Da modulação de efeitos no IRDR julgado pelos tribunais estaduais
23 de janeiro de 2025, 15h13
O tema que se analisa é de extrema riqueza, de modo que a modulação dos efeitos de determinada decisão judicial é algo positivo, pois prestigia o importante princípio da segurança jurídica, além da previsibilidade judicial. É uma complexidade decisional admitida pelo direito constitucional para que o decidido seja mais plausível e justo perante a sociedade.
Por outro lado, existem posições contrárias no sentido de não haver previsão constitucional ou legal para a realização da modulação pelos tribunais locais, consubstanciando-se em um instituto processual unicamente vocacionado para o Supremo Tribunal Federal nas ações de controle concentrado de constitucionalidade (1).
Primeiramente, é necessário discorrer, ainda que brevemente acerca do incidente de resolução de demandas repetitivas.
Podem requerer a instauração do incidente o juiz ou relator, as partes e o Ministério Público ou a Defensoria Pública, respectivamente através de ofício, petição ou petição. É necessário que haja a efetiva repetição de processos, além do que a questão que embasa o incidente pode dizer respeito a direito material ou processual, não podendo haver discussão sobre questões fáticas (2).
Ademais, indispensável que a questão debatida, unicamente de direito, traga sérios riscos de ofensa à isonomia e a segurança jurídica, na medida em que possa causar um dano maior à sociedade (3).
Pois bem. O ponto de partida do presente ensaio deve ser o que consta no artigo 926 do Código de Processo Civil. Os tribunais devem uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Ou seja, os tribunais e os seus órgãos fracionários devem manter a coerência das decisões, no sentido de estabelecer um padrão cognitivo que atribua segurança e previsibilidade para os jurisdicionados, que, ao acionarem o Poder Judiciário, não podem ficar à mercê de elementos externos (4).
Não é incomum que se veja casos de um total desencontro decisório, onde determinado relator vota filiado a uma corrente, mas se posiciona de maneira diametralmente oposta quando compõe o quórum como vogal.
Modulação dos efeitos
Sabe-se que a modulação dos efeitos de determinada decisão judicial está legalmente expressa nas Leis 9.868/1999 (dispõe sobre o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade) e 9.882/1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental), respectivamente nos artigos 27 e 11.
Dessa leitura, é possível perceber que o instituto processual da modulação dos efeitos se restringe ao âmbito de atuação e competência do Supremo Tribunal Federal, em decorrência de efetiva previsão legal.
Como exposto acima, existe uma razão para o legislador assim prever, de modo que o sistema não pode ser alterado para que a modulação seja aplicada indistintamente pelos demais órgãos do Poder Judiciário, como vem ocorrendo.
Porém, um dispositivo do Código de Processo Civil traz interessante conteúdo. Me refiro ao artigo 927, parágrafo 3°.
Pode haver a modulação dos efeitos da decisão que altera a jurisprudência dominante ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, com base no interesse social e no princípio da segurança jurídica.
Julgamento de casos repetitivos
O Código de Processo Civil não deixa margens para dúvidas com os dizeres contidos no subsequente artigo 928, restando claro o que o legislador considera julgamento de casos repetitivos.
Desse modo, é possível chegar à conclusão de que as decisões proferidas nos incidentes de resolução de demandas repetitivas enquadram-se na definição do parágrafo 3°, sendo possível a construção de um raciocínio no sentido de que o Código de Processo Civil permite que haja a modulação dos efeitos das decisões dos tribunais estaduais e regionais federais, ao passo que o incidente pode por eles ser julgado (5).
Ainda no sentido da impossibilidade da utilização do instituto sob pena de banalização, tem-se que a modulação nasceu com a Lei 9.869/1999 e não está à disposição de todos os órgãos do Poder Judiciário.
Defende-se, também, um fator impeditivo, que seria a questão do quórum estabelecido por lei ao Supremo Tribunal Federal para a modulação dos efeitos, em que pese a lei atribuir ao regimento interno dos tribunais locais e regionais federais a organização do julgamento.
Nessa esteira, a Corte Constitucional Brasileira é vocacionada a uma missão diferente de todos os outros órgãos jurisdicionais, de modo que a faculdade de modular as suas decisões é uma medida excepcional e que não deve ser banalizada.
Afronta ao princípio da legalidade
Outro interessante argumento que aponta para o impedimento da concretização da modulação das decisões judiciais pelos demais tribunais pátrios é a afronta ao princípio da legalidade, pois quando um tribunal corrige e muda os rumos da sua jurisprudência, está afirmando que a lei não queria dizer o que restou decidido, mas sim o que a nova posição jurisprudencial afirma que quer dizer, e a modulação desses efeitos seria prejudicial ao princípio da legalidade e a confiança das partes. (6)
De outra borda, a posição que o autor do presente artigo defende vai em sentido contrário, com inclinações para uma correta utilização do instituto pelos demais tribunais nos casos autorizados, fato que consubstanciaria em um prestígio da segurança e previsibilidade jurídica.
