Opinião

Aplicação das regras de registro da cadeia de custódia aos casos anteriores à lei 'anticrime'

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22 de janeiro de 2025, 6h03

A lei “anticrime” (Lei n° 13.964/2019) inseriu no Código de Processo Penal o artigo 158-A e seguintes, que tratam do procedimento de registro da cadeia de custódia no manejo de provas e vestígios. Conforme aduz o referido dispositivo:

“Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.”

Com efeito, o artigo 158-A, § 1° do CPP estabelece que o início do registro da cadeia de custódia se dá com os procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência do vestígio, ao passo que o artigo 158-B assenta em pormenores o procedimento, reforçando que é imprescindível a documentação de todo e qualquer manejo do vestígio que se pretende utilizar como prova judicial.

A finalidade de tal instituto está diretamente relacionada a confiabilidade da prova, de modo que as consequências da não observância dos procedimentos em questão afetam diretamente sua admissibilidade, para além de qualquer possibilidade de valoração. Nas palavras de Geraldo Prado:

“A cadeia de custódia da prova consiste em método por meio do qual se pretende preservar a integridade do elemento probatório e assegurar sua autenticidade. A violação da cadeia de custódia implica a impossibilidade de valoração da prova, configurando seu exame – de verificação da cadeia de custódia – um dos objetos do juízo de admissibilidade do meio de prova ou do meio de obtenção de prova, conforme o caso. As consequências jurídicas da quebra da cadeia de custódia não se submetem a juízo de peso probatório, sequer de relevância da prova.”[1]

Trata-se de um esforço para preservação do princípio da “mesmidade”, especialmente relevante para as provas digitais, caracterizadas pela alta volatilidade. Como ensina Badaró, a mesmidade consubstancia-se numa série de garantias formais na custódia e tratamento dos elementos de prova, para evitar qualquer mudança ou alteração neles, bem como para garantir que os elementos apresentados ao juiz sejam idênticos aos disponíveis no local em que foram colhidos, resguardando, assim, sua originalidade [2].

Entendimento do STF

Nesse sentido, em julgados paradigmáticos, o Supremo Tribunal Federal vem reiterando que a quebra da cadeia de custódia impede a admissibilidade da prova no processo penal, mormente quando o contexto fático suscita dúvidas sobre a mesmidade da prova:

“Penal e processo penal. Habeas corpus. Crime contra as relações de consumo. Venda de produtos impróprios para consumo – art. 7º, IX, da Lei 8.137/90. Apreensão de isqueiros com supostos selos do Inmetro falsificados. Alegação de ausência de justa causa pela falta de indicação dos elementos não verdadeiros. Laudos periciais genéricos. Descumprimento à norma do art. 170 do CPP. Destruição dos produtos apreendidos. Quebra da cadeia de custódia da prova. Arts. 158-A e 158-B do CPP. Doutrina e precedentes, inclusive anteriores à previsão legal e vigentes à época dos fatos. Impossibilidade do controle epistêmico da validade da prova. Inviabilização do exercício do direito de defesa. Apresentação, por parte da defesa, das notas fiscais e do registro do revendedor no Inmetro. Acolhimento da alegação de ausência de justa causa para instauração e desenvolvimento válido do processo. Concessão da ordem, com o trancamento definitivo da ação penal” (STF – HC: 214908 RJ, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 27/09/2022, Segunda Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-220 DIVULG 03-11-2022 PUBLIC 04-11-2022).

Conforme o voto do relator, ministro Gilmar Mendes:

“[…]

Com efeito, a doutrina estabelece que a preservação das fontes de prova é fundamental, em especial em relação aos elementos produzidos fora do processo, sendo importante destacar que a alteração das fontes pode contaminar os meios e os resultados, de modo a impactar na credibilidade da atividade probatória e no próprio juízo condenatório eventualmente proferido com base nesses elementos (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 15ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 458).

De acordo com Geraldo Prado, “um dos aspectos mais delicados da aquisição de fontes de prova consiste em preservar a idoneidade de todo o trabalho que tende a ser realizado sigilosamente, em um ambiente de reserva que, se não for respeitado, compromete o conjunto de informações que eventualmente venham a ser obtidas dessa forma”. (PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 77).

Em casos de descumprimento da norma que estabelece a manutenção da cadeia de custódia da prova, não resta outra solução à autoridade judicial além de declarar a ilicitude da prova produzida em virtude da violação ao dispositivo previsto pelo art. 5º, LVI, da CF/88 (“são proibidas, no processo, as provas obtidas por meio ilícito”), tendo em vista a ausência de garantias epistêmicas que possibilitem a averiguação da validade da prova.

[…]

No caso em análise, os vícios dos laudos periciais e a completa destruição dos produtos apreendidos torna absolutamente impossível o controle epistêmico da validade da prova produzida, seja para fins de admissão da acusação, para o exercício do direito de defesa ou para o julgamento da ação penal.

[…]”

(STF – HC: 214908 RJ, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 27/09/2022, Segunda Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-220 DIVULG 03-11-2022 PUBLIC 04-11-2022)

Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça vem inadmitindo provas sem o devido registro da cadeia de custódia, em especial diante de fatos que acarretem em suspeitas sobre a integridade da prova. Vejamos:

“São inadmissíveis as provas digitais sem registro documental acerca dos procedimentos adotados pela polícia para a preservação da integridade, autenticidade e confiabilidade dos elementos informáticos.”

STJ. 5ª Turma. RHC 143169/RJ, Rel. Min. Messod Azulay Neto, Rel. Acd. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 7/2/2023 (Info 763).

