Escritos de Mulher

Retrospectiva de julgamentos de 2024: STF e os desafios para a Justiça

Autores

22 de janeiro de 2025, 10h15

Enquanto temas de grande relevância — como a validade da revista íntima vexatória nos presídios e a regulamentação de apostas online — aguardam o fim do recesso judiciário para serem apreciados pelo Supremo Tribunal Federal, nada mais apropriado do que revisitar alguns dos julgamentos mais marcantes do último ano. Deliberações que não apenas consolidaram entendimentos jurídicos, mas também trouxeram à tona debates cruciais para toda a sociedade.

No presente artigo, reunimos alguns dos casos considerados pelo próprio STF como os mais emblemáticos e de maior repercussão social de 2024, destacando os principais pontos de cada julgamento para, assim, oferecer um panorama geral das ações da corte no último ano.

1. Abordagem policial e filtragem racial

No julgamento do Habeas Corpus 208.240/SP, a Suprema Corte se debruçou sobre uma questão fundamental para o equilíbrio entre segurança pública e a proteção de direitos fundamentais: a abordagem policial e a filtragem racial, prática discriminatória na qual agentes de segurança, ao abordar uma pessoa, utilizam fatores como a cor da pele como pretexto para a ação, legitimizando a violência estatal com base em estereótipos raciais que, lamentavelmente, ainda permeiam o sistema de justiça.

O relator deste HC, ministro Edson Fachin, pontuou com veemência que “o sistema de justiça ainda não deu mostras de que tenha desativado a rede de estereótipos que atribui aos corpos negros sentidos sociais negativos, legitimando violências, inclusive estatais, como é o caso do encarceramento em massa de pessoas negras, em particular por crimes de traficância”, destacando, ainda, que o elemento raça é determinante para a distinção dos sujeitos vítimas da letalidade das atividades policiais, um ponto central no debate sobre a eficácia e a moralidade das abordagens policiais com base em perfis raciais.

Apesar das colocações do ministro, no caso em questão a ordem foi denegada, pois a corte entendeu que a abordagem policial não se deu em razão de critérios raciais, mas sim pela “presença do paciente em conhecido ponto de tráfico de drogas” e por sua “postura”, que teria levantado suspeitas. De acordo com a decisão, ao perceber a presença policial, o indivíduo alterou sua expressão, caminhou de forma disfarçada e descartou algo no chão.

Apesar do indeferimento, a decisão consolidou importante tese: “A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física”.

O ministro Fachin, ao examinar essa realidade, observou que “é passado da hora de o senso comum de que pessoas negras são naturalmente voltadas para a criminalidade ser traduzido pelo Poder Judiciário como histórica e sistemática violação de direitos, normalizada pelas instituições de justiça”, ressaltando o quanto as práticas discriminatórias se sustentam em narrativas racistas, reforçadas por estereótipos que criminalizam, muitas vezes sem fundamento, os corpos negros.

Além disso, argumentou que “a discricionariedade policial para o acesso ao corpo das pessoas, espectro mais sensível da intimidade, requer filtragens, entre elas, a forma como estes corpos são significados no tempo presente, no contexto de uma sociedade que trava uma luta contra o racismo estrutural e institucional”.

Esse entendimento é de significativa importância prática, pois, além de reforçar as limitações à atuação policial, contribui para a proteção dos direitos individuais, ao garantir que a atuação do Estado se baseie em fundamentos objetivos e não em critérios discriminatórios, acentuando a patente necessidade de reexame da atuação policial, levando em consideração o contexto histórico e as lutas contra o racismo que ainda permeiam as instituições brasileiras.

2. Poder investigatório do Ministério Público: alcance, parâmetros e limites (Tema definido pelo Supremo como de Direito Constitucional)

No RE 593.927, julgado em 2015, o Supremo Tribunal Federal acolheu a arguição de inconstitucionalidade apresentada pelo Ministério Público e fixou a Tese 184, que ratificou a competência do órgão para promover investigações de natureza penal por autoridade própria. Esse entendimento levou à edição da Resolução CNMP nº 181/2017, que regulamenta o Procedimento Investigatório Criminal (PIC) e estabelece as diretrizes para a atuação investigatória do Ministério Público.

