CRSFN dá importante passo no reconhecimento de prescrição em processos administrativos sancionadores
23 de janeiro de 2025, 9h15
Em agosto do ano passado, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN, mais conhecido como Conselhinho) promoveu relevante avanço nas discussões envolvendo o reconhecimento de prescrição da pretensão punitiva da administração pública federal em relação aos seus administrados ao reconhecer sua ocorrência em processo que levou mais de cinco anos para ser julgado em instância recursal [1].
A decisão merece atenção e festejo, pois enfrentou um dos debates mais longevos e controversos protagonizados pela doutrina e pelos próprios órgãos administrativos ao apreciarem acusações no âmbito de processos de caráter sancionador ou disciplinar nas últimas décadas.
Tal debate decorre das diferentes interpretações que podem ser conferidas aos artigos 1º e 2º da Lei nº 9.873/99, a qual estabelece os prazos prescricionais aplicáveis ao exercício de ação punitiva pela administração pública federal e institui: a prescrição ordinária (ou quinquenal) da pretensão punitiva, que veda a persecução de administrados após o prazo de cinco anos contados da prática do suposto ato irregular; e a chamada prescrição intercorrente, que veda a continuidade da persecução que se encontre paralisada por mais de três anos.
Para bem compreender o regime prescricional vigente, vale lembrar que um processo administrativo sancionador instaurado pela CVM envolve as seguintes etapas até o seu encerramento definitivo:
1. Etapa investigativa: inicialmente, as áreas técnicas da CVM, no exercício de seu poder de fiscalização, identificam e investigam potenciais desvios de conduta que possam resultar em infração a dispositivos legais ou regulamentares de competência da autarquia. A instauração de um processo administrativo formal de investigação interrompe a prescrição ordinária de cinco anos;
2. Etapa sancionadora: sempre que entender que dispõe de elementos conclusivos quanto à autoria e à materialidade de eventual infração, a área técnica instaura um processo administrativo sancionador, mediante a lavratura de termo de acusação específico, e os acusados são intimados para apresentar defesa. Com a manifestação da acusação e da defesa, normalmente se tem a consolidação da fase de instrução e o processo sancionador, após sorteado para a relatoria de um diretor, aguarda uma fase de maturação de sua análise até o efetivo julgamento pelo Colegiado da CVM;
3. Etapa recursal: em caso de condenação pelo Colegiado da CVM, o acusado tem a prerrogativa de recorrer da decisão ao CRSFN. Após sua interposição, o recurso também é sorteado para a relatoria de um conselheiro e segue procedimento semelhante de maturação de sua análise até o efetivo julgamento pelo CRSFN. Caso o processo fique paralisado por mais de 3 anos, em qualquer uma das etapas, caracteriza-se prescrição intercorrente.
Aplicação das hipóteses legais de prescrição
As controvérsias envolvendo a aplicação das hipóteses legais de prescrição tendem a estar mais relacionadas ao artigo 2º da Lei nº 9.873/99, que utiliza redação genérica e pouco clara ao enunciar os atos e acontecimentos que interromperiam os prazos prescricionais previstos no artigo 1º. O inciso II do artigo 2º, por exemplo, prevê a interrupção da prescrição em razão da prática de “qualquer ato inequívoco que importe apuração do fato”, o que, na análise de casos concretos, acaba por gerar mais dúvidas do que respostas na identificação de quais atos realmente possuem o caráter apuratório apto a gerar a referida interrupção.
De um lado, particulares acusados em processos administrativos de natureza sancionadora ou punitiva costumam defender uma interpretação mais restritiva das hipóteses de interrupção da prescrição previstas em lei, com base no entendimento de que apenas atos efetivos de investigação e produção de provas seriam aptos a interromper tanto a prescrição intercorrente quanto a prescrição ordinária, além de serem dotados da prerrogativa constitucional que assegura a todos “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Por força dessa prerrogativa, não se admite, ao menos em tese, que administrados permaneçam sujeitos à persecução estatal por períodos exorbitantes.
Lamentavelmente, os órgãos administrativos têm, em sua maioria, adotado interpretações mais amplas e extensivas. Frequentemente, tais órgãos têm considerado aptos a interromper a prescrição atos que não envolvem efetivo caráter apuratório ou investigativo, a exemplo de meras redistribuições do processo a outros relatores em função de término de mandato, remessas formais entre diferentes repartições internas e outras movimentações de natureza eminentemente burocrática.
Essa linha de interpretação, que já há algum tempo vem sendo consolidada pelos órgãos julgadores, tanto em relação à prescrição ordinária quanto à prescrição intercorrente, tem possibilitado, na prática, a perpetuação de processos administrativos sancionadores ou disciplinares por períodos de 10, 15 ou mesmo inacreditáveis 20 (!) anos entre a data de ocorrência das condutas analisadas e a data do julgamento definitivo do processo administrativo [2].
Prescrição da pretensão punitiva
A aplicação de interpretação extensiva das hipóteses de interrupção de prescrição provoca, naturalmente, um alongamento excessivo dos períodos de maturação da análise do processo pelo órgão julgador.
Não obstante, a recente decisão do CRSFN no âmbito do Processo nº 10372.100299/2019-45 felizmente caminha em sentido diverso.
