Modernização penal: a construção de um ANPP garantista
21 de janeiro de 2025, 17h16
Desde sua introdução pela Lei Federal 13.964/2019, o chamado “Pacote Anticrime”, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) transformou-se em uma das mais importantes ferramentas de justiça negociada no Brasil. Esse instituto não apenas representa uma resposta à crise de sobrecarga do sistema penal, mas também reflete uma mudança paradigmática na busca por um modelo mais eficiente, proporcional e comprometido sobretudo com as garantias fundamentais.
Concebido como um mecanismo de desburocratização do processo penal, o ANPP almeja oferecer soluções rápidas e justas para delitos de menor gravidade, conciliando celeridade com a efetiva proteção de direitos. Em um contexto em que o sistema penal enfrenta o dilema entre a eficiência e o respeito à dignidade humana, o ANPP se apresenta como um instrumento que visa harmonizar essas demandas, contribuindo para a racionalização do uso de recursos públicos e a pacificação social. Contudo, seu sucesso depende de uma aplicação criteriosa, alinhada aos princípios constitucionais e aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em matéria de direitos humanos.
É oportuno destacar, desde a introdução, que o ANPP passou por uma relevante evolução dogmática ao consolidar-se como um instrumento de garantias fundamentais. Inicialmente concebido como um mecanismo estritamente pré-processual, sua aplicação foi ampliada pelo Supremo Tribunal Federal (STF, Plenário, HC 185.913), que admitiu sua utilização até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Essa mudança reflete o compromisso do sistema jurídico com a máxima efetividade dos direitos fundamentais, reafirmando o ANPP como uma ferramenta indispensável na promoção de uma justiça penal mais humanizada e eficiente.
Apesar do potencial transformador, a aplicação prática do ANPP ainda enfrenta desafios significativos que comprometem sua eficácia e legitimidade. Dentre as questões mais debatidas, destacam-se: a recusa não fundamentada (ausência de fundamentação) ou inadequadamente motivada (fundamentação inidônea) por parte do Ministério Público; a exigência de confissão como requisito indispensável para a celebração do acordo, mesmo quando isso contraria princípios, como o nemo tenetur se detegere; e as dificuldades relacionadas à interpretação do instituto em casos de concurso de crimes.
Esses aspectos demonstram que, embora o ANPP represente um avanço, sua concretização plena exige um controle jurisdicional efetivo, capaz de garantir que os objetivos de celeridade e eficiência não sejam alcançados às custas da ampla defesa, do contraditório e de outros direitos fundamentais. É imprescindível assegurar que o ANPP opere como um verdadeiro instrumento de justiça negocial, reafirmando o compromisso do sistema penal com a dignidade humana e o devido processo legal.
Nos tópicos seguintes, abordarei essas questões sob a perspectiva da defesa criminal, evidenciando a relevância de um olhar crítico e técnico para que o ANPP cumpra seu papel de forma equilibrada e constitucionalmente adequada.
A recusa imotivada: controle e limites da discricionariedade
Como já salientado, o ANPP introduziu um modelo de justiça penal que combina celeridade com proporcionalidade, porém sua eficácia depende do uso criterioso e regrado da discricionariedade pelo Ministério Público. Quando a recusa ao acordo não está fundamentada (ausência de fundamentação) ou inadequadamente motivada (fundamentação inidônea), a integridade do sistema e os direitos fundamentais do investigado são diretamente comprometidos.
A Constituição da República, em seu artigo 93, IX, consagra a obrigatoriedade de fundamentação como elemento central de qualquer decisão que impacte direitos, ao estabelecer que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões”. Embora direcionada ao Judiciário, essa norma irradia efeitos sobre todos os agentes públicos que exerçam funções com repercussão na esfera jurídica do indivíduo, destacando-se os órgãos de persecução penal. Assim, a ausência de motivação adequada nas recusas ao ANPP não apenas desrespeita princípios processuais básicos, mas também afronta a ordem constitucional ao negligenciar o dever de transparência e accountability.
Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem evoluído no enfrentamento de abusos relacionados à recusa injustificada do ANPP. Em decisões como o REsp 2.038.947, o ministro Rogerio Schietti Cruz destacou que “a recusa injustificada ou ilegalmente motivada do Ministério Público em oferecer o acordo deve levar à rejeição da denúncia, por falta de interesse de agir”. Essa interpretação reforça que a recusa ao ANPP deve estar ancorada em critérios objetivos, sob pena de comprometer a proporcionalidade e o devido processo legal.
No plano doutrinário, Gustavo Badaró defende que “só é cabível a denúncia se, previamente, a proposta de acordo de não persecução penal for rejeitada ou, justificadamente, conclua-se que não era o caso de sua formulação” [1]. Esse entendimento alinha-se aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, assegurando que o ANPP não seja tratado como mera faculdade discricionária, mas como um instrumento regido pelo princípio do poder-dever estatal.
Aury Lopes Jr. complementa essa visão ao sublinhar que “a acusação não pode, diante da inegável existência de penas processuais, ser leviana e despida de um suporte probatório suficiente para, à luz do princípio da proporcionalidade, justificar o imenso constrangimento que representa a assunção da condição de réu” [2]. A recusa imotivada não apenas desrespeita garantias processuais, mas também compromete valores fundamentais como a dignidade humana, ao expor o investigado a constrangimentos desnecessários e desproporcionais.
Portanto, a exigência de motivação idônea não é um mero formalismo burocrático, mas uma salvaguarda contra práticas arbitrárias que podem transformar o ANPP em um instrumento de exclusão e desigualdade. O controle jurisdicional, nesse contexto, desempenha um papel indispensável, garantindo que o Ministério Público exerça sua função dentro dos limites constitucionais e legais, em consonância com os princípios de justiça, igualdade e respeito aos direitos fundamentais.
Confissão e o princípio
Outro ponto controverso é a exigência de confissão formal e circunstanciada para a celebração do ANPP. Embora tal requisito esteja previsto na legislação, sua aplicação indiscriminada pode violar o princípio do nemo tenetur se detegere – o direito de não produzir prova contra si mesmo – e a presunção de inocência.
Normas internacionais de direitos humanos, como o Pacto de San José da Costa Rica, também protegem o indivíduo contra autoincriminação forçada. Esse pacto, ratificado pelo Brasil, consagra o direito de não se autoincriminar como um dos pilares da proteção à dignidade humana em processos judiciais e negociais. Assim, condicionar o ANPP a uma confissão incondicional não apenas afronta normas internacionais, mas também compromete a legitimidade do instituto ao restringir indevidamente o acesso do investigado ao acordo.
Sobre essa exigência, Eugenio Pacelli observa que “a confissão não pode ser tratada como um elemento central ou insubstituível no processo penal negociado, sob pena de transformar um direito em verdadeira imposição” [3]. Essa visão destaca que a confissão deve ser voluntária, contextualizada e proporcional, e não um requisito absoluto que negue os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Decisões de órgãos de controle, como a Recomendação Conjunta 02/2023-PGJ/CGMP da Procuradoria Geral de Justiça de Mato Grosso, reforçam essa interpretação. Ao afirmar que a confissão não pode ser um obstáculo intransponível para a celebração do acordo, a recomendação alinha-se à necessidade de interpretações mais humanizadas e aderentes às garantias individuais. Essa posição também reflete uma compreensão mais moderna e constitucionalmente adequada do processo penal negocial, em que direitos fundamentais são colocados no centro da discussão.
Ademais, condicionar o ANPP a uma confissão irrestrita pode levar a distorções graves, como o constrangimento de indivíduos a admitir fatos que não cometeram ou a renunciar ao princípio de presunção de inocência em troca de benefícios processuais. Essa situação não apenas enfraquece o papel do ANPP como instrumento de justiça, mas também gera um ambiente de insegurança jurídica que compromete a confiança no sistema penal.
Portanto, para que o ANPP cumpra seu objetivo de maneira constitucionalmente adequada, é imprescindível que a confissão seja tratada como um elemento acessório e voluntário, não como condição absoluta para o acordo. A defesa criminal desempenha um papel essencial nesse contexto, ao garantir que o ANPP não seja utilizado como ferramenta de coerção, mas como um meio de promoção da justiça material e da proteção de direitos fundamentais.