Primeiramente, insta mencionar o fato de que a Lei 11.697 de 2008, em seu artigo oitavo, parágrafo quinto, menciona que: aplicam-se, no que couber, ao processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Distrito Federal, em face da sua lei orgânica, as normas sobre o processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
Desse modo, existe lei federal a autorizar a aplicação, no que couber, das normas sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
Logo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, através da lei de organização judiciária, está autorizado a modular os efeitos de suas decisões, mas apenas quando tratar-se do julgamento de ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo local.
Controle de Constitucionalidade
Importante salientar o fato de que a aludida autorização refere-se apenas ao controle concentrado de constitucionalidade, nada dispondo acerca do incidente de resolução de demanda repetitivas ou nenhum outro modelo de julgamento de casos repetitivos.
Pois bem. Como visto acima, com a conjugação dos artigos 926, 927 e 928, do Código de Processo Civil, é possível chegar-se à conclusão de que, além de não haver dispositivo a proibir a modulação dos efeitos de decisão acerca de casos repetitivos por tribunais locais, ela resta autorizada por lei.
Ademais, um interessante precedente oriundo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios elucida a questão e a possibilidade de modulação de efeitos naquele julgamento restou amplamente debatida.
O caso dizia respeito a um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), em que o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios atuou como fiscal da ordem jurídica, requerendo-se a matrícula de determinado adolescente, menor de 18 anos, em curso supletivo, afim de que fossem lhe aplicadas as provas pertinentes à obtenção imediata do diploma.
Desse modo, almejava-se a expedição do certificado de conclusão do ensino médio visando à instantânea colocação do jovem em estabelecimento de ensino superior, para que fosse possível a efetivação da matrícula no curso que havia sido aprovado em processo seletivo.
Veja-se que a situação que se apresentou para julgamento consubstanciava-se em importantíssima questão, pois inúmeros adolescentes encontravam-se e ainda se encontram em situação de aflição.
Existem aqueles que são aprovados em processo seletivo de ensino superior recebendo a autorização para cursarem o supletivo, mas também os que além de ter o ingresso em supletivo aprovado, recebem o diploma de conclusão do ensino médio e entram no estabelecimento de ensino superior.
E, pelo pouco tempo em que obtiveram a liminar, há aquela situação de angústia em relação ao resultado final do processo, razão pela qual foi instaurado o incidente de resolução de demandas repetitivas para sedimentar o assunto no âmbito do Distrito Federal, e por ser uma importante questão social, devem ser modulados os efeitos da decisão.
Jurisprudência prestigiada
A confiança das partes na orientação jurisprudencial pretérita, posteriormente alterada, deve ser prestigiada, em nítido caráter político, além de franca segurança jurídica e das complexas relações sociais (7).
A opinião do autor, como posto acima, amparada na conjugação dos dispositivos do Código de Processo Civil é no sentido da possibilidade da modulação a ser realizada pelos tribunais locais no julgamento dos incidentes de resolução de demandas repetitivas.
Porém, em que pese as aclamadas posições durante o julgamento do IRDR número 13 (0005057-03.2018.8.07.0000) do TJDFT, a Câmara de Uniformização entendeu por não modular os efeitos da decisão.
Apesar da ausência de modulação, merecem relevo alguns trechos do julgamento, registrado em notas taquigráficas, a favor da possibilidade do manejo do instituto.
Nota-se a preocupação da corte com o impacto dos efeitos da decisão na esfera jurídica daqueles jovens aprovados em processos seletivos de cursos superiores e já amparados judicialmente, ainda que em caráter precário, para matricularem-se em cursos supletivos ou, até mesmo, já cursando formações superiores.
Os extratos taquigráficos (constantes do acórdão) demonstram a preocupação do tribunal com os efeitos de tão importante decisão, mas não só.
A discussão posta em julgamento acerca da possibilidade ou não de se modular os efeitos da decisão prolatada em IRDR por tribunal de justiça local, alerta que o instituto ainda merece uma necessária maturação, pois é algo relativamente novo.
Segurança em decisões judiciais
Em que pese os dizeres da eminente vogal (acessíveis no acórdão), a modulação de efeitos encontra amparo legal pela conjugação do parágrafo 3° do artigo 927, com o artigo 928, do Código de Processo Civil.
Além disso, o decano do TJ-DFT Getúlio Moraes Oliveira afirmou que a modulação dos efeitos em casos como esse não ofende a lei, bem como é absolutamente desejável.
Todo o debate reforça a opinião do autor do texto. Primeiramente, entende-se ser um direito do particular insurgir-se em face de leis editadas pelo Estado eivadas de inconstitucionalidade, além do que o cidadão tem a prerrogativa de ter a segurança almejada nas decisões judiciais que alteram a jurisprudência e o entendimento acerca de determinado assunto.
