Provando que a diabetes tipo 1 é uma deficiência
20 de janeiro de 2025, 21h16
Com a promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CIPCD), com força de emenda constitucional, o Brasil inaugurou um novo marco regulatório envolvendo o tratamento das deficiências. Superou-se o paradigma anterior, marcado por constantes atualizações e revisões em um rol fechado de doenças e condições clínicas, que, não raro, esquecia e apagava deficiências invisíveis, silenciosas ou raras.
Recentemente, o Congresso Nacional aprovou, com louvor, o PL nº 2.687/2022, que reconhece a condição de pessoa com deficiência dos portadores de diabetes mellitus tipo 1 no Brasil (DM1). O texto aprovado faz justiça às pessoas que sofrem dessa enfermidade[1], as quais, embora preencham todos os requisitos legais atualmente exigidos para que sejam considerados pessoas com deficiência, recorrentemente veem seus direitos negados por particulares, ou mesmo pelo próprio Estado.
Em 13 de janeiro de 2025, o texto foi integralmente vetado.
O presente artigo, contudo, não se destina a criticar o veto aposto, pois disso já se encarregou a política e a mídia. O objetivo é provar a justeza da proposta legislativa e demonstrar que a DM1 implica limitações substanciais de natureza biológica, psíquica e social, se enquadrando no paradigma legal e constitucional de deficiência.
O paradigma constitucional de deficiência
Na ordem vigente, pessoa com deficiência (disability) é aquela que “tem impedimento (impairment) de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. A redação em questão é extraída da Lei nº 13.146/2015, e, embora similar, não é idêntica à da convenção internacional. A redação legal dá ainda maior amplitude ao conceito, ao eliminar a necessidade de concorrência de múltiplas barreiras.
Da definição legal, extraem-se os seguintes elementos do conceito de pessoa com deficiência:
- O impedimento (impairment) — é o defeito, a malformação, a disfunção ou a ausência de determinada função vital, órgão ou sistema, seja por razões congênitas, condições de saúde ou acidentes. A Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda sob a antiga sistemática, definia impedimento como “qualquer perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica”[2].
- Longo prazo — não pode o impedimento ser breve, ou de curto prazo, para que possa ser considerado uma deficiência; não precisa, contudo, ser permanente, bastando que se estenda por período considerável, à luz de suas consequências e da vida da pessoa afetada.
- Potencial de obstrução de participação em igualdade de condições — o impedimento deve ser capaz de trazer consequências práticas para a vida da pessoa afetada, com prejuízos na esfera política, psíquica, laboral, social, financeira, da saúde, autoestima, entre outras, quando comparada às pessoas que dele não sofrem. Não se exige que o impedimento seja visível, e nem que acarrete prejuízo imediato, mas que tenha o potencial de fazê-lo.
Note-se que, segundo os mais avançados padrões mundiais, a existência de determinado tratamento, suprimento, aparelho, órtese ou prótese que mitigue os efeitos do impedimento não deve ser considerada na aferição de seus efeitos, para fins de classificação como deficiência. Em outras palavras, na avaliação da deficiência, os efeitos do impedimento devem ser considerados como se as medidas de mitigação ou tratamento não existissem. A título de exemplo, o Regulamento do “2010 Equality Act” (Reino Unido):
Por exemplo, se uma pessoa com um impedimento auditivo utiliza um aparelho auditivo, a questão de determinar se os efeitos desse impedimento são adversos e substanciais deve ser decidida com referência no nível de audição que teria sem o aparelho. Similarmente, no caso de uma pessoa cuja diabetes está sendo controlada com remédios ou dieta, a questão deve ser decidida com referência aos efeitos que a condição teria se ele ou ela não estivesse tomando a medicação ou seguindo a referida dieta.
Os Estados Unidos e a OMS adotam parâmetros interpretativos similares em casos em que o impedimento possa ser objeto de tratamento ou mitigação.
Por fim, essencial ressaltar que deficiência não se confunde com incapacidade. A pessoa com deficiência pode ser capaz de trabalhar, estudar, fazer suas atividades diárias e se relacionar socialmente, o que, inclusive, é um dos objetivos do sistema legal de proteção a essa população. O que importa para a caracterização é que, na interação com essas atividades, a pessoa com deficiência corra riscos ou enfrente dificuldades de naturezas diversas, que as pessoas sem deficiência não enfrentam.
Algumas deficiências podem também gerar incapacidade, total ou parcial, temporária ou permanente, para uma ou mais atividades. Essa constatação apenas será relevante para determinar o grau da deficiência, e eventual acesso a direitos garantidos às pessoas que sofrem de incapacidade laboral. Além disso, enquanto a avaliação da deficiência desconsidera eventuais medidas mitigadoras, na maioria das ordens jurídicas a incapacidade pode ser elidida por medicamentos, tratamentos, aparelhos e insumos.
