Organizações sociais e licitação
23 de janeiro de 2025, 8h00
Uma questão não tão nova volta a ter relevância diante da plena vigência da Lei nº 14.133/21, que estabelece normas gerais de licitação e contratação. Não há qualquer referência na citada lei à contratação – em sentido amplo – de organizações sociais, além de não mais existir previsão de hipótese de dispensa de licitação semelhante à que constava no artigo 24, XXIV da antiga Lei nº 8.666/93 (previa-se a dispensa para “celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”). Afinal de contas, houve alguma alteração no regime jurídico da celebração de contratos de gestão com organizações sociais?
Respeitando a objetividade que caracteriza esta coluna, comecemos por rememorar o entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 1.923, questionando diversos dispositivos da Lei nº 9.637/98 e também o inciso XXIV do artigo 24 da Lei Federal nº 8.666/93, concluído em 16/4/2015:
“Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido é julgado parcialmente procedente, para conferir interpretação conforme à Constituição à Lei nº 9.637/98 e ao artigo 24, XXIV, da Lei nº 8666/93, incluído pela Lei nº 9.648/98, para que: (i) o procedimento de qualificação seja conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF, e de acordo com parâmetros fixados em abstrato segundo o que prega o artigo 20 da Lei nº 9.637/98; (ii) a celebração do contrato de gestão seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF; (iii) as hipóteses de dispensa de licitação para contratações (Lei nº 8.666/93, artigo 24, XXIV) e outorga de permissão de uso de bem público (Lei nº 9.637/98, artigo 12, §3º) sejam conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF; (iv) os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; (v) a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; e (vi) para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas” [1].
O Supremo Tribunal Federal considerou que o contrato de gestão firmado entre o Estado e as entidades qualificadas como organizações sociais possui a natureza jurídica assemelhada ao convênio em razão da junção de esforços para realização de interesses comuns, configurando negócio associativo, e não comutativo. Contratos e convênios partilham a mesma natureza, compondo o instituto jurídico “contrato” ou a figura genérica do módulo convencional, na lição de Fernando Menezes de Almeida [2]. Os ajustes de cooperação, como os convênios (em seu significado tradicional, antes do advento da Lei nº 13.019/14), têm como marca essencial a pessoalidade [3], caracterizada pela soma de esforços pessoais para atingir determinado objetivo amparado por finalidades institucionais. O reconhecimento jurídico dos ajustes de cooperação depende, em cada caso concreto, mais de uma análise global das cláusulas do que de nomes: é preciso estar diante de uma relação jurídica sem subordinação, com colaboração para produção de resultados que interessem aos participantes. Em outras palavras, contratos de gestão possuem natureza contratual em sentido amplo, não descaracterizada pelos propósitos de cooperação e colaboração.
Reconhecer a natureza contratual em sentido amplo, mas com fisionomia própria, não implica na aplicação das normas gerais de contratações públicas. As normas da Lei nº 14.133/21 se aplicam apenas no que couber aos convênios e demais ajustes convencionais de cooperação, seja qual for o nome que se lhes atribua, na ausência de normas específicas, nos termos do artigo 184 da referida lei. A conclusão vale para o contrato de gestão celebrado entre o Estado e as organizações sociais: as normas da Lei Geral não são aplicáveis automaticamente, in totum, mas apenas residualmente, no que não contrariar a natureza e as finalidades do referido contrato, nos termos da legislação específica.
Outra questão importante é o reconhecimento da competência legislativa concorrente dos entes da federação para tratar da qualificação das entidades como organizações sociais, em seus respectivos âmbitos. A competência concorrente ocorre por se tratar de atividade de fomento, devendo-se atentar para eventual competência específica em relação ao objeto do fomento e aos instrumentos utilizados. Em outras palavras, cada ente possui competência legislativa para disciplinar a atribuição do título jurídico de organização social para efeito de contratação (sempre, em sentido amplo) com o mesmo ente. A Lei nº 9.637/98 é lei federal, não lei nacional – estados e municípios necessitam de legislação específica de cada ente para disciplinar o regime jurídico dos contratos de gestão. Na ausência de legislação específica de cada ente, não há que se falar com celebração de contrato de gestão com organizações sociais.
