Opinião

Imposto Seletivo e suas funções ocultas: há extrafiscalidade?

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  • é advogada do Contencioso Administrativo no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados doutora em Direito pela Unisinos mestre em Direito Público pela Unisinos professora universitária e especialista em Direito Público pela Esmafe-RS.

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  • é estagiária da Inovação no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) membra do Grupo de Pesquisas Avançadas em Direito Tributário (G-Tax) da PUC-RS e presidente do Núcleo de Estudos Tributários e Competições do Rio Grande do Sul (NETcRS).

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21 de janeiro de 2025, 6h01

As constantes mudanças climáticas, a escassez de recursos naturais, as epidemias, a poluição e os desastres ecológicos são cada vez mais frequentes e impactam diretamente a economia e o bem-estar da população. Nesse cenário, uma economia integrada à proteção ambiental torna-se mais competitiva, pois reduz custos a longo prazo e melhora a qualidade de vida dos cidadãos.

Com esse objetivo, as primeiras versões das Propostas de Emenda Constitucional (PECs) nº 45/2019 e 110/2019 buscaram alinhar a tradição brasileira à tendência internacional de tributação de bens prejudiciais ao meio ambiente e à saúde. Ambos os projetos previam a criação de um Imposto Seletivo (IS), aplicado sobre o consumo de produtos com efeitos negativos nesses âmbitos.

Com a aprovação e publicação da Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023, o IS passou a ser foco de debates devido à sua controvertida função extrafiscal. Afinal, esse imposto visa realmente incentivar comportamentos menos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente ou tem apenas um propósito arrecadatório?

Para responder a essas questões, este artigo analisa a função extrafiscal do tributo, especialmente em relação ao meio ambiente, apresentando seus aspectos conceituais e destacando o papel do Imposto Seletivo na promoção de uma economia mais sustentável.

Aspectos conceituais da extrafiscalidade ambiental

A pandemia de Covid-19 evidenciou a estreita interdependência entre os seres humanos e a natureza, ressaltando a necessidade de reconhecer essa conexão para mitigar riscos de futuras pandemias, conforme aponta a European Environment Agency. Nesse contexto, a proteção ambiental ganhou ainda mais relevância nos debates internacionais, destacando o papel dos Estados em fomentar políticas de inovação e preservação ambiental, não apenas como medida de sustentabilidade, mas também como estratégia para assegurar sua competitividade no mercado global.

Nesse cenário, o Estado brasileiro, por meio da EC nº 132/2023 e da Lei Complementar (LC) nº 214/2025, instituiu o Imposto Seletivo, direcionado a produtos e serviços prejudiciais ao meio ambiente e à saúde pública. A discussão que emerge refere-se à natureza dessa tributação: seria o IS um instrumento extrafiscal ou meramente fiscal? Caso se enquadre na categoria extrafiscal, espera-se que ele também promova práticas menos prejudiciais, e não apenas penalize aquelas danosas com finalidade arrecadatória.

A compreensão do conceito de extrafiscalidade é essencial para essa análise, e sua definição pode ser encontrada tanto na doutrina nacional quanto internacional. No Brasil, o jurista Humberto Ávila esclarece que a extrafiscalidade tem como objetivo “induzir comportamentos por meio da criação de situações em que o contribuinte será premiado ou penalizado economicamente, diante da possibilidade de adoção de comportamentos considerados socialmente desejáveis” [1].

Spacca

O doutrinador Paulo de Barros Carvalho reforça essa perspectiva ao destacar que a extrafiscalidade se manifesta quando o legislador, em busca de objetivos sociais, políticos e econômicos, oferece um tratamento tributário mais favorável ou menos oneroso a determinadas práticas [2]. Em outras palavras, trata-se de mecanismo típico de intervenção estatal, que faz uso da tributação para (des)incentivar práticas e condutas socialmente desejadas.

No cenário internacional, o doutrinador português José Casalta Nabais compartilha dessa visão, definindo a extrafiscalidade como um conjunto de normas tributárias destinadas à consecução de objetivos econômicos e sociais, em oposição à simples arrecadação de receitas para custear despesas públicas [3].

Com essas premissas conceituais em mente, analisa-se a finalidade do IS brasileiro, recentemente aprovado pela EC nº 132/2023, à luz de sua potencial função extrafiscal.

O Imposto Seletivo brasileiro e a “proteção ambiental”

Na redação original da PEC nº 45/2019, o IS estava previsto como um tributo de função extrafiscal, introduzindo um novo paradigma de proteção ambiental no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, durante o processo legislativo, essa terminologia foi retirada do texto final aprovado, deixando em aberto o debate sobre sua real finalidade.

O IS reflete uma tendência global de expansão dos chamados tributos corretivos, que têm como objetivo principal enfrentar externalidades negativas. Por meio desses tributos, busca-se desestimular o consumo de bens e serviços prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente. A lógica subjacente é que o custo gerado pela produção ou consumo de tais bens seja internalizado pelos responsáveis, evitando que os prejuízos sejam repassados à sociedade.

Nesse modelo, os tributos influenciam as decisões de produção e consumo ao incorporar os custos sociais decorrentes de atividades danosas. Quando bem calibrados, esses tributos ajustam a oferta e a demanda de forma a minimizar os impactos negativos à coletividade, como danos ambientais ou riscos à saúde [4].

