Reforma tributária e federação, um diálogo com Fernando Scaff
23 de janeiro de 2025, 6h30
A reforma tributária promovida pela Emenda Constitucional 132/23 trouxe à tona um debate essencial sobre os limites e desafios do federalismo brasileiro. Nessa linha, é fundamental reconhecer que o professor Fernando Facury Scaff, em seus textos sempre instigantes, tem destacado a perda de autonomia dos entes subnacionais decorrente da reforma. Segundo sua recente publicação aqui na ConJur, em 14 de janeiro, houve “uma forte redução da autonomia dos entes federados, que antes tinham limites em sua autonomia na forma de leis complementares, e agora perderam completamente a autonomia arrecadatória sobre a maior fonte tributária que dispunham. Estados e municípios foram garroteados, e a federação se tornou ainda mais centralizada”. E observa o ilustre professor, com absoluta clareza, que “do agrilhoamento não surge cooperação, mas redução de autonomia”.
Há, no entanto, um aspecto relevante que não chegou a ser abordado e que merece reflexão: cuida-se do modelo dos colegiados de harmonização e o seu impacto sobre a capacidade tributária ativa dos entes e o amesquinhamento da federação.
O novo §3º do artigo 145 da Constituição Federal impõe a harmonização das normas, interpretações e procedimentos entre o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Embora a ideia de harmonização traga promessas de simplicidade e maior segurança jurídica, a forma como ela foi concebida compromete ainda mais a autonomia dos entes subnacionais e o modelo de Estado federal adotado no Brasil.
Os artigos 319 e 320 da recentíssima LC 214/2025 denotam que os órgãos de harmonização (Comitê de Harmonização e Fórum de Harmonização), criados para dispor, dentre outros, sobre uniformização, interpretação, obrigações acessórias e procedimentos comuns ao IBS e à CBS, tem representação indireta (para os entes subnacionais) e desigual entre os entes federativos.
De fato, a representação das entidades parciais de poder nesses colegiados, que são fundamentais para definir as regras comuns do IBS/CBS e acomodar os interesses da União, dos estados e dos municípios, será indireta, mediante indicação pelo presidente do Comitê Gestor (artigo 320, III da LC 214/25). Isso difere bastante da estrutura de um órgão federativo clássico [1] no qual há representação direta dos interesses de todos os entes subnacionais na União.
A representação nesses colegiados também é desigual. Enquanto a União forma um bloco monolítico, com interesses claramente alinhados e representação de 50% nesses comitês (4 representantes, todos indicados pelo ministro da Fazenda – artigo 320, III da LC 214/25), os 27 estados e DF (dois representantes – 25%) e os mais de 5.570 municípios (dois representantes – 25%), que possuem uma pluralidade de interesses regionais/locais (eventualmente até antagônicos entre si), respondem, juntos, pelos demais 50%. Portanto, os entes subnacionais nem sequer possuem maioria na representação de seus interesses nos comitês.
Essa distribuição de poder reduz substancialmente a influência dos entes subnacionais, que enfrentarão dificuldades para formar blocos coesos devido à diversidade de interesses regionais e locais. A União, por outro lado, terá quatro representantes agindo de forma alinhada. Como não se pode cogitar de paralisia decisória, haverá predominância da União nas decisões assembleares. Até porque, não havendo decisão, a União poderá deliberar sozinha em relação à CBS. Portanto, o comitê gestor é criado sem poder real, já que precisará decidir questões fundamentais com a União, sem contar com uma representação que assegure maioria aos entes subnacionais.
Além disso, a exigência de unanimidade para essas deliberações, prevista no artigo 320, I, da LC 214/25, agrava o problema, uma vez que é improvável que estados e municípios, com interesses muitas vezes divergentes, consigam coordenar suas ações de maneira eficiente. Em situações de bloqueio decisório nos comitês por falta de unanimidade, tal como historicamente ocorreu no Confaz, relativamente ao ICMS, é previsível que a União venha a deliberar unilateralmente em relação à CBS, consolidando ainda mais seu papel hegemônico na estrutura tributária nacional.
