ações civis e ações penais em face da empresa e, eventualmente, seus dirigentes.
No entanto, aplicar sanções penais a concessionárias que não têm controle direto sobre as causas da insuficiência da infraestrutura é, no mínimo, controverso. O aumento abrupto da população durante a alta temporada, somado a um sistema de saneamento básico frequentemente deficitário, por vezes assim herdado do poder concedente, cria situações inevitáveis de colapso.
Punição severa para negligência
Ainda assim, a legislação ambiental, particularmente o artigo 54 da Lei nº 9.605/1998, equipara essas ocorrências a condutas dolosas ou de negligência grave. O dispositivo prevê penas severas para quem causar poluição com impacto na saúde humana ou no meio ambiente, penalizando eventos como extravasamentos temporários de esgoto em vias públicas.
Essa abordagem é, inclusive, completamente desproporcional quando comparada a outros dispositivos da mesma lei. Por exemplo, a pena para quem mata uma onça-pintada, espécie ameaçada de extinção, é de seis meses a um ano de detenção e multa. Já um extravasamento de esgoto, ainda que causado por fatores estruturais fora do controle da concessionária e muitas vezes sem qualquer potencial de causar danos ao meio ambiente ou à população, pode ser enquadrado como crime de poluição qualificada (artigo 54, §2º), com pena de dois a cinco anos de reclusão. Tal discrepância ignora a ausência de dolo e penaliza empresas que já enfrentam desafios operacionais substanciais.
Diante desse cenário, as concessionárias devem adotar medidas proativas para mitigar riscos e evitar judicializações desproporcionais. Planejamento sazonal, com aumento da capacidade de tratamento e distribuição durante picos de demanda, e tecnologias de monitoramento em tempo real, como sensores de fluxo e sistemas de alerta, ajudam a antecipar problemas. Protocolos de comunicação com autoridades e a população local garantem transparência e colaboração na gestão de crises.
Compliance ambiental
A adoção de um compliance ambiental também pode ser um importante caminho para mitigar problemas operacionais decorrentes do complexo contexto enfrentado pelas concessionárias de saneamento nas cidades litorâneas durante as temporadas de verão, na medida em que se constitui como uma das principais ferramentas para alinhar as operações das concessionárias às exigências legais e às expectativas da sociedade, ao mesmo tempo em que fortalece a credibilidade e a responsabilidade socioambiental das empresas.
Mais do que um conjunto de regras, o compliance ambiental representa um compromisso estratégico de prevenção e gestão de riscos, abordando diretamente os desafios que podem levar a sanções penais e violações ambientais. Trata-se de ir além da simples adesão à legislação, englobando também a criação de uma cultura organizacional efetivamente comprometida com a proteção ao meio ambiente e a promoção de boas práticas de governança.
Diante da complexidade dos desafios ambientais e do rigor das sanções administrativas, civis e penais, o compliance não apenas reforça a conformidade regulatória, mas também promove uma gestão mais eficiente e transparente, contribuindo para a prevenção de riscos e a construção de uma relação de confiança com os diferentes atores envolvidos.
Diálogo com órgãos reguladores e MPs
Por fim, relatórios de impacto ambiental atualizados e canais de diálogo com órgãos reguladores e Ministérios Públicos são igualmente essenciais para esclarecer responsabilidades e limitações operacionais, evitando penalizações excessivas e buscando soluções ágeis e colaborativas.
Embora o contexto seja desafiador, é possível equilibrar responsabilidade ambiental e eficiência operacional. Para isso, além dos já citados esforços a serem empreendidos pelos entes privados, as autoridades reguladoras, órgãos ambientais e Ministérios Públicos precisam reconhecer as concessionárias como agentes de mudança, que promovem sustentabilidade e bem-estar ambiental e empregam esforços significativos para a correção de suas atividades.
A aplicação desproporcional de sanções penais a situações inerentes às dinâmicas de determinados municípios, como colapsos temporários durante picos de demanda, não contribui para a melhoria do sistema e penaliza empresas que cumprem suas obrigações contratuais. Um diálogo mais eficiente entre todos os envolvidos é essencial para garantir soluções justas que realmente preservem o meio ambiente.
Somente assim será possível construir um sistema de proteção ambiental mais justo e eficaz, que priorize tanto a preservação ambiental quanto a segurança jurídica, superando desafios e garantindo soluções sustentáveis para o saneamento básico no Brasil.
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