Jurisprudência do STF legitima criação de força municipal armada do Rio
23 de janeiro de 2025, 8h49
A evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal permitiu que o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), anunciasse a criação da Força Municipal de Segurança, uma guarda armada que fará policiamento ostensivo — atividade antes restrita à Polícia Militar, comandada pelo governo do estado.
Especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico defendem o aumento da participação de municípios na segurança pública e avaliam que a nova corporação pode ajudar a reduzir a criminalidade.
No primeiro dia de seu quarto mandato como prefeito da capital fluminense, Paes anunciou que criará a Força Municipal de Segurança da Cidade do Rio de Janeiro. O objetivo é que a corporação atue, armada, em ações preventivas e de combate a pequenos delitos.
O plano é que a Força Municipal comece a trabalhar em 2026, em uma área piloto — que poderá ser uma região turística, como Copacabana, ou um bairro com acessos fáceis de controlar, como Ilha do Governador ou Urca.
Os primeiros agentes devem ser contratados e treinados neste ano. A estimativa é que, em oito anos, a nova força tenha um efetivo de cerca de 13 mil agentes — o equivalente a 30% dos policiais militares do Rio, que eram 42 mil na ativa em 2024.
Paes editou dois decretos municipais sobre o assunto. O Decreto 55.584/2025 criou um grupo de trabalho “com o objetivo de empreender estudos, realizar análises e propor ações e projetos relacionados à criação da Força Municipal de Segurança da Cidade do Rio de Janeiro”. Entre os integrantes do comitê estão o secretário de Ordem Pública, delegado Brenno Carnevale; o secretário da Casa Civil, o oficial da Polícia Militar Leandro Matieli; a economista Joana Monteiro, que já dirigiu o Instituto de Segurança Pública (ISP) e é professora da Fundação Getulio Vargas; e o coronel Luiz Henrique Marinho Pires, ex-secretário da PM.
Já o Decreto 55.585/2025 criou o programa de refundação da Guarda Municipal do Rio. O objetivo é rever as competências e as atribuições da corporação, que coexistiria com a Força Municipal de Segurança.
Paes disse que propôs a nova corporação devido ao plano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de integrar as forças de segurança e à inércia do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), diante da criminalidade na capital fluminense.
“É uma questão de semântica (a figura da Força de Segurança Municipal). O presidente Lula quer integrar as forças policiais. E a segurança foi debatida nas campanhas para prefeitos. Recentes declarações do governador sobre não ter responsabilidade sobre o aumento da violência na cidade são outro motivo para atuarmos na área”, declarou o prefeito.
Medida elogiada
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, é favorável à criação da Força Municipal de Segurança da Cidade do Rio de Janeiro, “desde que sejam respeitados os limites constitucionais e o uso moderado da força”, como disse a interlocutores, segundo o colunista do jornal O Globo Lauro Jardim.
Procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro de 2021 até o começo deste ano, Luciano Mattos defendeu à ConJur uma maior participação dos municípios na segurança pública. E avalia que a Força Municipal de Segurança do Rio pode ser positiva, desde que cumpra os requisitos legais.
“Seria só uma questão de aumento de efetivo. Não vejo diferença entre guarda e policial militar, se todos eles forem preparados.”
Mattos é partidário do movimento chamado “urbanismo tático”, que consiste em intervenções pontuais no ambiente urbano com repercussão na segurança pública. Por exemplo, aumentar a iluminação de uma praça onde ocorrem muitos roubos ou criar um parque em um local com alta criminalidade. E essas medidas cabem, principalmente, aos municípios.
“Não se pode delegar apenas ao estado, e muitas vezes à Polícia Militar e à Polícia Civil, o problema da segurança pública. A questão deve envolver outros atores”, afirma o ex-PGJ.
O procurador de Justiça criminal de São Paulo Márcio Sérgio Christino, autor de livros como Laços de Sangue: A História Secreta do PCC e Por Dentro do Crime: Corrupção, Tráfico, PCC, lembra que o STF já reconheceu que as guardas municipais integram o sistema de segurança pública. Portanto, as cidades não podem ficar inertes à criminalidade, o que legitima a criação da Força Municipal de Segurança do Rio, segundo ele.
“A situação do Rio de Janeiro é reconhecidamente crítica, o que justifica a imposição de medidas do Estado para reduzir a criminalidade e garantir a segurança pública”, afirma Christino. Para ele, a nova corporação pode ajudar a diminuir os delitos na capital fluminense.
“Qualquer forma de policiamento, qualquer forma de ação do Estado em prol do cidadão, principalmente em uma situação crítica como a que vivemos hoje, é positiva. E não vejo nenhum elemento concreto que desaconselhe a criação de uma força municipal de segurança, que aponte prejuízos que isso traria à sociedade”, opina o procurador.
Jurisprudência de STF e STJ
As atribuições das guardas municipais têm se tornado tema recorrente de julgados no STF e também no Superior Tribunal de Justiça. Em 2021, o Supremo autorizou o porte de arma de fogo para todas as guardas municipais do país (ADI 5.948, ADI 5.538 e ADC 38).
Até então, isso era restrito às capitais dos estados; aos municípios com mais de 500 mil habitantes; e aos municípios com população entre 50 mil e 500 mil, mas somente quando os guardas estivessem em serviço.