Do mesmo modo, entende-se que qualquer decisão que paute a conduta da sociedade é passível de modulação (8). Não se discute que o instituto da modulação de efeitos de decisões judiciais nasceu no seio do Supremo Tribunal Federal, mas vem sendo cada vez mais utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça, por exemplo.
Decisão do STJ
Em recente decisão, o STJ, debruçando-se em grau de recurso sobre a mesma matéria objeto de análise do IRDR processado e julgado pelo TJ-DFT, entendeu pela modulação dos efeitos de sua decisão (Recurso Especial n° 1.945.879/CE).
Desse modo, honrando a missão constitucional que lhe é atribuída, o Superior Tribunal de Justiça modulou os efeitos da decisão para evitar insegurança, bem como a privilegiar a confiança do jurisdicionado no entendimento que vinha sendo sedimentado nos tribunais brasileiros. Tudo isso, para que se possa atribuir mais segurança ao universo jurídico das partes.
O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça aplica-se inteiramente aos julgamentos de casos repetitivos perante as cortes locais, como é o caso do incidente de resolução de demandas repetitivas.
Mesmo acerca de matéria controvertida no âmbito do Poder Judiciário, bem como ante a ausência de pedido, o ministro relator optou pela modulação dos efeitos da decisão, amparado na argumentação que gira entorno da segurança, previsibilidade e confiança.
Aliás, esse incidente é cabível quando houver, simultaneamente, a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
Nota-se que as hipóteses de cabimento são relevantes, devendo haver a repetição de processos que digam respeito a mesma questão que verse unicamente sobre o direito das partes, e o risco à isonomia e a segurança jurídica.
Esse risco, na opinião do autor, é o que embasa toda a argumentação acima exposta no sentido de que os tribunais locais estão autorizados a modularem os efeitos de suas decisões nesse tipo de incidente.
Ora, se o Código de Processo Civil permitiu julgamento de tamanha importância nas cortes locais de justiça, não há motivo para que se proíba ou restrinja a modulação dos efeitos de determinada decisão qualificada.
Em decorrência de tudo quanto exposto e defendido acima, com o devido respeito às posições em contrário, é de se concluir pela possibilidade da modulação dos efeitos do acórdão proferido por tribunal local em incidente de resolução de demandas repetitivas.
Medida excepcional do colegiado
Claro que a modulação dos efeitos de determinada decisão é algo que deve ser encarado como medida excepcional pelo colegiado. É importante ressaltar que esse instituto é algo voltado, via de regra, aos tribunais, de modo que o processo em análise deve tratar de controle de constitucionalidade ou matérias repetitivas que possam causar algum tipo de consequência deletéria para a comunidade.
Assim, é possível a modulação dos efeitos das decisões vinculantes por parte do STF e do STJ, de modo que fica mais fácil a sua adequação em razão da missão constitucional que lhe é atribuída.
No que diz respeito ao cerne do texto, arremata-se pela possibilidade da modulação também pelos tribunais locais, seja pela conjugação dos artigos do Código do Processo Civil que enquadram o incidente de resolução de demandas repetitivas, seja pela natureza da decisão ou o seu impacto na sociedade.
Sobretudo, a possibilidade de modulação pelos tribunais locais se baseia na segurança jurídica, na previsibilidade das relações sociais, e, principalmente, na confiança das partes na lei e na séria construção jurisprudencial desempenhada pelos tribunais locais em casos de elevada repercussão social, atuando a modulação no interesse da própria sociedade.
(1) QUINTAS, Fábio. Modulação dos efeitos não pode ser banalizada pelo Poder Judiciário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-ago-09/observatorio-constitucional-modulacao-efeitos-nao-banalizada-poder-judiciario/. Acesso em: 26/10/2024.
(2) MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. O Novo Processo Civil, 3ª ed., São Paulo, RT, p. 611
(3) GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado, 10ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 931
(4) DIDIER JR., Freddie, BRAGA, Paula Sarno e DE OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 2, 10ª ed., 2015, São Paulo, Editora JusPodivm, p. 474
(5) SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna e CHAVES, Luciano Athayde. A prospectividade da alteração da jurisprudência como expressão do constitucionalismo garantista: uma análise expansiva do art. 927, § 3º, do NCPC, in Revista de Processo, São Paulo, v. 41, n. 259, p. 437-468, set. 2016.
(6) FILHO, Carlos Mário Velloso. Modulação dos efeitos das decisões do STF e STJ. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/274538/modulacao-dos-efeitos-das-decisoes-do-stf-e-do-stj. Acesso em 24/10/2024.
(7) LUIZ RODRIGUES WAMBIER e EDUARDO TALAMINI, Curso Avançado de Processo Civil, Vol. 2, 2018, 17ª ed., São Paulo. RT, p. 721/722
(8) Podcast Radio Decidendi. Eduardo Arruda Alvim. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/5BXpc6acAjGTG8Jji6uwb0. Acesso em 22/10/2024.
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