Quase uma década após esse julgamento, a questão foi novamente discutida no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 2.943, 3.309 e 3.318, ocasião em que a Suprema Corte reafirmou e aprofundou o entendimento sobre o alcance, os parâmetros e os limites do poder investigatório do Ministério Público. O STF, então, ratificou o entendimento de que a condução de investigações criminais não é exclusividade da polícia judiciária, legitimando a atuação investigatória do Ministério Público, desde que observados os direitos e garantias fundamentais, as prerrogativas da advocacia e reservas constitucionais de jurisdição.

Spacca

Além disso, o Supremo fixou que, no exercício de sua função investigatória, o Ministério Público deve garantir a comunicação ao juiz sobre a instauração e conclusão do procedimento, bem como o cumprimento dos prazos do inquérito policial e a solicitação de autorização judicial para prorrogações de prazos. Ainda, devido a atribuição concorrente, o Ministério Público deve ter acesso a todos os meios necessários para fundamentar a denúncia, incluindo a coleta de provas que sustentem a acusação, assegurando, assim, a efetividade e a legalidade do processo.

3. Inconstitucionalidade da desqualificação da vítima em processos criminais de violência contra a mulher

 O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero de 2021 trouxe diretrizes fundamentais para garantir que o exercício jurisdicional se dê de forma a evitar a repetição de estereótipos e a perpetuação de desigualdades, tendo como objetivo primordial transformar o processo judicial em um espaço de rompimentos das culturas de discriminação e preconceito ao promover a igualdade de gênero e a dignidade humana. Em 2023, a Resolução nº 492, de 17/3/2023, do CNJ, consolidou essas diretrizes, tornando obrigatória sua adoção por todo o Poder Judiciário.

A concretização desses princípios foi reforçada pela ADPF 1.107/DF, que ratificou a incompatibilidade de se questionar a vítima – durante investigações ou julgamentos de crimes contra a dignidade sexual – sobre sua vida pregressa no tocante ao seu estilo de vida ou histórico de experiências sexuais, considerando tal prática uma violação dos princípios constitucionais da igualdade de gênero, da dignidade da pessoa humana e da liberdade sexual.

Spacca

No julgamento emblemático e histórico, a ministra Cármen Lúcia afirmou que cabe ao Supremo Tribunal Federal conferir interpretação conforme a Constituição Federal à expressão “elementos alheios aos fatos objeto de apuração” contida no 400-A do Código de Processo Penal. A corte vedou, assim, referências à “vivência sexual pregressa da vítima ou ao seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher”, sob pena de nulidade.

As vedações impostas, acertadamente, se estendem para todos os crimes que envolvem a prática de violência contra a mulher – não apenas aos crimes de natureza sexual – a fim de evitar a revitimização no processo penal.

Além disso, o Supremo conferiu interpretação ao artigo 59, caput, do Código Penal, para vedar que o magistrado valore a vida sexual pregressa da vítima, ou seu modo de vida, na fixação da pena de crimes sexuais, consolidando a tese de que tais aspectos são irrelevantes para a análise de culpabilidade, tornando-se claramente inconstitucionais quando usados para desqualificar a vítima.

Por fim, o Supremo estabeleceu ser dever do magistrado atuar no sentido de impedir a vitimização secundária, proibindo práticas revitimizadoras e assegurando que a vítima não seja exposta a estigmas ou violências no âmbito judicial, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal.

A consolidação dessa tese representa um avanço significativo no enfrentamento da violência baseada no gênero, pois combate diretamente a utilização de argumentos discriminatórios e revitimizadores no âmbito judicial que violam, de maneira sistemática, a dignidade da mulher vítima de violência.

