Opinião

'O garantismo como ciência da legislação'

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20 de janeiro de 2025, 19h13

Acredito que todos os garantistas compartilham uma mesma consciência: o garantismo está sob ataque (como escreveu recentemente Vincenzo Roppo, discípulo de Stefano Rodotà, em um livro intitulado Garantismo. I nemici e i falsi amici).

Pessoalmente, não aprecio metáforas bélicas, mas reconheço que são convenientes; e, às vezes, é difícil evitá-las. Certamente, o Direito é um instrumento de regulação pacífica dos conflitos presentes na sociedade, mas, justamente por isso, é objeto de conflito: a luta pelo Direito divide: é sempre a luta por uma determinada definição do Direito.

Assim, o garantismo está sob ataque: hoje, mas não de hoje. Trata-se de um cerco de longa duração, marcado por momentos de particular intensidade: um pouco como o cerco narrado por Homero na Ilíada.

Quem – como nós – escolheu defender as razões do garantismo deve se preocupar com as forças que o atacam. Devemos observar seus movimentos, estudar suas técnicas. Em especial, precisamos nos prevenir contra o risco do cavalo de Tróia. É necessário saber reconhecê-lo e não ser pego de surpresa.

Pois bem, penso que este perigo já está presente. E provavelmente está destinado a crescer. É sobre este perigo (latente, mas iminente) que hoje gostaria de falar.

Além do populismo, do securitarismo e do panpenalismo que vigoram na política de nossas democracias constitucionais (tão frágeis), quem se reconhece nos valores do garantismo deve manter-se alerta frente às inclinações e tendências da própria cultura jurídica; da cultura dominante entre os juristas: é daí que vem a insídia do cavalo de Tróia. Da cultura jurídica que se difunde cotidianamente através do ensino universitário, moldando a forma mentis (forma de pensar) dos magistrados do amanhã (e o amanhã não é um futuro indeterminado: torna-se hoje a cada dia).

Essa é a tese que pretendo sustentar: a ideologia do Direito hoje hegemônica é, em alguns de seus aspectos fundamentais, dissonante em relação aos princípios do garantismo.

Para ilustrar essa tese, partirei de um episódio emblemático.

Há alguns anos, a comunidade científica internacional celebrou um importante aniversário na história da cultura ocidental (e particularmente na civilização do direito): o 250º aniversário da publicação daquele que Calamandrei chamou de “o livrinho milagroso”: Dei delitti e delle pene, de Cesare Beccaria.

Relíquia?

Obviamente, não é necessário que eu me detenha aqui sobre a centralidade desta obra na gênese cultural do garantismo penal (sua epistemologia, sua axiologia, a dimensão de seu projeto…). Limito-me a destacar que o maior teórico do garantismo contemporâneo, nosso mestre Luigi Ferrajoli, escreveu seu último livro, intitulado Giustizia e politica, com o objetivo explícito de reafirmar e relançar o modelo de Beccaria. Cito literalmente as palavras de Luigi Ferrajoli: “reproporei e defenderei, na primeira parte deste livro, o modelo clássico do direito penal: o paradigma Beccaria”.

Spacca

Pois bem, coincidindo com o aniversário ao qual me referi, houve uma grande produção de estudos sobre a obra de Beccaria. Estudos originais e inovadores realizados por filósofos, historiadores, sociólogos e estudiosos de literatura que destacaram a modernidade e a duradoura atualidade cultural do discurso crítico de Beccaria: seu humanismo penal, sua ciência da legislação, sua revolução copernicana na reflexão sobre delitos e penas.

A este renascimento dos estudos sobre Beccaria – e aos seus fecundos resultados – os juristas permaneceram substancialmente alheios. E não é por acaso. Obviamente, existem exceções relevantes, e eu poderia facilmente destacá-las. Mas, em geral, os juristas contemporâneos tendem a considerar Dei delitti e delle pene como uma relíquia cultural.

Além das homenagens retóricas (que têm pouca relevância), existe uma tópica consolidada, pela qual os juristas tendem substancialmente a desqualificar a obra de Beccaria. O principal desses lugares-comuns é: “Beccaria não é um jurista”: que é um modo de dizer “ele trata de coisas que não conhece” (… e, portanto, por que lê-lo?). Creio que todos nós já ouvimos esse julgamento depreciativo, repetidamente. E, muitas vezes, também o encontramos em páginas consideradas “de autoridade”.

