Extinção da desconsideração pela superveniente solvência do devedor
24 de janeiro de 2025, 8h00
Em consonância com o disposto no artigo 50 do Código Civil: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
A autonomia patrimonial das sociedades civis e comerciais, prevista nesta regra legal contempla, a contrario sensu, a separação de patrimônios entre sócios e sociedade e, até, entre sociedades.
Com esta nítida distinção, os sócios, como é curial, não respondem com o seu patrimônio pessoal pelas obrigações assumidas pela pessoa jurídica, e esta não responde pelas obrigações contraídas pelos sócios.
Não obstante, de modo cada vez mais frequente, vem sendo pleiteado ao Poder Judiciário o emprego da desconsideração da personalidade jurídica, na tentativa de obter a integral satisfação de créditos inadimplidos.
Com efeito, este mecanismo criado no âmbito do common law, na prática, autoriza o órgão jurisdicional ignorar a aparente autonomia patrimonial da pessoa jurídica ou mesmo da pessoa física, para reprimir a utilização destas com o escopo deliberado de fraudar credores.
Contudo, torna-se necessário ressaltar que a incidência dessa fictio iuris somente se dará quando restar amplamente comprovada a ocorrência de abuso.
Nesse sentido, importante precedente da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no recente julgamento do Recurso Especial nº 2.150.227/SP, com voto condutor do ministro Humberto Martins, reafirma o entendimento pretoriano consolidado, ao assentar que:
“A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, medida excepcional prevista no artigo 50 do Código Civil, pressupõe a ocorrência de abusos da sociedade, advindos do desvio de finalidade ou da demonstração de confusão patrimonial. A mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não enseja a desconsideração da personalidade jurídica”.
Assim, não será suficiente a simples insolvência da sociedade para que seja ignorada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Na verdade, o credor que pretende a desconsideração tem o ônus de provar o conluio perpetrado pelos administradores da empresa.
Caso o credor não produza prova da fraude, do abuso, suportará o dano da insolvência da sociedade ou da pessoa física devedora, visto que serão mantidas as regras de limitação da responsabilidade da sociedade, bem como dos respectivos sócios.
Constatação do abuso da PJ
Desse modo, a desconsideração da personalidade jurídica somente deve ser deferida pelo Poder Judiciário quando for comprovada de modo verossímil a ocorrência de ato fraudulento por parte dos administradores da sociedade, caso contrário, será mantida a separação do patrimônio dos sócios e da sociedade.
As circunstâncias excepcionalíssimas que autorizam a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, na precisa síntese de Osmar Brina Corrêa-Lima, “se subsumem nos conceitos genéricos de fraude e má-fé, que não se presumem…” (A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica Desmistificada, trabalho inédito, s/d., pág. 2).
Importa observar, portanto, que a literatura especializada, de um modo geral, preconiza que a admissibilidade da incidência da chamada disregard doctrine está condicionada à constatação do abuso da pessoa jurídica, demarcado pela fraude manifesta ou pela confusão patrimonial entre sociedade e sócios, ou mesmo entre sociedades.
Pois bem, uma vez deferida a desconsideração, o credor envidará então todo esforço para satisfazer o seu crédito com recursos provenientes do patrimônio da pessoa jurídica ou da pessoa física atingida pela desconsideração.
Verificando-se esta situação, a devedora originária fica praticamente “esquecida” pelo credor. É claro, como ela não possuía ativos, nenhum interesse sobejará ao titular do crédito de se voltar contra ela quando já deferida a aludida desconsideração.
Solvência do devedor e a substituição da penhora
Todavia, diante da natural demora para a satisfação do crédito, sobretudo na hipótese de haver discussão acerca da fixação do quantum debeatur, pode ocorrer que, com o passar do tempo, o devedor ou a devedora primária passe de um estado de insolvência para uma condição patrimonial avantajada, representada por ativos livres e desembaraçados, suficientes para responder pelo débito exequendo.
Neste caso, exercendo um direito próprio, de forma análoga à prerrogativa reconhecida ao fiador, pelo artigo 827 do Código Civil (“benefício de ordem”), aquela que se encontra submissa à desconsideração pode exigir que os bens do devedor sejam excutidos antes dos seus próprios ativos.
Assim, valendo-se desse direito, entendo que nada obsta à pessoa jurídica ou física atingida opor tal exceção dilatória, em qualquer momento processual, antes da expropriação de seu patrimônio.
Isso significa que aquele ou aquela alvejada pelo decreto de desconsideração tem a faculdade de requerer a substituição da penhora que recaíra sobre seus bens por ativos da empresa desconsiderada, cabendo-lhe à evidência, o ônus de provar que tal patrimônio é suficiente para responder pelo montante do crédito e, ainda, que se encontra livre e desembaraçado de quaisquer gravames.
Saliente-se que, ocorrendo essa hipótese, não é preciso dizer que o devedor originário não poderá opor-se ao exercício do referido direito pela empresa ou pela pessoa física tida como responsável pelo pagamento da dívida.
Aduza-se, ademais, que, igualmente, ao credor é defeso impugnar o aludido requerimento, a menos que comprove que os bens do devedor primário não sejam suficientes para responder pela execução.
Por fim, como a desconsideração da personalidade jurídica constitui, à luz de quanto acima afirmado, mecanismo de natureza excepcional, é certo que o juiz, desde que configurada a situação acima retratada, não poderá, à evidência, deixar de deferir a substituição da penhora. Deverá destarte determinar a constrição sobre o patrimônio da devedora desconsiderada, e, com isso, revogar de imediato a desconsideração antes deferida, dada a inequívoca perda superveniente do interesse do credor.
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