A decisão do STF contribui, assim, para uma transformação estrutural na forma pela qual os processos judiciais tratam as vítimas de violência, promovendo um tratamento mais justo e humano, em consonância com os direitos e garantias fundamentais.

4. Porte de drogas para consumo pessoal e criminalização (RE 635.659 – Tema 506)

Em uma das decisões mais comentadas de 2024, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral, decidiu que não configura infração penal o ato de adquirir, guardar, manter em deposito, transportar ou carregar até 40 gramas de cannabis sativa (maconha) ou seis plantas fêmeas para consumo pessoal.

Nos termos da decisão, a prática configura um ilícito administrativo, sujeitando o infrator a sanções especificas, como a apreensão da substância, a aplicação de advertência sobre os efeitos do uso da substância e medidas educativas, como o comparecimento a programas ou cursos educativos sobre o tema. Tais medidas, contudo, não produzem efeitos penais, afastando-se, por exemplo, o registro de antecedentes criminais.

A quantidade estabelecida pelos ministros perdurará até que sobrevenha legislação específica, tendo o Supremo considerado importante a definição quantitativa para “afastar interpretações desiguais, discriminação irrazoável de grupos sociais vulneráveis, discricionariedades de policiais, membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, caracterizadoras de injustiças, bem assim de proteger os direitos fundamentais de pessoas que são encarceradas, sobretudo, pela má distinção entre tráfico e uso”.

Contudo, a Corte estabeleceu que a presunção de usuário não é absoluta. Ou seja, a autoridade policial, a depender do caso concreto – na existência de outros elementos que indiquem a probabilidade do crime de tráfico de drogas – pode realizar a prisão em flagrante, ainda que a quantidade de droga em questão seja inferior ao limite estabelecido. Nesses casos, caberá ao delegado de polícia fundamentar de maneira detalhada as razões pelas quais afastou a presunção de porte para consumo pessoal.

No mesmo sentido, dispôs que quantidades superiores ao limite estabelecido não impedem o juiz de reconhecer a atipicidade da conduta, caso haja provas suficientes da condição de usuário.

Importante frisar que essa decisão ainda não transitou em julgado, uma vez que foram interpostos embargos de declaração, cuja análise está pautada para fevereiro deste ano.

5. Soberania dos veredictos: execução imediata da pena aplicada pelo Tribunal do Júri (RE) 123.5340)

Em uma das decisões mais polêmicas do ano, o STF revisitou seu entendimento sobre a possibilidade de execução provisória da pena, ou seja, o início do cumprimento de pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Desta vez, a alteração se restringiu aos crimes dolosos contra a vida.

O Supremo decidiu pela viabilidade da execução provisória da pena para condenações em primeira instância no Tribunal do Júri. Essa decisão decorreu da interpretação do artigo 492, inciso I, alínea “e”, do CPP/1941 — com a alteração trazida pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) — e considerou a execução provisória da pena compatível com a Constituição, promovendo, ainda, uma redução do texto para eliminar a previsão do limite mínimo de 15 anos de pena.

Ou seja, na controvertida decisão, concluiu-se pela possibilidade de execução imediata da pena – independente do quantum, já que restou suprimida a necessidade de a condenação ser superior a 15 anos –, com a fundamentação de que tal entendimento não viola o princípio constitucional da presunção de inocência e, ainda, de que assegura a máxima efetividade da soberania dos vereditos.

6. Acordo de não persecução penal: aplicação retroativa em processos iniciados antes de sua criação pelo Pacote Anticrime (Habeas Corpus 185.913):

Em 2024 o Supremo também se manifestou sobre uma questão de grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial: os limites da retroatividade do acordo de não persecução penal.

No caso paradigma (HC 185.913), foi concedida a ordem e determinada a remessa dos autos ao Ministério Público para que o órgão acusatório avaliasse o cabimento da propositura de ANPP, suspendendo os efeitos da condenação do Paciente, que, na ocasião fora sentenciado a 1 ano, 11 meses e 10 dias de prisão, em regime aberto, pelo crime de tráfico de drogas.