Trago apenas um exemplo. Arturo Carlo Jemolo (grande jurista e liberal, por sinal), na introdução à edição da BUR de Dei delitti e delle pene (a mais difundida na Itália por décadas), comenta: “quem lê atentamente o livro percebe que o autor nunca praticou a advocacia nem desempenhou funções de magistrado”. E isso explicaria, segundo Jemolo, a “ingenuidade” de Beccaria: outro lugar-comum depreciativo (“a ingenuidade do iluminismo” é uma expressão cristalizada no discurso jurídico contemporâneo). “Ingênuo” é quem não tem consciência da realidade. E Jemolo escreve isso claramente: “Beccaria está fora da realidade”.

Ora, fazer circular por décadas o texto de Beccaria, em uma edição de ampla tiragem, com uma introdução como esta, é uma operação cultural que deixa marcas. E é sintomática.

Assim como é sintomático o fato de que, na Faculdade de Direito de Roma Tre, da qual Luigi Ferrajoli é professor emérito, no 250º aniversário da publicação de Dei delitti e delle pene, foram os filósofos e sociólogos que organizaram debates e congressos para refletir sobre o passado e o futuro do garantismo penal. E, no momento em que um penalista daquela universidade (ativo também na América Latina) decidiu publicar suas Reflexões sobre Cesare Beccaria e a interpretação da lei penal, o fez para dissolver as “ilusões” e arquivar os “mitos” do iluminismo penal e do garantismo contemporâneo (as palavras são sempre essas: autênticos clichês), e para afirmar a tese segundo a qual (cito) “o juiz é o único criador da norma penal”, que, portanto (continuo citando), “não pode ser retroativa em relação ao fato histórico objeto do julgamento”.

Independentemente das posições individuais – que aqui não importa aprofundar – surge a necessidade de explicar o comportamento dos juristas contemporâneos em relação à doutrina penal de Beccaria (repito, além das reverências protocolares, que nada custam, pois nada valem).

Por que Dei delitti e delle pene, o texto fundacional do garantismo penal, é tratado como uma relíquia antiquada? Como o fóssil inerte de um corpo estranho à cultura jurídica?

Tentarei listar resumidamente algumas razões: aquelas que, a meu ver, geram maior preocupação em relação ao estado de saúde da ciência jurídica contemporânea.

A primeira razão para a desvalorização do paradigma garantista de Beccaria tem raízes longínquas. No início do século 20, os defensores do método técnico-jurídico decretaram o divórcio entre a reflexão filosófico-política e a ciência do Direito. A tradição iluminista e liberal da “penalística civil” começou a perder terreno nas universidades. O grande historiador Mario Sbriccoli reconstruiu magistralmente a transição dos novecentos para a “civilística penal”. Obviamente, no segundo pós-guerra, com a valorização das constituições rígidas, houve uma importante reação cultural (podemos dizer geracional) em relação ao método técnico-jurídico. Contudo, a dogmática penal continua a ser, em linhas gerais, fortemente autorreferencial e pouco inclinada a considerar o ponto de vista externo da crítica filosófica.

A segunda razão deve ser buscada, a meu modo de ver, nas tendências tradicionalistas e corporativistas amplamente difundidas entre os juristas. A heresia penal de Beccaria, sua postura iconoclasta diante dos idola fori, seu desafio cultural à scientia iuris, sua polêmica antijurisprudencial continuam sendo irritantes e provocativos. De fato, provocam reações de repulsa em quem – por formação cultural, convicções ideológicas ou posição social ou institucional – se identifica com o imaginário sapiencial e com a ordem social que Beccaria busca deslegitimar. É sob o pano de fundo dessa atitude repulsiva que se deve interpretar outro lugar-comum que, ocasionalmente, ressoa nas salas de aula universitárias: Dei delitti e delle pene não diz nada de importante que já não tenha sido dito (e muito melhor) pelos doctores iuris da tradição romanística e canônica. Obviamente, essa tese é historicamente falsa.

Há outras duas razões que gostaria de considerar. E são as mais relevantes, porque se referem diretamente à relação (problemática) entre a ideologia jurídica dominante e o garantismo penal.