Por maioria, o CRSFN reconheceu a ocorrência de prescrição da pretensão punitiva em razão do decurso de mais de cinco anos entre a data do proferimento de decisão de 1ª instância pela CVM e a data do julgamento definitivo pelo próprio CRSFN, o que resultou na extinção do processo sem resolução de mérito em relação aos recorrentes. De acordo com os fundamentos apresentados, a contagem da prescrição ordinária deve ser reiniciada com o proferimento de decisão pelo órgão de 1ª instância até que, eventualmente, seja novamente interrompida mediante a verificação de qualquer dos eventos listados no artigo 2º da Lei nº 9.873/99.
A despeito de terem ocorrido, durante o período, redistribuições do processo a diferentes relatores, prevaleceu o entendimento de que o ato apto a interromper a prescrição ordinária deve ser efetivamente qualificado como apurador dos fatos e contribuir para o deslinde do mérito do caso. No caso concreto, o conselheiro-relator Pedro Frade de Andrade, que proferiu voto vencedor, expressamente afastou a possibilidade de determinados atos — tais como “redistribuições dos autos a distintos relatores”, “assinatura de relatório”, “pedido de parecer sobre a tempestividade do recurso” e “recebimento de intimação quanto à decisão da CVM pelos recorrentes” — serem aptos a interromper a prescrição ordinária (ou quinquenal).
A interpretação em questão deveria alcançar a prescrição intercorrente, tendo em vista que o racional jurídico e as razões da existência do instituto da prescrição são os mesmos para ambas as hipóteses.
Não à toa esse entendimento já vem prevalecendo em algumas decisões judiciais recentes, que reconhecem a prescrição intercorrente em casos de inércia do órgão julgador por mais de três anos, afastando a caracterização de movimentações meramente burocráticas (como a troca de relatores) como atos interruptivos do prazo prescricional [3].
Posicionamento do CRSFN
Ainda assim, não há dúvidas de que, além de tecnicamente correta em relação à prescrição ordinária, o posicionamento do CRSFN é técnico e corajoso, na medida em que supera desafios e dificuldades que os órgãos da administração pública costumam enfrentar para reconhecer a própria inércia no âmbito da persecução e da condução dos processos sob sua supervisão. Embora a tomada de decisões dessa natureza envolva fundados desconfortos — já que pode levar, no limite, a eventual questionamento da conduta de servidores pela inércia —, tais circunstâncias não podem obstar a correta interpretação das leis e a garantia das prerrogativas legais e constitucionais conferidas aos administrados.
Além disso, para que de fato os efeitos benéficos da nova orientação sejam percebidos, é fundamental a nova interpretação passe a ser também reconhecida e aplicada pela CVM. Assim como o CRSFN reconheceu que o seu atraso para o julgamento de recurso cuja decisão de 1ª instância tenha sido proferida há mais de cinco anos configura prescrição ordinária, a CVM deveria adotar a mesma postura ao avaliar casos em que o intervalo entre a apresentação das defesas pelos acusados e o julgamento também seja superior a cinco anos, sem que nenhum ato efetivo de dilação probatória tenha sido praticado.
Nesses casos, também deveriam ser seguidos os mesmos critérios adotados pelo CRSFN e corroborados pelo Poder Judiciário quanto ao conceito de “ato inequívoco de apuração”, de modo que eventuais atos meramente burocráticos não sejam considerados aptos a interromper os prazos prescricionais aplicáveis.
A despeito de possuírem autonomia administrativa e organizacional, é de todo indesejável, do ponto de vista jurídico, que diferentes instâncias de uma mesma estrutura decisória possuam interpretações divergentes sobre temas centrais e que sejam capazes de restringir de forma tão decisiva os direitos dos administrados. É o que naturalmente se espera de autarquia séria, comprometida e com escuta ativa como a CVM.
[1] Decisão na 485ª sessão de julgamento, no âmbito do Processo nº 10372.100299/2019-45. Acórdão disponível em: SEI/MGI – 44757973 – CRSFN – Acórdão Inteiro Teor.
[2] A última versão disponível do Relatório da Atividade Sancionadora divulgado pela CVM, referente ao terceiro trimestre de 2024, demonstra, por exemplo, que até aquele período ainda existiam processos abertos desde 2015 com potencial sancionador – ou seja, ainda em fase investigativa e sem definição sobre a lavratura ou não de termo de acusação (CVM. Relatório da Atividade Sancionadora – Julho a Setembro 2024, p. 19. Disponível em: Relatório da Atividade Sancionadora 3º Tri de 2024 Integral Publicação.pdf. Acesso em 08 de janeiro de 2025).
[3] Nesse sentido: (i) “No contexto de processos administrativos sancionadores, é essencial que haja atos concretos de apuração ou julgamento que interrompam o prazo prescricional, de modo que atos de movimentação meramente burocrática ou a redistribuição do processo a outro relator não configurem efetivo impulso processual, capaz de interromper a contagem do prazo prescricional” (SÃO PAULO. Justiça Federal da 3ª Região – 1º grau. Processo n. 5019143-58.2024.4.03.6100, Juiz Federal: Marco Aurelio De Mello Castrianni. São Paulo, 24 set. 2024); e (ii) “Ora, ato inequívoco é aquele que não deixa dúvidas, é claro e evidente. É um ato que não pode possuir mais de uma significação, permitir duplo sentido ou ensejar interpretação errônea. E a redistribuição de processo a outro relator não tem essa qualificação, já que não se trata de nenhum ato visando à investigação dos fatos.” (SÃO PAULO. Justiça Federal da 3ª Região – 1º grau. Processo n. 5001625-55.2024.4.03.6100, Juiza Federal: Sílvia Figueiredo Marques. São Paulo, 29 mai. 2024).
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