Contas à Vista

Urge pensar por que a saúde canaliza maioria das emendas parlamentares

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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21 de janeiro de 2025, 10h05

As emendas parlamentares ao orçamento são, por definição, alocações fragmentadas a partir do que cada congressista isolada e unitariamente reputa prioritário. Pouco antes de o Supremo Tribunal Federal julgar a inconstitucionalidade das emendas de relator (RP9) em dezembro de 2022, Arthur Lira buscava defender o arranjo, alegando que seria “erro chamar o orçamento de secreto”. Segundo Lira, as indicações dos parlamentares federais corresponderiam a “um orçamento municipalista que atende às necessidades mais urgentes da população”.

Paradoxalmente, porém, aludida dispersão ensejada pelas emendas parlamentares respeita um fluxo que canaliza a maioria de tais intervenções para uma única área: a saúde. Como suscitamos em nossa coluna anterior, “sozinha, a política pública de saúde recebeu cerca de 60% de todas as emendas parlamentares do ano passado”, na medida em que, entre os R$39,69 bilhões pagos em emendas parlamentares (incluídos restos a pagar pagos) ao longo de 2024, R$ 22,9 bilhões foram aplicados na política pública de saúde e, em especial, dentro do piso federal em ações e serviços públicos de saúde (ASPS).

É preciso buscarmos entender tal cenário estruturalmente, para, a partir das suas dimensões constitutivas, tentarmos conceber algumas possíveis rotas de aprimoramento e eventuais alternativas.

A inserção formal dentro do piso federal em saúde das emendas parlamentares ao orçamento geral da União – OGU foi feita pela Emenda Constitucional nº 86/2015. Naquela ocasião, houve a tentativa de conciliar a aprovação das emendas individuais impositivas, de um lado, com o aumento do dever de gasto mínimo em saúde (que deixava de ser o gasto do ano anterior corrigido pela variação nominal do produto interno bruto – PIB, tal como era previsto pela EC 29/2000, e passaria progressivamente [1] a ser 15% da receita corrente líquida), de outro.

Há uma década, portanto, essa solução tem sido mantida como um mecanismo de neutralização recíproca de efeitos: o aumento da participação das emendas parlamentares no OGU é diluído com a sua destinação parcial ao piso da saúde, que passou por episódios de expansão nas EC 86/2015 e EC 126/2022 [2], supostamente mitigando os impactos que ambos os movimentos teriam nas metas fiscais e nas restrições delas decorrentes.

Eis o contexto em que chegamos a 50% das emendas individuais impositivas (que, após o advento da EC 126, correspondem a 1% da RCL) e a 50% das emendas de comissão (artigo 4º, §4º da LC 210/2024) destinadas à política pública de saúde. Além disso, foi contornada a vedação à individualização das emendas parlamentares de bancada, quando forem aplicadas nas ações e serviços públicos de saúde, na forma dos §§4º e 5º do artigo 2º da LC 210/2024.

“Art. 2º As emendas de bancada estadual de que trata o § 12 do art. 166 da Constituição Federal somente poderão destinar recursos a projetos e ações estruturantes para a unidade da Federação representada pela bancada, vedada [3] a individualização de ações e de projetos para atender a demandas ou a indicações de cada membro da bancada.

[…] § 4º Na hipótese em que a programação da emenda de bancada seja divisível, não pode cada parte independente ser inferior a 10% (dez por cento) do valor da emenda, salvo para atendimento a ações e serviços públicos de saúde.

§5º Considera-se parte independente:

I – a compra de equipamentos e material permanente por um mesmo ente federativo;

II – a compra de equipamentos e material permanente, desde que possa ser executada na mesma ação orçamentária;

III – as despesas com custeio, desde que possam ser executadas na mesma ação orçamentária.”

Ou seja, além das regras de subvinculação, há fortes incentivos para que a maioria das emendas parlamentares ao orçamento federal seja computada no piso em saúde, inclusive contornando, por exemplo, os limites impostos pelas decisões do STF à individualização das emendas de bancada, a pretexto de definição de parcelas independentes e divisíveis.

Spacca

Some-se a isso o fato de que a execução das ações e serviços públicos de saúde é altamente terceirizada para entidades supostamente sem finalidade lucrativa, diferentemente da educação onde também há um piso no qual o impacto fiscal da expansão das emendas parlamentares poderia ser igualmente absorvido. Todavia, na educação, a execução do piso em manutenção e desenvolvimento do ensino – MDE é majoritariamente feita de forma direta pelo poder público, com servidores concursados e onde há uma margem consideravelmente menor para repasses alheios ao regime jurídico aplicável à administração pública.