Concurso de Crimes: uma interpretação proporcional
A aplicação do ANPP em casos de concurso de crimes é outro aspecto que exige uma análise cautelosa e sensível aos princípios constitucionais. Embora a legislação não seja expressa nesse ponto, a doutrina e a jurisprudência têm apontado para a necessidade de se evitar interpretações que somem penas mínimas de forma indevida, inviabilizando o acordo e desrespeitando a individualização das penas.
Leonardo Schmitt de Bem [4] defende que, assim como ocorre para fins de prescrição penal, cada crime deve ser analisado isoladamente. Essa leitura, baseada no artigo 119 do Código Penal, assegura que as penas sejam tratadas de forma individualizada, evitando uma interpretação em prejuízo ao investigado. A individualização das penas, como preconizado no artigo 5º, XLVI, da Constituição da República, não é apenas uma garantia do investigado, mas um reflexo do princípio da proporcionalidade aplicado à justiça penal negocial.
Por exemplo, em um caso de estelionato e falsidade ideológica, ambos com penas mínimas inferiores a quatro anos, seria inadequado somar as penas mínimas para afastar a possibilidade de celebração do ANPP. Cada conduta deve ser avaliada separadamente para determinar a viabilidade do acordo, sob pena de criar um critério mais gravoso ao investigado do que aquele aplicável no processo penal tradicional. Tal interpretação respeita não apenas a individualização das penas, mas também os objetivos constitucionais de uma justiça mais justa e eficiente.
Essa posição também encontra respaldo em decisões do Superior Tribunal de Justiça, que tem reafirmado a necessidade de evitar interpretações em prejuízo do investigado, em especial quando não há previsão legal para vedar o acordo. O REsp 2.038.947 é um exemplo desse posicionamento, ao destacar que não cabe ao Ministério Público ou ao Judiciário criar impedimentos não previstos pelo legislador.
Portanto, o tratamento adequado do concurso de crimes no âmbito do ANPP não é apenas uma questão de interpretação legal, mas de respeito aos princípios constitucionais de individualização da pena, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana. A defesa criminal, mais uma vez, tem o papel de garantir que esses princípios sejam observados, evitando que interpretações arbitrárias ou restritivas inviabilizem o acesso a uma justiça mais equilibrada e eficiente.
Considerações finais
O ANPP representa um marco significativo na modernização da Justiça Penal brasileira. Introduzido como uma ferramenta para aliar celeridade processual à proteção de direitos fundamentais, o ANPP tem o potencial de promover uma justiça mais eficiente, humana e proporcional. Contudo, sua eficácia depende diretamente de uma aplicação criteriosa e alinhada aos princípios constitucionais.
Nesse contexto, o papel do advogado criminal é insubstituível. Cabe à defesa garantir que o ANPP seja utilizado como um instrumento de solução justa, e não como uma ferramenta de punição antecipada ou de desrespeito a garantias individuais. O questionamento de recusas injustificadas, o combate à imposição de confissões absolutas e a promoção de interpretações proporcionais em casos de concurso de crimes são exemplos da atuação estratégica da defesa na consolidação de uma justiça negocial efetiva e democrática.
Mais do que um mecanismo de eficiência, o ANPP é um reflexo do avanço civilizacional, reafirmando que o Direito Penal deve ser pautado pelo equilíbrio entre celeridade e dignidade humana. Quando aplicado com responsabilidade e respeito às garantias constitucionais, o ANPP não apenas racionaliza o uso de recursos públicos, mas também fortalece os valores democráticos, assegurando que a justiça penal cumpra seu papel de forma justa e equitativa.
O desafio, portanto, é transformar o potencial do ANPP em realidade concreta, garantindo que cada caso seja tratado com o devido zelo e respeito aos princípios que sustentam o Estado de direito. Apenas assim consolidaremos o ANPP como um verdadeiro alicerce de uma justiça penal moderna, humanizada e comprometida com os ideais democráticos.
[1] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 194.
[2] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, vol. I, p. 343.
[3] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal, 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2021, p. 221.
[4] Os Requisitos do Acordo de Não Persecução Penal. In: Acordo de Não Persecução Penal, Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Martinelli (org.), 3ª ed., Belo Horizonte, São Paulo, D’Plácido, 2022, p. 276.
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