Controle do registro de cadeia de custódia

Nesse caso decidido pelo STJ, as evidências em questão foram extraídas de computadores apreendidos na residência do réu, mas sem documentação adequada dos procedimentos adotados pela polícia para garantir a integridade, autenticidade e confiabilidade dessas provas, como exigido pelo artigo 158-A e seguintes do CPP. Com base nisso, a Corte da Cidadania declarou a ilicitude das provas, ante a quebra do registro da cadeia de custódia da prova digital.

Spacca

Assim, a jurisprudência compreende que é imprescindível que haja um rígido controle do registro da cadeia de custódia dos elementos de prova apresentados ao juízo, sob pena de um processo penal calcado em evidências cujo teor não corresponde à realidade dos fatos. Sobretudo quando existem fatores que levantem dúvidas sobre a confiabilidade da prova [3].

Não obstante, ainda estava pendente a questão da aplicação das regras sobre cadeia de custódia nos casos anteriores a lei “anticrime”, diante da regra do tempus regit actum, prevista no artigo 2° do CPP.

Do nosso ponto de vista, considerando que é ônus do Estado comprovar a integridade e confiabilidade das fontes de prova por ele apresentadas, é incabível simplesmente presumir a veracidade das alegações estatais quando descumpridos os procedimentos referentes ao registro da cadeia de custódia, ainda que antes da Lei Anticrime, visto que tais procedimentos são pressupostos ontológicos para que se ateste a confiabilidade da prova.

Objeto de controle da legalidade

Como bem registrou o ministro Ribeiro Dantas no AgRg no RHC: 143169/RJ, o processo penal, a atividade do Estado é o objeto do controle de legalidade, e não o parâmetro do controle; de modo que cabe ao Judiciário controlar a atuação do Estado-acusação a partir do direito, e não a partir de uma autoproclamada confiança que o Estado-acusação deposita em si mesmo.

Pois bem, no AgRg no HC 902.195-RS, julgado em 3 de dezembro de 2024 pela 5ª Turma do STJ, fixou-se o entendimento que embora as regras específicas dos artigos 158-A a 158-F do Código de Processo Penal não retroajam, a cadeia de custódia deve ser preservada, mesmo para fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019. Conforme a ementa do referido julgado:

“PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. NULIDADE PROBATÓRIA. PRECLUSÃO. INOCORRÊNCIA. ARTIGOS 422 E 423 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – CPP. FATOS ANTERIORES À LEI N. 13.964/2019. QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA. VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO. DESENTRANHAMENTO DAS EVIDÊNCIAS DIGITAIS. AGRAVO DESPROVIDO.

  1. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul – MPRS interpôs agravo regimental contra decisão que não conheceu de habeas corpus substitutivo, mas concedeu ordem de ofício, parcialmente, para desentranhamento de provas obtidas de forma ilegítima, devido à extração direta de dados de celular.
  2. Cinge-se a controvérsia ao exame da preclusão da alegação de nulidade probatória suscitada depois da prolação da sentença de pronúncia e à aplicação retroativa do regramento da cadeia de custódia inserido pela Lei n. 13.964/2019.
  3. A defesa alegou oportunamente a ilegitimidade das evidências digitais após a perícia requerida na fase do art. 422 do Código de Processo Penal – CPP demonstrar a inviabilidade de recuperação dos dados contidos em celular, comprometendo a confiabilidade dos vestígios utilizados na persecução.
  4. Embora as regras específicas dos arts. 158-A a 158-F do CPP não retroajam, a cadeia de custódia deve ser preservada, mesmo para fatos anteriores à Lei n. 13.964/2019.
  5. Agravo desprovido.” (AgRg no HC n. 902.195/RS, relator ministro Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, julgado em 3/12/2024, DJe de 9/12/2024.)

Do inteiro teor do acórdão, é possível observar que o STJ prossegue na tendência de considerar a nulidade das provas obtidas mediante quebra do registro da cadeia de custódia somente quando tal quebra se associa a algum fator que suscite dúvidas sobre a confiabilidade da prova.

Ainda assim a aplicação desse entendimento representa um avanço significativo, na medida em que prestigia o princípio da veracidade da prova, somente garantido quando o Estado toma precauções mínimas para resguardar o postulado da mesmidade. Ora, não é necessário recorrer ao procedimento de registro da cadeia de custódia previsto no CPP para questionar o conteúdo de uma prova produzida sem o mínimo cuidado.

Assim, ainda que os procedimentos específicos inseridos pela lei “anticrime” não retroajam, na esteira do artigo 2° do CPP, a cadeia de custódia deve ser preservada como garantia de confiabilidade da prova, possibilitando, assim, que os julgamentos se deem num contexto de higidez probatória, crucial para que se evitem erros judiciários — erros que, num contexto de restrição máxima da liberdade, custam caro demais para serem tolerados.

 


[1] PRADO, Geraldo. Breves notas sobre o fundamento constitucional da cadeia de custódia da prova digital. Disponível em: https://geraldoprado.com.br/artigos/breves-notas-sobre-o-fundamento-constitucional-da-cadeia-de-custodia-da-prova-digital/ Acesso em: 15 de agosto de 2024.

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 10. Ed. São Paulo: Thompson Reuters, 2022. p. 518.

[3] Quando não existem esses fatores, o STJ tende a considerar a quebra do registro da cadeia de custódia uma nulidade relativa.

Autores

  • é advogado criminalista, mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), como integrante da Linha de Pesquisa "Direitos Fundamentais e Políticas Públicas", membro do Grupo de Estudos em Processo Penal (EPP/UFC) e da linha de pesquisa em Tribunal Penal Internacional do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (Gedai/UFC).

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