Os RIFs do Coaf e as consequências práticas do Tema 990: é necessário que o STF se pronuncie
21 de janeiro de 2025, 11h15
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, fixou tese no Tema 990 da Repercussão Geral e adotou a proposta formulada pelo ministro Alexandre de Moraes, segundo a qual: “1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios“.
Apesar da clareza da tese ao autorizar o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira (RIFs) sem autorização judicial, a realidade prática impôs novas perguntas: (1) pode a autoridade policial ou o membro do ministério público “encomendar” um RIF para investigar uma pessoa específica?; e (2) pode a autoridade policial ou membro do ministério público requerer um RIF sem qualquer ato investigatório anterior formalmente instaurado (como um inquérito policial ou um PIC no MP)? Ou, como reflexo em caso de resposta positiva, o requerimento pode se justificar em mera denúncia anônima?
Em resumo, ainda que o STF tenha autorizado o compartilhamento de RIFs com autoridade de persecução penal mesmo sem prévia autorização judicial, isso não pode ser feito sem maiores cuidados e limites. E é aqui que precisamos avançar no debate para fomentar a definição de parâmetros pelos tribunais.
Embora os RIFs apresentem menor detalhamento quanto às movimentações financeiras em comparação a uma quebra de sigilo bancário, não se pode ignorar que há informações sensíveis que ali são incluídas. Os RIFs, além de exporem a movimentação financeira do sujeito sob escrutínio, entregam os nomes e CPF/CNPJs das pessoas a ele relacionadas financeiramente – e dali podem ser juntados a processos que, em regra, são públicos.
Em novembro de 2021, a 2ª Turma do Supremo, por maioria, ao julgar o caso envolvendo o senador Flávio Bolsonaro, estabeleceu que o Coaf não pode produzir RIFs por encomenda do Ministério Público ou da polícia (HC/STF nº 201.965) sem prévia investigação formalizada. O relator, ministro Gilmar Mendes, fez ver o risco de fishing expedition, em desacordo com a sistemática estabelecida pelo Plenário do STF no tema 990.
Em sentido oposto, a 1ª Turma do STF, por unanimidade, em abril último, decidiu ser legítima a encomenda dos relatórios por autoridades investigativas à unidade de inteligência financeira (RCL/STF nº 61.499, relator ministro Cristiano Zanin). Nesse caso, a pessoa alvo da investigação teve devassadas suas movimentações financeiras realizadas num período de 6 anos e 5 meses, em relatório que expôs o sigilo de ao menos outras 43, sem qualquer relação com as supostas ilicitudes.
Em novembro de 2024, a mesma 1ª Turma foi além: estabeleceu que não há necessidade de prévia investigação formal contra a pessoa, admitindo RIF requerido sem autorização judicial a partir de mera denúncia anônima, em procedimento instaurado como notícia de fato, ou seja, sem inquérito ou PIC formalizado (RCL/STF nº 70.191, relator ministro Alexandre de Moraes) É dizer: a partir de agora, a prevalecer o entendimento da 1ª Turma, uma mera denúncia anônima pode justificar a requisição de RIF, inclusive como ato inaugural de investigação.
Se assim o for, corre-se o risco de multiplicação dos pedidos de RIFs, uma vez que passarão a depender meramente da iniciativa dos delegados responsáveis pelos inquéritos ou membros do ministério público a cargo de procedimentos investigatórios. Cria-se um superpoder investigatório, sem a devida atenção ao poder informacional que está nas mãos do Estado brasileiro.
A necessidade de limites ao compartilhamento de RIFs
Ante a evolução imposta pela realidade, é indispensável que o Plenário do STF volte ao tema, pois as hipóteses encampadas pela 1ª Turma são distintas da tese já decidida no tema 990. O Superior Tribunal de Justiça, enquanto perdurar a ausência de posicionamento do Pleno do STF, tem se posicionado, em suas duas Turmas com competência penal, pela ilegalidade tanto dos RIFs por encomenda da polícia quanto daqueles sem investigação prévia.
A existência de critérios mínimos para a obtenção de sigilos é relevante garantia a inibir pescarias probatórias e escolhas de alvos. As investigações devem ocorrer sobre fatos, e não sobre a vida de pessoas, as quais podem ser escolhidas por motivos diversos e inadmissíveis.
Por óbvio, a persecução penal de crimes graves é medida essencial, devendo ser estruturados mecanismos céleres e efetivos para tanto. Contudo, se os dados financeiros são estáticos e estão em poder de órgão público, sem a possibilidade de adulteração pelo investigado, qual é o prejuízo de estabelecer-se a necessidade de prévia autorização judicial ou, ao menos, critérios claros para sua aquisição em investigações criminais?
É imprescindível impor limites ao compartilhamento de RIFs para fins penais, de modo a resguardar os direitos fundamentais e evitar abusos estatais. Para isso, os tribunais, mantendo a posição que dispensa o prévio controle judicial, precisam estruturar critérios e parâmetros para limitar o poder de requisição de tais dados, de modo a viabilizar um mínimo controle posterior. Requisições justificadas somente em denúncias anônimas, sem prévia investigação formalizada, não podem ser admitidas. Por exemplo, os requerimentos de RIFs precisam apresentar justificativa legítima, a partir de investigação previamente formalizada e específica, com a delimitação de sua abrangência temporal e quanto a pessoas determinadas.
A discussão não pode ser simplificada à aderência de um tema que a realidade, em pouco tempo, superou. O Estado precisa ter os mecanismos de gestão do poder informacional, de modo a garantir os direitos fundamentais. Cabe ao Supremo, neste caso, ante a ausência de normativa, estabelecer critérios para que o sistema de justiça funcione de modo legítimo.
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