Ainda, deve-se atentar para o fato de que o enquadramento considera os impactos e dificuldades enfrentados pela pessoa com deficiência em relação às pessoas normais, que não sofrem do mesmo impedimento, e não em relação a outras pessoas com deficiência. Assim, não se deve comparar o impedimento em exame com outros impedimentos, mais ou menos graves, e sim com a condição da pessoa que não sofre de quaisquer impedimentos.
Panorama da diabetes mellitus tipo 1
A diabetes mellitus tipo 1 é uma doença autoimune, hereditária e incurável, caracterizada pela drástica redução ou completa cessação da produção dos hormônios insulina e glucagon. A doença não tem idade, gênero ou classe social, sendo a forma de diabetes mais comum em crianças e adolescentes. Assim, a diabetes tipo 1 caracteriza-se pela completa ausência de dois hormônios vitais à sobrevivência, pois responsáveis pela regulação da glicose no sangue e pela adequada utilização da energia no organismo.
Sem a insulina, as células não podem receber a glicose, que se acumula no sangue (hiperglicemia). Sem o glucagon, o corpo fica incapaz de reagir às quedas da glicose, podendo causar hipoglicemias com efeitos imediatos, incluindo perda de consciência e óbito. Antes da descoberta da insulina, a expectativa de sobrevida do enfermo era de alguns meses após o diagnóstico, e o tratamento envolvia longos períodos de jejum [3].
Não se confunde com a diabetes tipo 2, de mesmo nome, mas substancialmente diferente. Nesta, o corpo produz níveis regulares de insulina e glucagon, mas o corpo possui dificuldades na utilização eficiente do hormônio (resistência), sendo passível de prevenção em uma escala de saúde pública, normalmente atingindo pessoas mais velhas. Seu tratamento geralmente envolve hipoglicemiantes orais, dieta e exercícios físicos.
A DM1 é extremamente grave, e seu cuidado é intensivo, exigindo, durante toda a vida do paciente, tratamento especializado com endocrinologistas, alimentação especializada, contagem de carboidratos, atendimento nutricional, monitoramento contínuo da glicose, aquisição de medicamentos, insumos e aparelhos onerosos, além do apoio de familiares e dos serviços de saúde em emergências.
Mesmo com as possibilidades de tratamento disponíveis, a expectativa de vida de um diabético tipo 1 que recebe o diagnóstico com 10 anos de idade é de apenas 52 anos, representando uma perda de 25 anos em relação à população em geral. A perda de anos de vida saudável pode chegar a 48 anos [4]. As consequências de longo prazo da DM1 são gravíssimas: falência renal, cegueira, amputações de membros, neuropatias, dentre outras.
Assim, não há dúvida de que a DM1 é um impedimento físico de longo prazo, pois caracteriza perda total, irreversível e inevitável do funcionamento de uma função vital do pâncreas.
Efeitos no dia a dia, riscos e complicações
É importante ressaltar que o portador de diabetes tipo 1 não possui apenas uma doença, que pode ser tratada com uso de medicamentos em determinados horários do dia, ou ignorada. Na verdade, o diabético carrega consigo um encargo permanente de cuidado, ficando incumbido de substituir as funções de um órgão, que, nas pessoas normais, opera automaticamente.
Qualquer erro ou desídia pode gerar consequências graves, e até ser fatal, pois a ação humana não substitui com perfeição a função metabólica natural. Além disso, conforme apontou a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) na audiência pública do Senado, mais de 40 fatores influenciam a taxa de glicose no sangue, sendo extremamente difícil o controle pelos pacientes, sobretudo sem conhecimento, tempo ou aparelhos adequados.
Assim, o primeiro obstáculo está no gerenciamento da rotina da pessoa diabética. Aplicar uma dose de insulina errada, ficar sem se alimentar por algumas horas ou ficar sem o medicamento pode ser suficiente para trazer consequências graves em poucas horas [5]. Ainda mais perigosas são as hipoglicemias noturnas, que atingem os pacientes quando estão mais vulneráveis.
No caso das crianças e adolescentes, a falta de treinamento das equipes escolares expõe os pacientes a risco, sendo que muitas instituições chegam a proibir ou punir o monitoramento da glicemia durante provas e exames [6]. Por vezes, o atendimento especial é negado sob o argumento de que a doença não caracterizaria deficiência.
No caso de bebês diabéticos, muitas vezes as mães precisam deixar seus trabalhos para oferecer dedicação integral ao monitoramento da glicose da criança, uma vez que se trata de pessoa incapaz de dar indícios da ocorrência de hipoglicemias. Daí a origem do termo “mãe-pâncreas”, utilizado na comunidade dos DM1.
Outro conceito importante é o de “pontos de decisão”, utilizado pela SBD para medir o impacto da DM1 no quotidiano dos pacientes. Segundo a entidade, o diabético precisa tomar, em média, 100 decisões a mais em um dia comum, em comparação com uma pessoa sem a doença. Atividades e decisões simples, ou automáticas, podem se transformar em complexos pontos de tomada de decisão.
