Opinião

O whistleblower e o agente colaborador: notas e distinções

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22 de janeiro de 2025, 6h30

Há décadas, a literatura jurídico-penal estrangeira vem, continuamente, fazendo referência a formas complementares à legislação criminal interna “tradicional” como meio de prevenção à prática de delitos (principalmente relacionados à corrupção) nos setores público e privado. Do mesmo modo, no âmbito internacional, há evidente enfoque no trato global do combate à corrupção e à criminalidade econômica em geral por meio de normas internacionais sobre o tema como, por exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida) [1] e a Convenção Interamericana contra a Corrupção (no âmbito da OEA) [2]. Nesse passo, aperfeiçoaram-se institutos de política criminal como a colaboração premiada, a leniência e a figura do whistleblowing.

Sem o intuito de fazer aqui uma digressão histórica do whistleblowing, termo anglo-saxão que pode ser traduzido como “assoprando (blowing) o apito (whistle)” em referência aos antigos policiais ingleses que logo silvavam o apito para alertar colegas sobre eventual descoberta e fazer cessar a conduta delitiva – to blow the whistle).

O whistleblower pode ser definido como a pessoa que denuncia, comunica ou informa para a sua própria organização, para uma autoridade externa ou mesmo publicamente, o conhecimento da prática de delitos ou de má-condutas corporativas (ilícitos civis ou administrativos). Nas palavras de Rodrigo de Grandis, o whistleblower é aquele que “ao tomar conhecimento de uma irregularidade ou de um crime concretizado no âmbito de sua atividade profissional, ‘toca o apito’, ou seja, comunica a ocorrência às autoridades competentes, como a polícia ou o Ministério Público, embora não tenha nenhuma obrigação legal nesse sentido” [3]. Figura, portanto que não se confunde com o colaborador premiado, cujas distinções serão vistas mais adiante.

É preciso dizer que este instituto é muito conhecido em países como Inglaterra e EUA [4]. Mais recentemente, diante da Diretiva Whistleblowing da União Europeia de 2019, legislações foram inseridas também em países como França (Sapin II de 2022), Alemanha (Hinweisgeberschutzgesetz – HinSchG de 2023), e Espanha (Ley de protección de las personas que informen sobre infracciones de 2023).

Portanto, dentro dessa perspectiva, nos últimos anos, a figura do whistleblower tem sido significativamente estudada e reconhecida por diversas legislações nacionais e internacionais, o que lhe tem conferido um impulso e importância singulares, por exemplo, para os programas de compliance e aos compliance officers [5].

No Brasil, onde parte da doutrina adaptou o termo whistleblower para “informante do bem” (pode-se, também, recorrer às legislações espanhola e francesa que se referem ao whistleblower apenas como informante, denunciante ou alertador), incorporou-se a figura ao ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei 13.608/2018, contanto o denunciante com a proteção obrigatória do sigilo de seus dados, bem como a possibilidade de recebimento de recompensa em espécie (paga pelo ente federativo no âmbito de sua competência) em razão da denúncia realizada e informações prestadas ao ente público ou entidade privada sem fins lucrativos (artigo 2º da Lei 13.608/2018).

Posteriormente, ainda que de modo deficiente, a Lei 13.964/2019 (denominado pacote anticrime) nos artigos 4º-A, B e C, buscou ampliar a atuação do denunciante, determinando que órgão da administração direta mantenham canais de ouvidoria ou correição com finalidade de receber denúncias ou informações de qualquer pessoa que tenha conhecimento de crimes praticados em âmbito da administração pública ou da iniciativa privada, ilícitos administrativos ou quaisquer outras ações ou omissões lesivas ao interesse público [6]. O problema é que muitas destas questões precisam ser mais bem regulamentadas, tanto do ponto de vista do pagamento da recompensa, quanto da proteção à vida, integridade física, estabilidade do emprego etc. daquela pessoa que pretende alertar terceiros sobre o conhecimento ou descoberta.

Distinções

Feita essa pequena introdução, cabe, agora, apontar, do ponto de vista penal, ao menos cinco diferenças entre o whistleblower e o colaborador premiado, este último, regulado pela Lei 12.850/2013 [7].

Spacca

Primeiro. O âmbito de aplicação do colaborador premiado é restrito a casos criminais, isto é, o agente colaborador é investigado ou acusado em uma persecução penal. Por sua vez, o whistleblower é pessoa interna ou externa à organização da qual denuncia (setor público ou privado), podendo denunciar casos práticas ilícitas não somente do ponto de vista criminal, mas também em caráter civil e administrativo.

Segundo. Sobre participação no ilícito. As informações prestadas pelo colaborador premiado estão obrigatoriamente vinculadas a sua participação criminosa no delito investigado ou processado (confissão). O whistleblower, ao menos no Brasil, não tem participação alguma na empreitada criminosa que ele denuncia, ele apenas aponta a responsabilidade de outras pessoas ou organizações.

Em terceiro lugar, quando se fala em colaboração premiada, tem-se um negócio jurídico processual firmado por escrito, estratégico e que represente a vontade das partes negociantes, sendo o colaborador obrigatoriamente representado por advogado com poderes específicos, seguindo uma sucessão de formalidades como a gravação dos anexos da colaboração e a homologação judicial do acordo propriamente dito. Já o whistleblowing, não há forma exclusiva, podendo ser realizado, inclusive, por telefone via disque-denúncia, assegurando o sigilo (anonimato) do whistleblower, conforme o artigo 3º da Lei 13.608/2018.