As cortes também têm se debruçado sobre casos que tratam da validade de provas obtidas por esses agentes em casos de tráfico de drogas. O fenômeno se insere em um contexto de expansão das guardas ante o encolhimento das polícias.
Desde 2022, o STJ vinha estabelecendo uma série de limites à atuação das guardas. No entanto, conforme mostrou a ConJur, a corte passou a revisar sua jurisprudência em função de uma tendência do STF de validar ações de policiamento ostensivo pelos guardas municipais.
Em outubro, a 1ª Turma do Supremo considerou, por maioria, válidas as provas obtidas por guardas municipais em uma busca domiciliar. No caso concreto, o acusado teria dispensado entorpecentes embalados ao avistar os agentes municipais, que, posteriormente, foram à residência do suspeito e encontraram o material ilícito.
Ainda na ocasião, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, votou para cassar um acórdão da 5ª Turma do STJ que absolvia o suspeito. Para ele, a guarda atuou legalmente ao efetuar a prisão em flagrante, uma vez que o tráfico de entorpecentes é crime permanente e, portanto, aquele que o comete continua em estado de flagrância.
Em junho de 2022, no entanto, também em decisão da 1ª Turma, o STF optara por restabelecer acórdão do TJ-SP, que absolveu um suspeito de tráfico. Ele havia sido preso em flagrante por guardas municipais.
Na ocasião, a guarda o abordou por causa de uma denúncia anônima, mas não encontrou nada ilícito em busca pessoal. Em seguida, os agentes foram a um terreno baldio que o suspeito teria ocupado, onde acharam drogas atribuídas a ele.
Também relator do caso, Alexandre entendeu à época que o flagrante foi legal. Já o ministro Luís Roberto Barroso, que proferiu o voto-vista vencedor, julgou que a prisão ultrapassou o limite do flagrante delito, que autorizaria a atuação de qualquer pessoa, e exigiu diligências investigativas, o que foge da competência constitucional dos agentes.
Policiamento ostensivo
No período entre as duas decisões divergentes, em 2023, o Plenário do STF decidiu, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 995, que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública.
Porém, para o ministro Edson Fachin, o reconhecimento das guardas como integrantes do Susp não as autoriza a exceder sua competência, em consonância com o entendimento de especialistas ouvidos pela ConJur.
Já em decisão monocrática mais recente, o ministro Flávio Dino entendeu ter sido legal a busca pessoal feita pela guarda contra um suspeito de roubo, por haver fundadas razões para isso.
Na ocasião, o magistrado cassou acórdão da 6ª Turma do STJ que absolveu o suspeito ao ver ilegalidade na busca. “Fica evidente a incongruência do ato reclamado com a ADPF 995, pois teríamos um órgão de segurança pública de mãos atadas para atender os cidadãos na justa concretização do direito fundamental à segurança”, disse Dino.
Em outro caso, o Supremo tem 4 votos a 1 pela validade da atuação policialesca das guardas municipais (RE 608.588). O caso tem repercussão geral (Tema 656).
Há duas correntes formadas: a do ministro Luiz Fux, relator da matéria, votou no sentido de que é constitucional atribuir às guardas o “exercício do policiamento preventivo e comunitário diante de condutas potencialmente lesivas a bens, serviços e instalações do município”.
Na prática, o voto de Fux permite, por exemplo, buscas pessoais, atividade ostensiva cumprida por policiais militares. E também permite a validação de provas obtidas em atuações desse tipo. O relator foi seguido pelos ministros Dias Toffoli, Flávio Dino e André Mendonça.
A outra corrente foi inaugurada pelo ministro Cristiano Zanin. Para ele, as guardas não têm atribuições ostensivas, nem investigativas.
Guardas armadas
Entre 2019 e 2023, o percentual de municípios nos quais a guarda municipal usa armas de fogo subiu de 22,4% para 30%. No mesmo período, o efetivo da Polícia Civil no Brasil registrou queda de 7,9%. Já o da Polícia Militar caiu 4,4%. Os dados são das Pesquisas de Informações Básicas Municipais (Munic) e Estaduais (Estadic), feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As pesquisas também revelaram que, nesses cinco anos, os municípios com até dez mil habitantes tiveram um aumento médio de 97% no uso de arma de fogo pelas guardas. Ou seja, em média, o número de guardas armados nessas cidades quase dobrou.
O estudo do IBGE também constatou uma ampliação do escopo das atividades e um aumento no número de atribuições das guardas municipais.
Embora a principal função das guardas ainda seja a proteção de bens, equipamentos e prédios do município, o patrulhamento de vias públicas passou a ser a segunda atividade mais desenvolvida por elas (em 86,8% dos casos).
Em 2019, as atividades de segurança em eventos e comemorações (83%) e de auxílio à PM (80,1%) estavam à frente do patrulhamento ostensivo.
Outro lado
Para tentar evitar que a proposta de Eduardo Paes acabe aprovada pela Câmara dos Vereadores do Rio, a Associação das Guardas Municipais do Brasil (AGM Brasil), em conjunto com outras entidades, apresentou representação de inconstitucionalidade ao Tribunal de Justiça fluminense para anular o Decreto 55.584/2025.
De acordo com o presidente da AGM Brasil, Reinaldo Monteiro, prefeitos não têm a atribuição constitucional de implantar qualquer outra força de segurança que não sejam as Guardas Municipais.
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