Outro exemplo de tributação seletiva é a chamada tributação sobre o pecado, que incide sobre produtos considerados socialmente indesejáveis, como álcool, tabaco e alimentos ultraprocessados. Esse tipo de tributo não apenas desestimula comportamentos prejudiciais, mas também gera receitas que podem ser utilizadas pelo Estado para compensar os custos sociais decorrentes dessas práticas.

Dessa maneira, os tributos corretivos emergem como ferramentas estratégicas de financiamento de políticas públicas ambientais. Assim, a tributação deixa de ser meramente arrecadatória e passa a ser um instrumento de incentivo a comportamentos alinhados aos objetivos de preservação ambiental e sustentabilidade [5].

De competência exclusiva da União, o IS foi instituído por meio da Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025. A administração e a fiscalização ficarão a cargo da Receita Federal (RFB), e o contencioso administrativo será regido pelo Decreto nº 70.235/1972.

O IS não incidirá sobre exportações nem sobre operações envolvendo energia elétrica e telecomunicações. Além disso, sua incidência será única sobre o bem ou serviço e não integrará sua própria base de cálculo, conforme disposto no artigo 153 da Constituição e seus incisos e parágrafos [6].

É fundamental ressaltar que o IS não visa oferecer desonerações fiscais a quem preserva o meio ambiente, mas sim aplicar uma tributação específica sobre aqueles que realizam atividades prejudiciais ao equilíbrio ambiental. Dessa forma, trata-se de um mecanismo fiscal que busca efetivar o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, promovendo a responsabilização financeira de quem contribui para sua degradação.

Reflexões finais: IS vai além da arrecadação?

Diante do exposto, cabe questionar: o novo imposto incidente sobre atividades econômicas prejudiciais ao meio ambiente, desde que incluídas no rol taxativo, possui uma finalidade que transcende a mera arrecadação de receitas públicas?

Conforme o presente artigo, um tributo pode ser caracterizado como extrafiscal quando, além de sua função arrecadatória, busca desestimular práticas econômicas lesivas ao meio ambiente. Nessa perspectiva, as limitações ao poder de tributar tornam-se menos rígidas, dado que a finalidade do imposto passa a ser a correção de comportamentos prejudiciais. Entretanto, se não houver um propósito claro de inibir tais atividades, estaremos diante de um tributo meramente arrecadatório, sem qualquer impacto direto na promoção de práticas sustentáveis.

Na ausência de uma função desincentivadora de condutas ambientalmente nocivas, outra interpretação possível para o IS é a de um tributo finalístico quanto à destinação dos recursos. Nesse caso, o objetivo seria mitigar os danos ambientais causados pelo consumo de bens e serviços provenientes de determinadas atividades econômicas. Em outras palavras, a arrecadação do IS teria como destino financiar medidas de compensação ou neutralização dos impactos ambientais decorrentes de tais atividades.

Ocorre que a receita oriunda da arrecadação da espécie tributária “imposto” não possui destinação vinculante obrigatória, de forma que não há obrigatoriedade de que a receita proveniente da incidência do Imposto Seletivo seja atribuída às medidas sustentáveis ambientais. Com a sua efetiva implantação, será possível avaliar se sua arrecadação será devidamente direcionada para ações de mitigação da degradação ambiental.

Caso o IS não contemple essa finalidade em sua norma legal, a conclusão inevitável é que se trata de mais uma estratégia governamental para ampliar a carga tributária, disfarçada sob o discurso de sustentabilidade e proteção ambiental. Essa prática enfraquece a credibilidade das políticas públicas voltadas à preservação do meio ambiente e gera desconfiança na população quanto ao real compromisso do Estado com a transição ecológica.

Portanto, a efetiva caracterização do IS como um tributo extrafiscal dependerá da destinação concreta dos recursos arrecadados para projetos que promovam a transição ecológica e elevem a qualidade de vida da população. Se os valores não forem empregados em iniciativas que desestimulem o consumo de bens e serviços nocivos ou em políticas de compensação ambiental, o imposto será apenas mais uma fonte de receita para o orçamento geral, sem qualquer impacto transformador sobre a sustentabilidade e a proteção ambiental.

 


[1] ADAMY, Pedro. Instrumentalização do Direito Tributário. In ÁVILA, Humberto. Fundamentos do Direito Tributário. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 303.

[2] CARVALHO, Paulo de Barros. In SOUZA, Jorge Henrique de Oliveira. Tributação e meio ambiente. p. 99.

[3] NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para compreensão do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009, p. 633.

[4] ANDRADE, José Maria Arruda de. Imposto seletivo e pecado: juízos críticos sobre tributação saudável. São Paulo, SP: IBDT, 2024. p. 69 – 75.

[5] ANSELMINI, Priscila. Tributação e desigualdade de renda na economia do conhecimento. Belo Horizonte, MG: Fórum, 2023. p. 205.

[6] Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: (…)

VIII – produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar. (…)

§ 6º O imposto previsto no inciso VIII do caput deste artigo:

I – não incidirá sobre as exportações nem sobre as operações com energia elétrica e com telecomunicações;

II – incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço;

III – não integrará sua própria base de cálculo;

Autores

  • é advogada, sócia do Contencioso Administrativo no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados, pós-doutora em Direito Tributário (UFRGS), doutora e mestre em Direito Público (Unisinos), especialista em Direito Público (Esmafe-RS).

  • é estagiária da Inovação no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados, graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), membra do Grupo de Pesquisas Avançadas em Direito Tributário (G-Tax) da PUC-RS e presidente do Núcleo de Estudos Tributários e Competições do Rio Grande do Sul (NETcRS).

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