Opinião

A necessária revisão da súmula Carf nº 161

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23 de janeiro de 2025, 7h12

Não sem críticas à época, a 3ª Turma da Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) editou, em 3/9/2019, a Súmula Carf nº 161, cristalizando o entendimento, tornado vinculante por força da Portaria MF nº 410, de 12/12/2000, de que “O erro de indicação, na Declaração de Importação, da classificação da mercadoria na Nomenclatura Comum do Mercosul, por si só, enseja a aplicação da multa de 1%, prevista no artigo 84, I da MP nº 2.158-35, de 2001, ainda que órgão julgador conclua que a classificação indicada no lançamento de ofício seria igualmente incorreta”.

Para exemplificar do que se trata a súmula, imagine-se que determinado importador declara estar nacionalizando um produto qualquer com classificação fiscal “A”. Após o desembaraço, a fiscalização, em procedimento regular de revisão aduaneira, conclui que a classificação correta do produto importado é, na verdade, “B”, daí lançando os tributos recolhidos a menor (imagine-se ser o caso), acrescidos também da penalidade que aqui se trata. Irresignado, o importador interpõe recursos administrativos, havendo as instâncias administrativas de julgamento decidido, em última instância, que o produto importado encontra, na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), classificação diversa da que lhe foi conferida pelo importador e pela fiscalização aduaneira — a classificação fiscal “C”, contexto em que o aludido verbete sumular autoriza a manutenção da penalidade isolada prevista no art. 84, I, da MP nº 2.158-35, de 2001, não obstante o cancelamento, absolutamente necessário e não sujeito a questionamentos, do crédito tributário lançado em face dos tributos eventualmente não recolhidos.

A justificativa que se tem apresentado nos julgados que fundamentam a edição da súmula é a de que, mesmo quando a classificação fiscal indicada pelo Fisco está igualmente incorreta, remanesce demonstrado, de modo inequívoco, o erro de classificação fiscal, a ensejar, por via de consequência, a manutenção da penalidade isolada.

Discordamos.

A primeira razão para a nossa discordância é a de que o fato de o erro de classificação fiscal persistir, vale dizer, o fato de que, no caso exemplificado, a classificação fiscal correta não ser a adotada, quer pelo importador, quer pelo Fisco, não autoriza, só por isso, a manutenção da multa isolada, simplesmente porque, se assim fosse, também deveria ser mantida a exigência do crédito tributário que decorre da falta de recolhimento dos tributos aduaneiros, no caso em que, por exemplo, a classificação fiscal “C” (a correta, segundo a decisão administrativa irreformável) se apresentasse com alíquotas de II e de IPI-Importação maiores que aquelas indicadas pelo importador na declaração de importação (DI). Afinal, neste caso, também continuaria a haver a falta de recolhimento de tributos, assim como, é o que se defende, o erro de classificação (“Onde há a mesma razão, há de se aplicar o mesmo direito”). A questão, como se verá, não se resolve no plano da norma substantiva que prevê a hipótese de incidência da penalidade aduaneira, mas no plano dos requisitos do ato administrativo.

Spacca

A segunda razão é a de que, para apontar um erro de classificação fiscal, o Fisco deve indicar as regras de classificação fiscal não observadas e a classificação fiscal correta em face de sua aplicação. E assim é porque, não fosse pelo caráter norteador das Regras de Interpretação do Sistema Harmonizado – as quais se direcionam a apontar como se chega à correta classificação fiscal do produto importado, não à errada! —, a administração tributária deve informar ao administrado (no caso, o importador) não apenas o erro que cometera, mas, também, como deveria ter agido, a fim de que o erro não venha a se repetir, com todas as consequências daí advindas [1]. Assim, não se pode afirmar errada uma determinada classificação fiscal, senão indicando a correta e apontando as regras que autorizam esta nova classificação fiscal. E isso, cabe destacar, compete à autoridade lançadora, não à julgadora.

A terceira e última razão é a seguinte: o lançamento tributário é, como sabido, um ato administrativo e, como tal, apresenta determinados requisitos cuja não observância enseja a declaração de sua nulidade. Um desses requisitos é a motivação, consistente no relato, em linguagem adequada, dos motivos do ato – o fato do mundo fenomênico que autoriza o lançamento em face do direito aplicável. Noutras palavras, é a exposição, por escrito e em forma compreensível, de que os seus pressupostos de fato realmente ocorreram, autorizando, por isso mesmo, a aplicação da hipótese de incidência tributária.

Como já afirmou o também ex-conselheiro do Carf Luís Eduardo G. Barbieri em livro recentemente publicado, a “autoridade fiscal, ao efetuar o lançamento, deve demonstrar e comprovar que a situação fática (fato jurídico relatado) se enquadrou perfeitamente no pressuposto de direito (dispositivo legal). Deve-se, portanto, demonstrar a subsunção entre o evento, ocorrido no mundo fenomênico e relatado na linguagem competente – fato jurídico, à hipótese de incidência tributária” [2]. Um dos equívocos apontados, na mesma obra, quanto à motivação do lançamento é a ausência, insuficiência ou o erro na descrição dos fatos do auto de infração [3], erro como o que ora tratamos em que as classificações fiscais indicadas pelo importador e pelo Fisco estão igualmente incorretas, uma vez que, na sua motivação, a autoridade fiscal deve demonstrar, como já defendido, o equívoco que laborou o contribuinte-importador, mediante a análise das regras de interpretação que seriam aplicáveis ao produto importado e a indicação, em face dessas mesmas regras, da classificação fiscal correta.

E desse equívoco de fundamentação não podem surgir quaisquer consequências jurídico-tributárias, quer a cobrança de tributos não pagos ou pagos a menor no desembaraço, quer a cobrança de multas isoladas, ainda que tenha o importador errado ao classificar o produto que importou. Permitir que se mantenha a parcela do crédito tributário lançado decorrente da penalidade isolada significa autorizar a modificação da fundamentação original do lançamento, substituindo-a pela adotada no contencioso administrativo.

Conclusão

É um erro limitar a análise da procedência da multa isolada por erro de classificação fiscal ao tipo penal-tributário. Se houve o recolhimento a menor, ou se o erro de classificação fiscal realmente existiu, isso pouco importa para aferir a higidez do lançamento efetuado na hipótese aqui aventada. O lançamento é um ato administrativo, e, como tal, eventual vício em um de seus requisitos legais der validade enseja, pura e simplesmente, a sua nulidade por vício material, cancelando-se integralmente o crédito tributário lançado. E todo ele, registre-se, inclusive o que decorre da multa isolada aqui referida.

 


[1] O art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 9.784, de 1999, impõe que, nos processos administrativos, a atuação da Administração Pública se dê segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.

[2] BARBIERI, Luís Eduardo Garrossino, Nulidades no Lançamento tributário: vícios formais e materiais, Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 206.

[3] Pág. 207.

 

Autores

  • é advogado e consultor. Exerceu os cargos de Auditor-Tributário da Sefaz/PE e de Auditor-Fiscal da Receita Federal, na qual atuou na fiscalização aduaneira, na Delegacia da Receita Federal de Julgamento e no Carf, como conselheiro, presidente de Turma Ordinária, membro da 3ª Câmara Superior de Recursos Fiscais e colaborador.

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