Como a venda casada no mercado digital desafia os direitos do consumidor
22 de janeiro de 2025, 8h00
1. Introdução
No mercado físico, a venda casada [1] já representava uma prática abusiva e complexa. No ambiente digital, porém, ela assume contornos ainda mais sofisticados, como a vinculação obrigatória de aplicativos a sistemas operacionais ou a oferta “irrecusável” de pacotes de serviços digitalizados. Sob o pretexto de eficiência e conveniência, essas estratégias frequentemente exploram brechas na legislação para consolidar posições de mercado, muitas vezes em prejuízo do consumidor e da concorrência.
Este artigo propõe uma reflexão sobre o impacto dessas práticas na era digital, questionando: como proteger o consumidor e fomentar a concorrência em um cenário onde algoritmos e plataformas influenciam escolhas e hábitos? Essa é a questão central que guia esta análise.
2. O que é a venda casada
A venda casada ocorre quando um fornecedor condiciona a compra de um produto ou serviço à aquisição de outro, seja produto ou serviço, vinculando sua oferta de forma compulsória. Esse comportamento, quando desprovido de razoabilidade [2], não apenas prejudica a escolha do consumidor e explora suas deficiências informacionais, mas também pode levar ao pagamento de preços superiores ao valor justo e restringir a concorrência. Reconhecida como infração à ordem econômica pela Lei de Defesa da Concorrência, a venda casada também é classificada como prática abusiva pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), refletindo sua dupla capitulação.
A venda casada pode ocorrer de duas formas principais. A primeira, o tying, acontece quando um fornecedor condiciona a compra de um produto ou serviço à aquisição de outro, seja do próprio fornecedor ou de um terceiro indicado [3]. Se a exigência é feita no momento da compra, é chamada de tie-in; se ocorre depois, geralmente por meio de serviços complementares, é o tie-out [4]. A segunda forma, o bundling, envolve a venda de pacotes com produtos ou serviços que não podem ser adquiridos separadamente [5], prática comum no mercado tecnológico com a integração de produtos originalmente independentes.
A realização dessa prática pode ser motivada pelos seguintes efeitos: (1) ganho de participação de mercado no mercado do produto vinculado, por meio de alavancagem; (2) fechamento ou aumento de barreiras no mercado do produto vinculado, prejudicando a entrada de novos concorrentes; (3) discriminação de preços; (4) exploração dos consumidores ou compradores; e (5) evasão da fiscalização de preços em mercados regulados [6].
O Superior Tribunal de Justiça tem diversos precedentes importantes sobre venda casada. Em um caso emblemático, considerou abusiva a prática de condicionar a compra de gasolina a prazo à aquisição de refrigerantes [7]. Da mesma forma, declarou ilegal a proibição de entrada com alimentos comprados fora das dependências dos cinemas [8].
Outro caso relevante envolveu redes de fast food e a venda conjunta de lanches com brindes infantis, prática questionada pelo Ministério Público. Também merece destaque o caso Bauducco, onde a empresa foi condenada por condicionar a venda de um relógio do Shrek à compra de cinco produtos da linha “Gulosos” [9].
O STF também se manifestou sobre o tema ao considerar que a obrigatoriedade de serviço de empacotamento em estabelecimentos comerciais configura venda casada, prática vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, por onerar todos os consumidores, mesmo aqueles que não desejam ou não podem pagar pelo serviço [10].
3. Venda casada no mercado digital
No contexto digital, as doutrinas sobre tying e bundling precisam passar por mudanças estratégicas, devido à natureza integradora e interoperável dos produtos e serviços digitais. A linha entre produtos distintos e complementares se tornou mais tênue [11], assim como a distinção entre práticas abusivas e inovações legítimas, o que representa um desafio para as autoridades antitruste [12].
Essa dificuldade se estende para além dos sistemas operacionais. Plataformas de mídia social, por exemplo, frequentemente integram funcionalidades de mensagens, compartilhamento de fotos e vídeos, e até mesmo comércio eletrônico, o que pode ser visto como uma forma de bundling digital.