Não se olvidam, ainda, dos impactos psicológicos, emocionais e financeiros da doença, que afetam não apenas o paciente, mas seu círculo familiar próximo com bastante agressividade. Trata-se de uma doença cara, de difícil controle e que é associada a uma incidência maior de problemas psiquiátricos, como ansiedade e distúrbios alimentares, agravados com a piora da saúde em decorrência de complicações [7].
Mercado de trabalho e inclusão: “Doente demais, mas não doente o suficiente”
A convenção internacional de regência reconhece “o direito das pessoas com deficiência ao trabalho, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. A DM1 é, inequivocamente, fato gerador de preconceitos, discriminações e inacessibilidade no ambiente de trabalho, tanto no setor público quanto no setor privado[ 8].
Em primeiro lugar, como já mencionado, há as limitações inerentes à deficiência, que acabam por excluir o diabético de uma extensa gama de atividades. O cuidado com a DM1 demanda rotinas mais maleáveis, pausas recorrentes para alimentação, verificação da glicemia e aplicação da insulina, bem como tolerância a situações ordinárias (como buscar medicamentos ou realizar consultas de rotina) e emergenciais (sobretudo em pacientes com predominância de hipoglicemias). Algumas funções, por sua vez, são de todo proibidas aos diabéticos: é o caso dos aeronautas em geral, controladores de tráfego aéreo, militares das Forças Armadas[9], marinheiros, operadores de máquinas pesadas ou veículos velozes, entre outros.
No setor privado, os trabalhadores diabéticos sofrem desvantagens competitivas, já que empregadores acabam por dar preferência à contratação de pessoas sem essa condição, evitando contratempos para a empresa. Além disso, pais que possuem filhos menores com DM1 também enfrentam maiores dificuldades na manutenção de seus empregos.
Contudo, em decorrência das dificuldades no reconhecimento dessa condição, também ficam os diabéticos impedidos de se valer das vagas reservadas às pessoas com deficiência (artigo 93 da Lei nº 8.213/91), ou dos benefícios de prioridade no teletrabalho (artigo 75-F da CLT), restando totalmente desamparados.
Situação similar ocorre no serviço público. Os portadores de DM1 são completamente alijados de determinadas carreiras públicas, como ocorre nos serviços policiais e nos serviços militares, para os quais a doença é tachada como totalmente incapacitante. Contudo, sem o reconhecimento da deficiência, fica o candidato impossibilitado de concorrer também nas vagas especiais, mesmo para atuar em serviços administrativos.
Essa situação gera um paradoxo inconstitucional, já reconhecido pela legislação e pela jurisprudência de diversos países. Trata-se da pessoa que é “doente demais, mas não doente o suficiente” (“too sick, but not sick enough”). O diabético tipo 1 é, assim, excluído por ser “doente demais”, mas alijado das vagas especiais por não ser, em uma visão incauta, “doente o suficiente” [10]. Violam-se, simultaneamente, a proteção especial de que gozam as pessoas com deficiência e o princípio da isonomia (artigo 5º, caput, da CF).
Conclusões
O presente ensaio demonstrou que, independentemente de legislação específica, a diabetes tipo 1 satisfaz as condições exigidas pelo paradigma constitucional para ser considerada uma deficiência: é um impedimento físico, decorrente da interrupção total do funcionamento de uma função vital, incurável e de longo prazo, insuscetível de prevenção, que gera riscos, dificuldades, prejuízos e preconceitos que prejudicam o exercício de direito em igualdade de condições com as demais pessoas.
Embora a legislação vigente já seja suficiente para garantir o reconhecimento dessa condição, seria extremamente conveniente a existência de lei própria, que assegurasse de forma clara os direitos dessas pessoas, dispensando batalhas judiciais e reduzindo o risco de violação de prerrogativas sociais, jurídicas e trabalhistas.
[1] Sobre o projeto, consulte texto publicado neste portal.
[2] WHO. International Classification of Impairments, Disabilities, and Handicaps (1980).
[4] Consulte o recurso clicando aqui.
[5] As repercussões que o impedimento possui na vida dos pacientes com DM1 foram intensamente discutidas na Câmara e do Senado. Veja mais.
[6] Foi notícia a eliminação de um candidato com DM1 do ENEM, em razão de seu medidor de glicemia ter apitado durante a prova: clique aqui.
[7] Nesse sentido: Jeffrey S. Gonzalez, et al. Diabetes in America: Chapter 33. Disponível em: clique aqui.
[8] Recursos adicionais sobre o tema: (1) Clique aqui ; (2) Clique aqui (3) Clique aqui.
[9] Em notícia publicada neste portal, divulgou-se decisão judicial inédita que afastou a inaptidão de um paciente DM1 para o serviço da Marinha: Clique aqui.
[10] Sobre o tema: Clique aqui.
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