O acesso à íntegra de elementos investigativos digitais por parte da defesa
23 de janeiro de 2025, 11h17
Ao apagar das luzes do ano de 2024, o Superior Tribunal de Justiça no Recurso em Habeas Corpus nº 184.003/SP firmou entendimento fundamental no que diz respeito ao direito de defesa e à utilização de provas digitais em processos criminais.
O caso envolveu a apreensão de arquivos digitais durante a execução de mandados de busca e apreensão em investigações capitaneadas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo – portanto, órgão investigatório e acusatório. Buscou, durante as instâncias ordinárias, a defesa técnica a “produção de provas adicionais, destinadas a esclarecer a confiabilidade e integridade de dados eletrônicos conseguidos pelo Parquet (…)” para declarar a “inadmissibilidade de todo conjunto probatório digital apreendido no bojo da medida cautelar (…)”. Em síntese, sustentou-se que a cadeia de custódia desses elementos foi comprometida, com parte dos arquivos corrompidos e inacessíveis, e que não teria sido disponibilizado o HD físico, mas apenas um link para acesso aos dados armazenados em nuvem. Esses fatos, ainda segundo a defesa, inviabilizaram a realização de auditorias e colocaram em xeque a autenticidade das provas.
Ainda no que diz respeito às alegações defensivas, estas podem ser destacadas da seguinte maneira: (a) inviabilidade de auditoria do material apreendido ante à recusa do Ministério Público em fornecer o HD original onde os arquivos foram armazenados após a busca e apreensão; (b) a ausência do HD em juízo impossibilitou a verificação de que os arquivos disponibilizados correspondiam exatamente ao conteúdo original coletado; (c) não foi esclarecido qual erro técnico levou à corrupção de parte dos arquivos, nem em que momento isso ocorreu, comprometendo a confiabilidade do material apreendido; e (d) o Ministério Público manteve-se inerte nas diversas oportunidades que teve para comprovar a integridade dos dados coletados.
Enfim, o pleito defensivo dizia respeito à admissibilidade e fiabilidade da prova digital obtida mediante busca e apreensão, extraída de aparelhos eletrônicos, analisados pelo Fisco e pelo Ministério Público.
A cadeia de custódia, festejado avanço advindo com a Lei nº 13.964/2019, prevista nos artigos 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, é o conjunto de procedimentos destinados a documentar, de forma cronológica e ininterrupta, o manejo de vestígios desde sua coleta até sua apresentação em juízo. Sua observância é imperativa para assegurar a autenticidade e a integridade dos elementos de informação – posteriores provas –, sobretudo ao se lidar com evidências digitais, cuja volatilidade e vulnerabilidade exigem cuidados redobrados.
Do mesmo lado, ainda, o direito ao contraditório e à ampla defesa, pilares de um processo penal justo, pressupõem o acesso pleno e irrestrito a todos os elementos de informação utilizados pela acusação. No caso em questão, a recusa – ou impossibilidade – em apresentar o HD original para auditoria técnica comprometeu essa garantia. A defesa ficou impedida de verificar se os arquivos disponibilizados eram idênticos aos coletados na origem, sobretudo diante da admissão do Ministério Público de que parte do material estava corrompida por um “erro técnico”.
É crucial destacar que o simples registro de códigos hash, por mais que assegure a rastreabilidade dos dados, não é suficiente para atestar a autenticidade de uma prova digital. Conforme assinalado no julgamento aqui discutido, tem-se como imprescindível a comparação desses códigos com os arquivos originais, procedimento que não foi realizado. Essa omissão não apenas viola o direito à defesa, mas também abala a credibilidade do próprio órgão acusatório
Como dito anteriormente, provas digitais são inerentemente frágeis, sendo suscetíveis a alterações, corrupções e manipulações. Por isso, a incorruptibilidade deve ser compreendida como um requisito indispensável para sua admissibilidade em juízo – mais ainda, para sua admissibilidade à efetivação de medidas cautelares, vez que danosas ao investigado. A ausência de documentação completa da cadeia de custódia e a incapacidade de garantir a integridade dos arquivos digitalizados no caso concreto trazem à luz a necessidade de padrões mais rigorosos na coleta e preservação de evidências digitais.
Igualdade foi comprometida
O STJ, ao declarar inadmissíveis as provas corrompidas e derivadas, reafirmou a aplicação do princípio do pas de nullité sans grief, segundo o qual não há nulidade sem prejuízo, mas com uma ressalva importante: o prejuízo, nesse contexto, decorreu da própria impossibilidade de comprovar a autenticidade e integridade das evidências. Essa decisão, diga-se, fortalece a tese de que é ônus do Estado demonstrar, com documentação técnica precisa, que as provas utilizadas são confiáveis e genuínas.