O debate sobre essas práticas no mundo digital também toca em questões de interoperabilidade e portabilidade de dados. Quando um serviço é fortemente integrado a uma plataforma, pode se tornar difícil para os usuários migrarem para serviços concorrentes sem perder dados ou funcionalidades.
Inclusive, empresas podem acabar por adotar medidas para prevenir ou impedir essa migração de dados entre os fornecedores [13]. Uma negativa de portabilidade poderia ser considerada uma prática de venda casada quando o fornecedor só concede a portabilidade sob a condição de que ela seja utilizada em um produto ou serviço por ele mesmo fornecido ou oferecido por algum de seus parceiros [14]. Outra visualização de venda casada seria, por exemplo, quando uma rede social for vinculada a um software específico que governa a exportação dos dados a outros serviços [15].
Além disso, as plataformas podem aumentar o valor de seu ecossistema por meio da venda casada de produtos e serviços adicionais a custos muito baixos ou até mesmo gratuitos [16]. Tais práticas não apenas se tornaram mais comuns, como também se mostraram potencialmente mais danosas à concorrência do que em mercados tradicionais [17].
Autoridades globais têm investigado práticas anticompetitivas de grandes empresas de tecnologia, como no caso da Microsoft na União Europeia (COMP/C-3/37.792). A Comissão Europeia concluiu que a vinculação do Windows Media Player ao sistema operacional Windows configurava abuso de posição dominante, prejudicando a concorrência. Apesar de alegações de eficiência, a Comissão rejeitou os argumentos da empresa, multou-a em 497 milhões de euros e exigiu uma versão do Windows sem o WMP. O caso foi pioneiro ao estabelecer que a integração de aplicativos em sistemas operacionais pode ser analisada como prática anticompetitiva [18].
Já em julho de 2018, a Comissão Europeia multou o Google em 4,34 bilhões de euros por violar o artigo 102 do TFEU através de práticas anticompetitivas que fortaleciam sua posição dominante no mercado de buscas na internet. O caso focou em três tipos de acordos impostos a fabricantes de dispositivos móveis: os Acordos de Distribuição de Aplicativos Móveis (Mada), os Acordos de Compartilhamento de Receita (RSA) e os Acordos de Anti-Fragmentação (AFA) [19].
O principal alvo da investigação foi o MADA, que exigia a pré-instalação dos aplicativos Google Search e Chrome como condição para licenciar a Play Store. A Comissão identificou esta prática como venda casada ilegal, considerando que a Play Store era um aplicativo essencial para os usuários. Com domínio de 70% a 90% nos mercados relevantes desde 2011, o Google criava um viés de status quo, levando os usuários a utilizarem predominantemente os aplicativos pré-instalados [20].
O Tribunal Geral da União Europeia manteve a decisão da Comissão, apenas reduzindo a multa para 4,125 bilhões de euros devido à interrupção dos RSAs em 2014. Este caso, que ainda aguarda julgamento final após recurso do Google [21], reforçou o precedente do caso Microsoft Media Player e estabeleceu que a vinculação de lojas de aplicativos com outros aplicativos pode constituir prática ilegal, especialmente quando a empresa é dominante em ambos os mercados envolvidos [22].
Recentemente, em um caso recente envolvendo tecnologia de pagamento, a Comissão Europeia aceitou os compromissos propostos pela Apple para resolver preocupações antitruste relacionadas ao acesso à tecnologia NFC em iPhones. A investigação preliminar havia identificado que a Apple, com significativo poder de mercado em dispositivos móveis inteligentes e posição dominante em carteiras móveis iOS, estava restringindo injustamente o acesso à tecnologia NFC para desenvolvedores concorrentes [23].
Em resposta, a Apple comprometeu-se a implementar mudanças significativas por um período de dez anos na Área Econômica Europeia, incluindo: acesso gratuito à tecnologia NFC para provedores terceiros, estabelecimento de critérios justos e transparentes para concessão deste acesso, simplificação do processo para usuários definirem aplicativos de pagamento HCE como padrão, e implementação de um sistema de resolução de disputas [24].