A Corte decidiu que o ANPP, por apresentar natureza híbrida — ou seja, tratar-se de uma norma de direito processual com inequívoco conteúdo material —, deve retroagir em benefício do réu. Assim, estabeleceu ser possível a celebração do ANPP em processos iniciados antes da vigência da Lei 13.964/2019, mesmo sem confissão prévia, desde que não ocorrido o trânsito em julgado.

Além disso, para os casos em andamento na data do julgamento do Habeas Corpus, que, em tese, são passíveis de aplicação do ANPP, o Supremo determinou que o Ministério Público se manifeste — de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado — sobre o cabimento do ANPP na primeira oportunidade em que atuar nos autos após a publicação da ata do julgamento realizado pela corte. Ademais, ratificou que, em novas ações, o acordo deve ser proposto antes do recebimento da denúncia, salvo exceções ao longo da ação penal.

7. Acesso direto a dados cadastrais pelos órgãos de persecução criminal

A última decisão abordada neste artigo refere-se à ADI 4906, na qual o Supremo Tribunal Federal analisou a conformidade do artigo 17-B da Lei de Lavagem de Dinheiro com os direitos à privacidade e à proteção de dados pessoais. O dispositivo em questão permite que a Polícia e o Ministério Público acessem, sem a necessidade de autorização judicial, dados pessoais de investigados mantidos em cadastros de empresas telefônicas. Esses dados incluem informações como nome, RG, CPF, filiação e endereço.

Por 9 votos a 2, O STF declarou a constitucionalidade da norma, entendendo que o art. 5º, XII, da Constituição Federal, que trata da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, protege apenas o conteúdo das comunicações entre usuários, e não dados cadastrais.

Nesse sentido, os ministros consideraram que informações como qualificação pessoal, nome dos pais e endereço não estão amparadas pela previsão constitucional, permitindo, portanto, que os órgãos de persecução penal acessem os dados cadastrais dos investigados.

8. Considerações finais

As decisões analisadas abordam temas sensíveis e cruciais, que têm grande impacto na efetividade do sistema de justiça e na tutela dos direitos humanos. Elas refletem uma intensificação das discussões sobre direitos fundamentais, a atuação do Estado, as garantias individuais, e desafiam interpretações jurídicas tradicionais ao propor novos marcos para a sociedade.

Por um lado, evidenciam avanços no reconhecimento dos direitos das minorias e na promoção de uma justiça mais equânime, enquanto, por outro lado, geram novas controvérsias sobre os limites da atuação estatal, especialmente no que diz respeito à proteção da privacidade e à redução das desigualdades.

A decisão sobre o acesso direto a dados cadastrais, por exemplo, levanta sérias questões sobre a segurança jurídica e a proteção da intimidade, enquanto as discussões sobre a filtragem racial nas abordagens policiais e a desqualificação da vítima em processos que envolvem violência de gênero demandam uma reflexão crítica sobre as estruturas institucionais que ainda perpetuam a discriminação.

Embora tais deliberações tragam respostas para questões prementes da sociedade, também abrem espaço para um debate mais profundo sobre como equilibrar a necessidade de segurança pública com a efetiva proteção dos direitos fundamentais, especialmente em um contexto de crescente conscientização sobre os direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade.

Neste cenário, a atuação ética e crítica dos advogados e de todos os agentes do poder judiciário se torna imprescindível. Como garantidores dos direitos e das liberdades individuais, cabe aos operadores do Direito um papel indispensável na fiscalização da atuação do Estado e na promoção de uma justiça verdadeiramente inclusiva e equânime.

A adoção de uma postura proativa e vigilante nos permite não apenas contestar abusos ou interpretações equivocadas, mas também contribuir para o amadurecimento das pautas jurídicas, garantindo que nosso ordenamento evolua de forma a atender às reais necessidades e demandas da sociedade, especialmente na defesa ativa dos direitos fundamentais, na luta contra as desigualdades e na promoção de um sistema de justiça transparente e responsável.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!