Ainda que eventualmente ocorram casos de desvios como a compra de kits de robótica e lousas digitais superfaturadas, 70% dos recursos do Fundeb, por exemplo, devem ser aplicados necessariamente no quadro de pessoal da educação, que deve ser primordialmente concursado. Por outro lado, na saúde, é dominante a execução indireta, via repasses a entidades do terceiro setor, a qual permite acordos duvidosos que tendem a facilitar o desvio de recursos públicos, a lavagem de dinheiro e o enriquecimento ilícito.

A área da saúde é mais visada, porque tem capilaridade federativa, possui recursos fartos e relativamente estáveis ao longo do tempo e permite ampla alocação terceirizada. Na prática encontra-se, pois, direcionada apenas à execução direta dos estados e municípios a vedação do §10 do artgo 166 da Constituição de que as emendas parlamentares computadas no piso em saúde não podem ser destinadas para pagamento de pessoal ou encargos sociais.

No Texto para Discussão 3010, denominado “Financiamento das ações e serviços públicos de saúde no Brasil: um retrato das desigualdades regionais do período 2010-2022”, Sérgio Francisco Piola e Fabíola Sulpino Vieira, dado o caráter intensivo em mão-de-obra das ações e serviços públicos de saúde, indagam:

“i) se os recursos de custeio por EPs [emendas parlamentares] não estão sendo alocados à despesa com pessoal, para que estão sendo empregados?; e ii) esses repasses estariam fomentando a terceirização da contratação de pessoal, driblando-se o impedimento do gasto com pessoal de forma direta?” (2024, p. 35)

Vale lembrar que os parlamentares almejam, em última instância, indicar o CNPJ da entidade do terceiro setor beneficiária do repasse, sem sequer motivar a escolha e sem ter de justificar o preço praticado, em uma espécie controversamente ilimitada e arbitrária de dispensa de licitação, que afronta as balizas do artigo 37, XXI da Constituição Federal.

Assim são burladas regras publicísticas relativas a teto remuneratório, vedação de nepotismo, dever de realizar concurso público e licitação, limite de despesa de pessoal, entre outras. De certo modo, as emendas parlamentares tentam buscar flexibilidade, liberdade alocativa e opacidade típicas da iniciativa privada, sem aderência ao planejamento setorial das políticas públicas e sem rastreabilidade, razão pela qual se comportam como uma espécie de execução privada do orçamento público.

Vazios assistenciais

Não deixa de ser interessante que, dadas as restrições fiscais impostas às despesas discricionárias que reduziram consideravelmente a margem de expansão das obras de engenharia, recursos que eram destinados preferencialmente às empreiteiras e que eram alvo de diversos escândalos de corrupção nas décadas de 1990 e 2000, estejam sendo direcionados primordialmente agora para as entidades do terceiro setor da saúde, em meio aos impasses das emendas parlamentares no âmbito do “orçamento secreto”.

Para mitigar o risco de pulverização balcanizada dos recursos do SUS, de forma alheia ao planejamento sanitário e às reais necessidades de saúde da população, é preciso rever tais incentivos perversos ao manejo potencialmente arbitrário dos recursos oriundos de emendas parlamentares e computados no piso em ações e serviços públicos de saúde.

É grave e persistente o descumprimento das pactuações federativas acordadas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (artigo 17 da LC 141/2012), assim como é abusiva a desconsideração dos planos nacional, estaduais e municipais de saúde (artigo 36 da Lei 8080/1990 e artigo 30 da LC 141/2012), para ceder espaço para emendas parlamentares, cada vez mais contabilizadas no piso em saúde, sem critérios claros de enfrentamento dos riscos epidemiológicos e das necessidades de saúde da população.

Os vazios assistenciais daí decorrentes são consideráveis e tendem a explodir em maior pressão judicializada por serviços que deixaram de ser ofertados ordinária e planejadamente. Ainda ontem, uma detida reportagem da Folha de S.Paulo apontava que o Ministério da Saúde tem deixado de oferecer à população 76 medicamentos e procedimentos formalmente já incorporados à política pública de saúde desde 2018, entre outros motivos, por falta de dotação orçamentária suficiente para tanto.

“Gestores de saúde e especialistas alertam que essa situação compromete a qualidade dos serviços oferecidos pelo SUS e intensifica a judicialização —um problema que o Ministério da Saúde busca conter pelo impacto no orçamento. A falta de acesso a tecnologias essenciais, no entanto, pode gerar consequências mais graves, como a morte de pacientes.

A reportagem identificou 242 medicamentos e procedimentos incorporados ao SUS entre 2018 e 2024, sendo 31,4% (76) ainda não ofertados pela rede pública.

Esses 76 itens acumulam uma média de 648 dias sem serem disponibilizados pelo SUS, mais de três vezes o prazo previsto em lei (180 dias).

[…] Para Mauro Junqueira, secretário-executivo do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde), a falta de orçamento impacta na disponibilidade de determinados medicamentos, mas há também uma questão de vontade política do Ministério da Saúde.”