4. Digital Markets Act (DMA) da UE e Projeto de Lei 2.768/2022 do Brasil
Para além dos casos vistos acima, a crescente complexidade dos mercados digitais tem impulsionado novas respostas regulatórias ao redor do mundo, com destaque para o Digital Markets Act (DMA) na União Europeia e o Projeto de Lei 2.768/2022 no Brasil.
O Digital Markets Act (DMA) da União Europeia estabelece importantes restrições à prática de venda casada por gatekeepers digitais, principalmente através dos artigos 5(7) e 5(8). O artigo 5(7) do Digital Markets Act (DMA) estabelece que os gatekeepers não podem exigir que usuários finais ou usuários comerciais utilizem seus serviços de identificação, navegadores web, serviços de pagamento ou serviços técnicos relacionados, como sistemas de pagamento para compras dentro de aplicativos.
Essa proibição visa evitar a exigência da adoção de serviços adicionais como condição para acessar a plataforma principal, o que limitaria a concorrência. Além disso, o artigo 5(7) proíbe os gatekeepers de vincularem ou agruparem esses serviços com seus serviços de plataforma principal (CPS), assegurando que os usuários não sejam obrigados a usar produtos ou serviços específicos do gatekeeper para acessar a plataforma.
Já o artigo 5(8) vai além ao proibir o gatekeeper de exigir que os usuários comerciais ou finais se inscrevam ou registrem em outros serviços principais da plataforma como condição para o uso, acesso ou registro em qualquer serviço principal da plataforma do gatekeeper. Isso impede que a plataforma condicione o uso de um serviço principal à obrigatoriedade de subscrição de outro serviço, garantindo maior liberdade de escolha aos usuários.
Em adição a essas disposições, o artigo 6(3) do DMA obriga os gatekeepers a permitirem que os utilizadores finais desinstalem facilmente qualquer aplicação de software pré-instalada em seus sistemas operacionais, exceto quando essas aplicações forem essenciais para o funcionamento do sistema ou do dispositivo e não estiverem disponíveis de forma independente por terceiros. Além disso, os gatekeepers devem permitir que os utilizadores finais alterem as configurações padrão de sistemas operacionais, assistentes virtuais e navegadores web que redirecionem para outros produtos ou serviços do próprio gatekeeper. A medida visa prevenir a amarração técnica ou o agrupamento forçado de aplicações de software.
No Brasil, o Projeto de Lei 2.768/2022, atualmente em tramitação no Congresso Nacional brasileiro, busca regular o mercado digital no país, em uma iniciativa semelhante ao Digital Markets Act (DMA) da União Europeia. O objetivo do PL é promover uma concorrência justa, proteger os consumidores e garantir igualdade de condições no mercado digital. Inspirado nas diretrizes europeias, o PL 2.768/2022 introduz mecanismos que visam equilibrar o poder de mercado e estimular a inovação no setor digital brasileiro.
Uma das principais disposições do PL é a designação de plataformas digitais como detentores de poder de controle de acesso essencial, conceito semelhante ao do gatekeeper trazido pelo DMA. Esses detentores de poder de controle de acesso essencial são plataformas que possuem poder significativo de mercado e, por isso, ficariam sujeitas a obrigações regulatórias específicas para evitar práticas anticompetitivas.
Assim como o DMA, o PL 2.768/2022 proíbe práticas que favorecem indevidamente os próprios produtos ou serviços dos detentores de poder de controle de acesso essencial em detrimento da concorrência, além de abordar a importância do acesso a dados e da portabilidade de informações. Os detentores de poder de controle de acesso essencial devem garantir que usuários e empresas possam acessar seus dados e transferi-los, o que amplia o controle dos usuários e promove a competição.