A necessidade de disciplina normativa adequada e planejamento
Qual, então, o regime jurídico aplicável para a seleção da organização social que celebrará contrato de gestão com o poder público? O procedimento respectivo deve ser público, objetivo e impessoal (nos termos da decisão proferida na ADI 1.923), estabelecido na lei específica. Não se aplica o procedimento de chamamento público previsto na Lei nº 13.019/14 (em decorrência do disposto art.3º, III), muita embora normas estaduais e municipais façam referência a procedimento com o mesmo nome. Também não há sentido em realizar licitação, regida pela Lei 14.133/21, qualquer que seja a modalidade eleita. Nesse particular, ao destacar a importância do processo de qualificação das entidades como organizações sociais, anota Fernando Mânica:
“Existe um risco significativo caso o chamamento público persista em ser tratado como uma licitação dotada de critérios puramente formais para habilitação e pontuação. Tal abordagem pode resultar na emergência de um indesejado mercado de organizações sociais, que atrairá entidades experts em licitação (ou em chamamento público) e interessadas apenas no do cifrão envolvido na avença. O grande desafio do chamamento, portanto, é conseguir, por meio de critérios públicos, objetivos e impessoais, atrair entidades que tenham propósito e interesses convergentes com o poder público e que não objetivem meramente auferir ganhos financeiros mensais com o contrato. Nesse contexto, parece-nos que o processo de qualificação é essencial como fase prévia ao chamamento. Nele devem ser previstos critérios e requisitos formais e materiais detalhados, em alinhamento com os objetivos e valores a serem alcançados pelo contrato de gestão a ser celebrado. Além disso, a qualificação prévia permite que eventuais questionamentos acerca do processo de qualificação não interfiram ou interrompam o próprio chamamento público” [4].
O planejamento prévio para escolha modelo jurídico do contrato de gestão será essencial para sua futura eficácia. Além da atenção aos procedimentos de qualificação e de seleção, é importante demonstrar o custo-benefício da absorção da atividade pública por organização social, em substituição à atuação direta do Estado, e compará-la com outras alternativas de gestão disponíveis. Da mesma forma, a necessidade de instrumentos objetivos de avaliação – previamente definíveis – é imposta diante da conformação jurídico-normativa do contrato de gestão como instrumento vocacionado ao incremento da eficiência e eficácia. Não se admite decisão caprichosa, despida de embasamentos que permitam concluir que o modelo de contrato de gestão é o mais adequado para o caso concreto. Enfim, a decisão relativa à forma de gestão de determinado serviço público de forma associada com organizações sociais é juridicamente integrante de processo de planejamento de políticas públicas [5].
Não basta a alcunha de “parceria” ou mera referência a interesse público: para que os ajustes com organizações sociais não sejam mero disfarce para relações econômico-empresariais, é necessária disciplina normativa adequada e, em cada caso concreto, planejamento.
[1] ADI 1.923 / DF, relator p/ Acórdão: min. Luiz Fux, Julgamento: 16.04.2015, Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJe-254.
[2] ALMEIDA, Fernando Menezes de. Contratos administrativos. São Paulo: Quartier Latin, 2014.
[3] MARRARA, Thiago. Identificação de convênios administrativos no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 100, p. 551-574, 2005.
[4] https://www.conjur.com.br/2024-jun-26/precisamos-repensar-o-processo-de-qualificacao-e-selecao-das-organizacoes-sociais/
[5] MOTTA, Fabrício. NAVES, Fernanda. Políticas públicas na área da saúde: notas sobre o planejamento prévio à celebração de contratos de gestão com organizações sociais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 121, pp. 331-374, jul./dez. 2020. DOI: 10.9732.2020.V121.844
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