Esse novo modelo brasileiro diverge significativamente de outras federações democráticas no mundo, que, diferentemente, conseguiram encontrar equilíbrio entre a coordenação tributária e a autonomia subnacional. Vejamos:
Índia: A reforma tributária indiana, que introduziu o Goods and Services Tax (GST), seguiu um modelo de competência dual. A União e os estados compartilham a responsabilidade legislativa e administrativa sobre o GST, sendo este dividido em CGST (tributo federal) e SGST (tributo estadual). O Conselho do GST é o órgão central de harmonização, no qual os estados detêm 2/3 dos votos e a União 1/3, com as decisões exigindo maioria de 75%. Isso garante que os Estados tenham peso significativo na formulação de normas e procedimentos, promovendo um equilíbrio entre uniformidade e autonomia.
No Brasil, a legislação do IBS é federal, o CG-IBS tem composição que favorece a União, e os estados e municípios estão fragmentados, dificultando a formação de blocos coesos. A exigência de unanimidade no CG-IBS cria um sistema potencialmente disfuncional, bastante diferente do modelo indiano, que promove maior equilíbrio federativo ao estabelecer que os estados tenham maioria no Conselho do GST. Além disso, a participação dos Estados indianos na ratificação da reforma, por meio de suas assembleias legislativas, difere substancialmente do que ocorreu no Brasil em que a reforma foi realizada “de cima para baixo”, mediante emenda constitucional e legislação complementar editados pelo Congresso Nacional, sem participação direta dos entes subnacionais.
Canadá: No sistema canadense, as províncias mantêm ampla autonomia tributária. A adesão ao sistema harmonizado (Harmonized Sales Tax – HST) é voluntária e fruto de negociações bilaterais com o governo federal. Algumas províncias, como Quebec, optaram por administrar e legislar sobre seu próprio imposto (Quebec Sales Tax – QST), enquanto outras adotaram o HST. Essa flexibilidade assegura que as províncias possam preservar suas especificidades regionais, mesmo dentro de um modelo coordenado.
No modelo brasileiro, os estados e municípios não têm a opção de decidir sobre sua adesão ao IBS; são obrigados a submeter-se à lei complementar (federal) e à uniformização nacional definida pelo CG-IBS, com ampla ingerência da União nos assuntos relacionados à uniformização com a CBS.
Alemanha: A tributação sobre consumo na Alemanha é baseada no Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), regulamentado nacionalmente. No entanto, os estados (Länder) participam ativamente do processo legislativo por meio do Bundesrat, onde têm poder de veto e deliberação sobre questões tributárias. Além disso, a administração do imposto é descentralizada, com os Länder sendo responsáveis pela arrecadação e fiscalização em seus territórios. Essa estrutura assegura uma participação direta e relevante dos estados na gestão tributária.
No Brasil, o poder de legislar e administrar o IBS é centralizado no Congresso Nacional e no CG-IBS. Diferentemente da Alemanha, no Brasil não há representação direta e paritária dos representantes dos estados brasileiros, muito menos dos municípios. Os senadores, assim como os deputados, são eleitos e não necessariamente representam os interesses dos governos locais. Além disso, as decisões de uniformização terão de ser tomadas por unanimidade no comitê e no fórum de harmonização, diferentemente dos quóruns previstos na Alemanha de maioria simples e de 2/3 em casos mais sensíveis. Assim, os entes federativos subnacionais brasileiros terão autonomia limitada em comparação com os Länder alemães na administração do imposto.
Estados Unidos: O modelo americano é altamente descentralizado. Os estados têm plena autonomia para legislar e administrar impostos sobre consumo, como o Sales Tax. Isso resulta em um sistema heterogêneo, com diferentes alíquotas, bases de cálculo e regras entre os estados. Essa diversidade reflete a independência dos estados em adaptar suas políticas tributárias às necessidades locais.
Enquanto os estados brasileiros perderão a capacidade de legislar e administrar independentemente o IBS, os estados americanos mantêm controle total sobre seus impostos.
Os exemplos acima nos levam a concordar com a assertiva do professor Fernando Scaff, de que a reforma tributária não propiciou uma federação solidária e cooperativa. Parece que estamos diante de uma nova forma de organização do Estado brasileiro, que se aproxima de um modelo de Estado unitário decentralizado do que de uma verdadeira federação.
Intentamos ampliar o debate para considerar a questão da preponderância da União nos comitês de harmonização e a redução significativa de poder dos entes periféricos. Essa é uma questão que merece discussão. Fica o convite à reflexão conjunta de modo a buscarmos soluções para que o federalismo brasileiro não seja reduzido a um simulacro.
[1] MADISON, HAMILTON e JAY, 2003: 375.
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