5. Considerações finais
O cenário digital contemporâneo apresenta um fascinante paradoxo: enquanto a integração de serviços e produtos promete revolucionar nossa experiência tecnológica, também cria terreno fértil para práticas anticompetitivas sofisticadas. Os emblemáticos casos envolvendo gigantes como Microsoft, Google e Apple não apenas revelaram a complexidade deste desafio, mas também são acompanhados por uma nova geração de marcos regulatórios, como o Digital Markets Act da União Europeia e o promissor PL 2.768/2022 brasileiro. Este momento histórico de transformação demonstra que o futuro da economia digital dependerá de nossa capacidade de equilibrar a inovação tecnológica com a proteção efetiva dos direitos do consumidor, garantindo um ambiente digital verdadeiramente livre, justo e dinâmico.
[1] Para uma análise mais aprofundada sobre o tema, ver: CRAVO, Daniela Copetti. Venda casada e mercado digital. São Paulo: Editora Foco, 2025.
[2] A venda casada só se caracteriza quando a venda conjunta não é razoável. Caso contrário, até mesmo a venda de uma caixa de ovos poderia ser considerada venda casada. Ver: PFEIFFER, Roberto Augusto Castelhanos. Proteção do Consumidor e Defesa da Concorrência: Paralelo entre Práticas Abusivas e Infrações contra a Ordem Econômica. Revista de Direito do Consumidor. Ano 19, n.76, out./dez. 2010, p. 131-151.; RAYMOND, Guy. Incidences de La Loi MURCEF sur le Marketing des Établissements de Crédit. Limoges: Pulim, 2004.
[3]UNIÃO EUROPÉIA. DG Competition Discussion Paper on the Application of Article 82 of the Treaty to Exclusionary Abuses. Disponível em:<http://ec.europa.eu/competition/antitrust/art82/discpaper2005.pdf>. Acesso em 24 de jan. de 2024.
[4] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Competition and Monopoly: Single Firm Conduct Under Section 2 of the Sherman Act. Disponível em: <http://www.justice.gov/atr/public/reports/236681.htm>. Acesso em 24 de jan. de 2024.
[5] Ibid.
[6] SULLIVAN, Lawrence A.; GRIMES, Warren S. The Law of Antitrust: An Integrated Handbook. St. Paul: West Group, 2000.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 384.284-RS. Relator: Ministro Herman Benjamin. Julgado em 15 de dezembro de 2009.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 744.602. Relator: Ministro Luiz Fux, julgado em 23 de março de 2003.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.558.086/SP, relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 10/3/2016, DJe de 15/4/2016.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 839950, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24-10-2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-081 DIVULG 01-04-2020 PUBLIC 02-04-2020.
[11] JAFARGULIYEV, Amil. Tying and Bundling in Digital Markets under the European Union Competition Law and Digital Markets Act. 2023. 30 f. Dissertação (Mestrado em European Business Law) – Lund University, Lund, 2023.
[12] HOLZWEBER, S. Tying and bundling in the digital era. European Competition Journal, v. 14, n. 2–3, p. 342–366, 2018.
[13] Geradin, Damien; Kuschewsky, Monika. Competition Law and Personal Data: Preliminary Thoughts on a Complex Issue. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2216088>. Acesso em 25 de dez. de 2017.
[14] SWIRE, Peter; LAGOS, Yianni. Why the Right to Data Portability Likely Reduces Consumer Welfare: Antitrust and Privacy Critique. Maryland Law Review, n.º 335, p. 363, 2013.
[15] Ibid.
[16] WU, Qian; PHILIPSEN, Niels J. The law and economics of tying in digital platforms: comparing Tencent and Android. Journal of Competition Law & Economics, v. 19, n. 1, p. 103–122, mar. 2023.
[17] HOLZWEBER, S. Tying and bundling in the digital era. European Competition Journal, v. 14, n. 2–3, p. 342–366, 2018.
[18] JAFARGULIYEV, Amil. Tying and Bundling in Digital Markets under the European Union Competition Law and Digital Markets Act. 2023. 30 f. Dissertação (Mestrado em European Business Law) – Lund University, Lund, 2023.
[19] Ibid.
[20] Ibid.
[21] Ibid.
[22] Ibid.
[23]UNIÃO EUROPÉIA. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_24_3706. Acesso em 18 de jan. de 2025.
[24] Ibid.
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