Ademais, a paridade de armas é um princípio essencial que assegura às partes igualdade de condições para influenciar as decisões judiciais. No caso em análise, essa igualdade foi comprometida pela assimetria no acesso às provas. Enquanto o Ministério Público detinha o controle do suposto HD original e do material digital coletado, a defesa foi limitada a arquivos disponibilizados de forma parcial e fragmentada. Tem-se, sem sombra de dúvidas, que tal cenário subverte o equilíbrio processual e fragiliza o sistema acusatório, em que a neutralidade do juiz e a igualdade entre as partes são pressupostos fundamentais.
A prática investigativa deve estar subordinada a regras claras e ao respeito aos direitos fundamentais. Quando se nega à defesa o pleno acesso aos elementos de prova, a presunção de inocência e o devido processo legal tornam-se meras abstrações teóricas, distantes da realidade prática.
O acórdão do STJ exemplifica o papel indispensável das instâncias recursais superiores na proteção das garantias constitucionais e na uniformização de precedentes. Ao reafirmar que provas digitais incompletas ou corrompidas são inadmissíveis, o tribunal cria um parâmetro de observância obrigatória para os operadores do direito e para os órgãos investigativos.
Contudo, o impacto concreto deste julgado – que deve servir de exemplo a outros órgãos de decisão – demanda seu acompanhamento por mudanças estruturais. Tem-se como certo que investimentos em capacitação técnica, a adoção de tecnologias mais avançadas e a implementação de protocolos padronizados são medidas essenciais para assegurar a integridade das provas digitais e a efetividade do direito à defesa.
Anteriormente, no bojo do AgRg no HC 143.169/RJ [1], o próprio ministro Ribeiro Dantas já havia decidido ser “ônus do Estado comprovar a integridade e confiabilidade das fontes de prova por ele apresentadas”. Prosseguiu, ainda, apontando que “No processo penal, a atividade do Estado é o objeto do controle de legalidade e não o parâmetro do controle; isto é, cabe ao judiciário controlar a atuação do Estado-acusação a partir do direito, e não a partir de uma autoproclamada confiança que o Estado-acusação deposita em si mesmo.”.
Aqui cabe breve digressão para apontar que sobre esta “autoproclamada confiança”, recorrente objeto de decisões das instâncias ordinárias para validar testemunhos policiais, tornaremos a falar em outro eventual artigo.
Decisões como a que aqui se discute colocam em evidência a necessidade de repensar práticas investigativas, de garantir a plena observância dos princípios constitucionais e de proteger o equilíbrio entre acusação e defesa. O cerne da discussão gira em torno da inadmissibilidade de provas corrompidas ou incompletas, o que suscita um debate crucial sobre a incorruptibilidade dos elementos probatórios e o direito de acesso irrestrito às informações colhidas por órgãos investigativos.
O caso julgado pelo STJ no RHC nº 184.003/SP é emblemático, pois explicita os desafios inerentes à utilização de provas digitais no processo penal. Serve, ademais, de alerta de que, em um Estado Democrático de Direito, a busca pela verdade real não pode se dar à custa do respeito às garantias fundamentais. A incorruptibilidade das provas e o acesso pleno a elas não são apenas exigências técnicas, mas sim condições indispensáveis para a legitimidade do sistema de justiça. E, por fim, que as instâncias extraordinárias são fundamentais para o controle da atividade investigativa e probatória frente a abusos que venham a minar a paridade de armas.
À guisa de conclusão, a decisão do STJ deve servir como espécie de alerta para os envolvidos na persecução penal. Sem a adoção de práticas transparentes e rigorosas, o processo penal corre o risco de se transformar em um instrumento de arbítrio. Mais ainda, corre-se o risco de perder investigações eficazes e efetivas, justamente por não se levar a sério o direito de defesa e a higidez das provas. Garantir a integridade das provas digitais e o equilíbrio entre defesa e acusação é, em última análise, proteger os fundamentos da ordem jurídica.
[1] AgRg no RHC 143.169/RJ, Rel. para acórdão min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 07.02.2023. Entendimento semelhante pode ser encontrado no julgado citado no próprio acórdão comentado: STJ, HC 160.662/RJ, rel. min. Assusete Magalhães, 6ª Turma, julgado em 18/2/2014.
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