Opinião

Consolidação substancial: aval da empresa urbana e dívidas do produtor rural na recuperação judicial

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23 de janeiro de 2025, 21h15

A recuperação judicial, conforme regulamentada pela Lei 11.101/2005, visa à superação das crises econômicas que afetam empresas, priorizando a preservação da sua função social, a manutenção dos empregos e a proteção dos direitos dos credores, conforme estipulado no artigo 47. Com as mudanças introduzidas pela Lei 14.112/2020, a consolidação substancial passou a ser utilizada como um meio de unificar os ativos e passivos de diferentes empresas que compõem um mesmo grupo econômico.

Ocorre que, nesse contexto, surgiu o questionamento quanto à possibilidade de suspender os efeitos dos avais junto à consolidação substancial, mais especificadamente em casos que envolvem empresários que operam simultaneamente como produtores rurais e por meio de sociedades empresariais.

Pois bem.

A consolidação substancial refere-se à prática de considerar como um único ente econômico um conjunto de empresas que, embora formalmente distintas, operam de maneira integrada. Esse conceito baseia-se na ideia de que, apesar da formalidade, a interdependência entre essas entidades pode ser evidente.

O objetivo é facilitar a recuperação de um grupo econômico através de um plano único, que trate conjuntamente ativos e passivos, conforme previsto no artigo 69-J trazido pela Lei nº 14.112/2020.

Difere-se, portanto, da consolidação processual, a qual determina a reunião de processos distintos em um único procedimento judicial, geralmente em casos de conexão, a fim de promover a economia processual e a celeridade. Contudo, a consolidação processual não implica o tratamento conjunto de ativos e passivos — característica da consolidação substancial.

Produtor rural individual

O produtor rural que atua de forma individual possui uma situação jurídica distinta em comparação às sociedades empresariais. A Lei nº 11.101/2005 prevê a recuperação judicial para empresários e sociedades, mas difere o tratamento do produtor rural, uma vez que possui características próprias que merecem especial atenção.

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De acordo com o Código Civil, no artigo 966, o produtor rural é aquele que exerce atividade rural de maneira profissional. Entretanto, para que essa atividade seja reconhecida como empresarial, é necessário que o produtor esteja registrado na Junta Comercial, conforme estipulado no artigo 967 do mesmo código. Esse registro é fundamental para que o produtor tenha acesso aos benefícios da recuperação judicial, pois a formalização é essencial para a validação de sua condição como empresário.

Além disso, a situação do produtor rural na recuperação judicial é complexa, dada a natureza dos bens que possui e a sazonalidade de suas atividades. O produtor rural, que muitas vezes não registra formalmente suas propriedades, enfrenta desafios ao buscar a recuperação, especialmente se visar a consolidação substancial em sua atuação por atuar também por meio de outra sociedade empresarial.

O artigo 6º, §1º, da Lei nº 11.101/2005 determina que, durante a recuperação judicial, as execuções contra o devedor principal são suspensas. No entanto, o artigo 49, §1º, especifica que essa suspensão não se aplica a coobrigados, fiadores e avalistas, permitindo que os credores continuem a exigir o pagamento de suas dívidas.

Suspensão dos avais no âmbito da consolidação substancial

Para que o produtor rural que atua também com outra atividade empresarial possa justificar o pedido de suspensão dos avais no âmbito da consolidação substancial, será crucial demonstrar que a interdependência econômica entre as empresas é legítima para fundamentar o tratamento conjunto dos passivos.

Neste sentido, Fábio Ulhoa Coelho observa que “a consolidação substancial é viável em casos em que as sociedades operam de maneira integrada, onde a recuperação depende de um tratamento unitário dos créditos” (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2022).

Embora a lei estabeleça restrições, algumas estratégias podem ser exploradas para fundamentar a suspensão dos avais, a exemplo:

  • demonstração da interdependência econômico-financeira;
  • princípio da preservação da empresa;
  • aprovação dos credores por meio do plano de recuperação judicial, demonstrando-se a necessidade do tratamento integrado para soerguimento do grupo.