O quarto ponto é a questão da cooperação propriamente dita. Como ressaltado em ponto anterior na colaboração premiada, a cooperação com as autoridades decorre de uma ameaça a uma alternativa mais severa, isto é, ameaça de maiores sanções (civil, administrativa ou criminal) em caso de não cooperar. No caso do denunciante, não há qualquer ameaça às sanções, pois não há envolvimento no ilícito.

Por fim, outra distinção que merece referência é a do resultado premial. No instituto da colaboração premiada, além da renúncia a direitos processuais, o colaborador fica obrigado a fornecer informações úteis aos órgãos de persecução penal (polícia ou MP), recebendo, como contrapartida, concessão de prêmios na sentença, como o perdão judicial, a redução da sanção penal ou a substituição do regime de cumprimento de pena ou, ainda, a substituição da pena por restritivas de direitos (desde que preenchidos os requisitos dos incisos I a V do artigo 4º da Lei 12.850/2013). O benefício do whistleblower, de outra banda, é exclusivamente financeiro, por meio de pagamento de valores em espécie (até 5% do valor recuperado) e não há celebração de contrato com cláusulas relacionadas a “deveres do informante” como existe, em regra, nos termos de acordo de colaboração premiada [8].

Além da necessidade básica de se dizer a verdade e da própria voluntariedade dos institutos, em semelhança, pode-se ressaltar que tanto o whistleblowing quanto a colaboração premiada são meios de obtenção de prova no que dizem respeito ao relato do informante e do colaborador. Assim como o colaborador premiado é condição de possibilidade de trazer à persecução criminal maior eficiência [9], os informantes também são figuras importantes e que necessitam da proteção adequada para que possam expor o que sabem, gozando das mesmas “garantias” concedidas ao colaborador. Há que proteger essas pessoas bem-intencionadas de consequências negativas por revelar informações que possam causar represálias das mais variadas estirpes.

Todavia, quando comparados os institutos do whistleblowing e da colaboração premiada, há uma preocupação aparentemente desigual entre denunciante e o agente colaborador. Não parece haver o mesmo nível aprofundado de proteção e redução da vulnerabilidade (amparo jurídico, segurança pessoal e de seus familiares etc.). Do ponto de vista legal, há carência de incentivo para que qualquer pessoa possa denunciar ou informar o que sabe acerca da prática de ilícitos. Na colaboração, em tese, se o colaborador cumprir todos os termos do acordo, tem-se a garantia de que aquilo firmado será cumprido.

Dada a importância da figura do whistleblower para a criminalidade não detectada, a ideia trazida nas legislações internacionais é justamente brindar o denunciante com proteção jurídica, econômica, psicológica e social. Em resumo, apesar de existir “preço” entre calar e falar, a proteção dos denunciantes de delitos ou de outras ilicitudes e irregularidades é fundamental para o aprimoramento de um sistema de integridade pública e privada, redução da corrupção, transparência e controle social ne detecção do ilícito e de diminuição da percepção de impunidade.

 


[1] Ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 5.687/2006. No artigo 3º da Convenção, há determinação para que o Estado Parte considere como possibilidade a incorporação no ordenamento jurídico medidas apropriada para proporcionar proteção aos denunciantes.

[2] Decreto 4.410/2002.

[3] GRANDIS, Rodrigo de. Whistleblowing e Direito Penal: https://www.jota.info/artigos/coluna-rodrigo-de-grandis-12022015.

[4] Exemplos de antecedentes legislativos mais antigos são dos EUA como o Whistleblowing Protection Act de 1989, a Lei Sarbanes-Oxley (SarBox/Sox) de 2002 e o Public Interest Disclosure Act (como PIDA) de 2012 e no Reino Unido (v.g. Employment Rights Act 1996) e dos EUA como a Lei Sarbanes-Oxley (SarBox/Sox) de 2002 e o Public Interest Disclosure Act (como PIDA) de 2012, o Whistleblowing Protection Act de 1989.

[5] Sobre o tema compliance, verifique em Oliveira, Diego Renoldi Quaresma. Globalização, crime organizado e compliance: https://www.conjur.com.br/2024-jun-18/globalizacao-crime-organizado-e-compliance/

[6] Nesse mesmo sentido, ver: BARRILARI, Claudia Cristina. Crime empresarial, autorregulação e compliance. 2 ed. atualizada e ampliada. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 115; MACHADO, Leonardo Marcondes. O whistleblower (“informante do bem”) na investigação criminal brasileira: https://www.conjur.com.br/2020-jun-09/academia-policia-whistleblower-informante-bem-investigacao-criminal-brasileira/.

[7] O instituto da colaboração premiada, hoje prevista em vários diplomas legais punitivos, foi introduzida no Brasil pela Lei Federal 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos). A esse respeito consultar: https://www.conjur.com.br/2024-dez-23/mauro-cid-e-questoes-relativas-a-rescisao-e-revisao-do-acordo-de-colaboracao-premiada/.

[8] Sobre o tema colaboração premiada, veja a didática obra de CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Colaboração premiada: lições práticas e teóricas: de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2019.

[9] Explico aqui: https://www.conjur.com.br/2024-fev-12/o-instituto-da-colaboracao-premiada-e-o-habeas-corpus/

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