[…] Com a demora, pacientes fazem uma corrida desenfreada contra o tempo para obter os tratamentos, levando-os à via judicial ou à promoção de vaquinhas na internet. Nem sempre dá certo, e a morte, não raro, chega antes.”

Tal falta de oferta de 76 medicamentos e procedimentos já formalmente incorporados ao SUS, em última instância, revela o alto custo de oportunidade das alocações fragmentadas que têm sido empreendidas por meio de emendas parlamentares. Com mais de R$ 20 bilhões anuais resguardados, é preciso sistemicamente repensar a própria priorização de despesas controversas de interesse de deputados e senadores, no âmbito de emendas parlamentares computadas no piso federal em saúde, muitas das quais sob investigação da Polícia Federal.

Em face desse cenário, a ideia de um orçamento federal de cunho municipalista que majoritariamente incide sobre o piso em saúde da União demanda, sob pena de nulidade, cumprimento estrito dos requisitos taxativamente previstos no artigo 35 da Lei 8080/1990:

“Art. 35. Para o estabelecimento de valores a serem transferidos a Estados, Distrito Federal e Municípios, será utilizada a combinação dos seguintes critérios, segundo análise técnica de programas e projetos:

I – perfil demográfico da região;

II – perfil epidemiológico da população a ser coberta;

III – características quantitativas e qualitativas da rede de saúde na área;

IV – desempenho técnico, econômico e financeiro no período anterior;

V – níveis de participação do setor saúde nos orçamentos estaduais e municipais;

VI – previsão do plano quinquenal de investimentos da rede;

VII – ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas de governo.”

Fora de tais balizas normativas indispensáveis, a dispersão alocativa das emendas parlamentares na área da saúde realmente tende a se comportar, cada vez mais, como “balbúrdia” orçamentária e “degradação institucional”, tal como o ministro Flávio Dino já alertara. A face concreta desse conflito distributivo tende a se revelar como adoecimento crônico que enseja acúmulo de mortes evitáveis, vazios assistenciais e comprometimento das condições de operação do SUS.

Nesse contexto arbitrário de trato privado da coisa pública, quiçá o último remédio possível para resgatar o controle seja reputar o mandato eletivo de cada parlamentar como uma peculiar unidade orçamentária e cada qual deles como um ordenador de despesas sui generis para fins, no mínimo, da responsabilização cabível.

Tal como André Alexandre Neves da Silva e eu havíamos proposto na coluna Contas à Vista de 6 de agosto de 2024, a imposição do ônus republicano nuclear de prestar contas diretamente a cada congressista permitiria à sociedade brasileira revisitar a fragmentação entre quem delibera o destino das emendas parlamentares e quem é responsabilizado pela sua aplicação, reputando, de fato e de direito, o parlamentar como seu verdadeiro ordenador de despesa para os devidos fins fiscalizatórios.

 


[1] O escalonamento de subpisos iniciados em 13,2% da receita corrente líquida até que fosse alcançado, cinco anos depois, o novo piso federal em saúde de 15% da RCL foi previsto no art. 2º da Emenda 86/2015:

“Art. 2º O disposto no inciso I do § 2º do art. 198 da Constituição Federal será cumprido progressivamente, garantidos, no mínimo:

I – 13,2% (treze inteiros e dois décimos por cento) da receita corrente líquida no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;

II – 13,7% (treze inteiros e sete décimos por cento) da receita corrente líquida no segundo exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;

III – 14,1% (quatorze inteiros e um décimo por cento) da receita corrente líquida no terceiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;

IV – 14,5% (quatorze inteiros e cinco décimos por cento) da receita corrente líquida no quarto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional;

V – 15% (quinze por cento) da receita corrente líquida no quinto exercício financeiro subsequente ao da promulgação desta Emenda Constitucional.”

Todavia, o dispositivo acima foi revogado pelo art. 3º da Emenda Constitucional nº 95/2016. Em dupla manobra, a Emenda do Teto de Despesas Primárias, antecipou o piso federal em saúde maior, para, logo depois, congelá-lo em valores reais até 2036. Ao invés de aguardar até 2020 tal como previa a EC 86, a Emenda 95 impôs a imediata aplicação do piso de 15% da RCL em 2017 e, a partir de 2018, a mera correção monetária pelo IPCA do quanto aplicado no ano anterior.

[2][2] A revogação do teto de despesas primárias dado pela Emenda 95/2016, no bojo da Emenda 126/2022 (Emenda de Transição), permitiu o retorno do piso federal em saúde previsto no art. 198 da CF, qual seja, 15% da RCL, ao invés da mera correção monetária do quanto aplicado no ano anterior, na forma do art. 110 do ADCT.

[3] Vedação que se repete no art. 3º, §1º da Lei Complementar 210/2024:

Art. 3º Serão apresentadas e aprovadas por bancada estadual até 8 (oito) emendas.

§ 1º É vedada a individualização de emenda ou de programação para atender a demanda ou a indicação de cada membro da bancada.”

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