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso proferiu também um interessante acórdão, no qual abordou a possibilidade de consolidação substancial, deferindo-a ao constatar a interconexão e a confusão patrimonial entre os ativos e passivos dos requerentes, conforme exigido pelo artigo 69-J da Lei 11.101/2005:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – PRODUTORES RURAIS – INSCRIÇÃO NA JUNTA COMERCIAL POUCOS DIAS ANTES DA PROPOSITURA DA DEMANDA – VIABILIDADE – TEMA 1145 DO STJ – PROCESSAMENTO DA RJ DEFERIDO – REQUISITOS LEGAIS PREENCHIDOS – DOCUMENTAÇÃO OBRIGATÓRIA APRESENTADA – SITUAÇÃO CONFIRMADA EM PERÍCIA – CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL – CRITÉRIOS CONFIGURADOS – PEDIDO DEFERIDO – DECISÃO MANTIDA – RECURSO NÃO PROVIDO. “Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro.” (Tema 1145 do STJ). Admite-se o processamento da Recuperação Judicial quando os requerentes apresentam a documentação obrigatória e cumprem os requisitos legais. Defere-se a consolidação substancial se há interconexão e confusão entre ativos ou passivos dos devedores e, cumulativamente, o preenchimento de no mínimo duas das situações elencadas no art. 69-J da Lei 11.101/05.” (TJ-MT – AGRAVO DE INSTRUMENTO: 1022926-72.2023.8.11.0000, relator: RUBENS DE OLIVEIRA SANTOS FILHO, data de julgamento: 8/5/2024, 4ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 12/5/2024)

Neste mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também entendeu pelo reconhecimento de grupo econômico entre as pessoas físicas e jurídicas quanto aos produtores rurais:

“Agravo de instrumento – Recuperação judicial – Produtor rural – Decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial em relação às pessoas jurídicas e às pessoas naturais – Inconformismo quanto à extensão – Descabimento – Grupo econômico em recuperação judicial indissociável e sinérgico entre as sociedades e as pessoas naturais nominadas – Decisão recorrida reformada – Recurso desprovido e agravo interno prejudicado.”

(TJ-SP – AI: 22709262720198260000 SP 2270926-27.2019.8.26.0000, Relator: Maurício Pessoa, data de julgamento: 25/06/2020, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, data de publicação: 2/7/2020)

Ainda, no Recurso Especial nº 1.532.943-MT, o STJ confirmou que a supressão de garantias reais e fidejussórias no âmbito da recuperação judicial é possível desde que o plano seja aprovado pelas classes de credores, conforme previsto no § 1º do artigo 50 da Lei 11.101/2005.

Neste último caso, o STJ reconheceu a validade de um plano que previa expressamente a supressão dessas garantias, desde que aprovado em assembleia, evidenciando-se que, em uma ponderação de interesses, o objetivo de viabilizar a recuperação econômica pode prevalecer, desde que os credores aprovem as condições do plano, vinculando-se todos os credores aos seus termos.

Soluções jurídicas inovadoras

Esses julgados, embora não tratem única e tão somente dos avais, sugerem uma abertura para soluções jurídicas inovadoras que visem à proteção da viabilidade dos grupos econômicos.

Entretanto, Sacramone enfatiza a importância de aplicar critérios rigorosos para evitar abusos no uso da consolidação substancial e legitimar a proteção de interesses dos credores, aduzindo-se que: “A consolidação substancial deve ser reservada a casos em que há uma verdadeira interdependência entre os ativos e passivos das empresas, de forma que a separação dos passivos inviabilizaria a recuperação do grupo econômico como um todo, especialmente quando há confusão patrimonial ou operação integrada, justificando-se o tratamento unificado [1].

A análise da consolidação substancial e da possibilidade de suspensão dos avais na recuperação judicial revela um campo fértil para inovações jurídicas que podem beneficiar tanto os devedores quanto os credores.

A legislação brasileira, embora estabeleça restrições em relação à proteção dos coobrigados, abre espaço uma interpretação flexível que pode ser utilizada para argumentar em favor da suspensão dos avais, especialmente quando se demonstra a interdependência econômica e a viabilidade da recuperação do núcleo produtivo.

Como evidenciado nos precedentes trazidos, a jurisprudência está começando a reconhecer a legitimidade da consolidação substancial como uma ferramenta válida para facilitar a recuperação de grupos empresariais, especialmente para aqueles que também operam como produtores rurais. Essa abordagem não apenas serve para proteger os direitos dos credores, mas também para garantir a continuidade das atividades empresariais e a preservação dos postos de trabalho, alinhando-se aos objetivos fundamentais da Lei nº 11.101/2005.

 


Referências

https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-mt/2485988645

https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201501163444&dt_publicacao=10/10/2016

https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-sp/892911350

 


[1] SACRAMONE, Marcelo. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

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