Antes, permitam-me uma precisão terminológica: ao usar a palavra ideologia, não pretendo expressar indiretamente um juízo de valor negativo. Não utilizo “ideologia” no sentido marxista de falsa consciência ou de discurso mistificador. Refiro-me, por “ideologia”, a um conjunto de teses avaliativas e normativas que expressam um determinado sistema de valores e que caracterizam a posição de quem as professa em relação à realidade sobre a qual versam. Nesse sentido, podemos dizer, por exemplo, que o garantismo transmite uma ideologia do Direito Penal. Mais genericamente, podemos afirmar que uma ideologia jurídica é formada por um conjunto de pressupostos fundamentais sobre a natureza, a estrutura e a função do Direito, sobre sua relação com outros sistemas normativos, sobre o papel dos sujeitos que produzem e aplicam o direito, e sobre o estatuto da doutrina.

Complacência com o colapso da legalidade

Pois bem, um dos aspectos ideológicos que mais caracteriza a cultura jurídica contemporânea é, a meu ver, intrinsecamente antigarantista. Refiro-me à ideologia das fontes hoje dominante. Trata-se de um perfil ideológico de primordial importância, pois incide profundamente na fenomenologia do direito.

Alf Ross, em Direito e Justiça, captou perfeitamente sua centralidade: a ideologia das fontes, escreve ele, “constitui o fundamento do sistema jurídico e consiste em diretrizes que não dizem respeito diretamente à forma de resolver uma controvérsia judicial, mas indicam o modo pelo qual o juiz deverá proceder para descobrir a diretriz ou as diretrizes relevantes para a controvérsia em questão”.

Todos sabemos que – no plano da ideologia das fontes – o paradigma de Beccaria afirma o primado da lei e propõe a codificação do Direito Penal, em oposição à ideologia togada de seu tempo, que legitimava o poder normativo dos juízes como expressão de sua iusti atque iniusti scientia. E sabemos todos que, na esteira do projeto jurídico de Beccaria, o garantismo contemporâneo fundamenta todo o sistema de garantias dos direitos de imunidade e liberdade sobre o princípio da legalidade.

A cultura jurídica hoje dominante parece, no entanto, contemplar, com certa complacência, o colapso da legalidade, representado como um dado irreversível. Quando a certeza do Direito não é desacreditada como um mito iluminista, sua condição de possibilidade é identificada no vínculo do precedente judicial. É a jurisdição, nessa perspectiva, o depósito frutífero dos valores do ordenamento.

Podemos caracterizar a ideologia das fontes hoje predominante, que renova o vínculo tradicional entre doutrina e jurisprudência, como a reversão perfeita do discurso sobre o Direito com o qual Thomas Hobbes inaugurou a modernidade jurídica.

Em sua polêmica com os common lawyers e na sua crítica ao judge-made law, Hobbes afirma que a suposta sabedoria dos juízes (a iuris-prudentia de juízes desordenados, escreve ele) deve ceder o campo do Direito à autoridade da lei, que é fator de certeza para os sujeitos das normas. De maneira especular e contrária, os ideólogos atuais do Direito jurisprudencial contrapõem ao caos legislativo o cosmos jurisdicional. A elegia do Direito dos sábios assume, por vezes, o tom de um hino triunfal: torna-se a celebração da vitória da razão jurídica sobre as pretensões potestativas de um legislador incompetente, inadequado, impreciso, desorganizado… Este conjunto de adjetivos depreciativos frequentemente acompanha o substantivo “legislador” nos discursos dirigidos ex cathedra aos estudantes de Direito (que assim internalizam uma visão aristocrática da ordem jurídica, esquecendo a relação entre produção do direito e representação política).

O total desinvestimento da cultura jurídica na fonte-lei e na forma-código conduziu ao desaparecimento da ciência da legislação do horizonte intelectual dos juristas. E o garantismo penal necessita de uma ciência da legislação vital, crítica e projetual.

A essa consideração liga-se o último elemento de minha reflexão sobre a relação (desarmônica) entre a cultura jurídica dominante e o garantismo.

Passo da ideologia das fontes para a doutrina da interpretação.

O principal pilar do paradigma garantista é o princípio da taxatividade (ou da estrita legalidade), que prescreve ao legislador o uso de uma linguagem precisa, clara, unívoca, dotada de consistência empírica na formulação legal dos tipos penais. Essa necessidade já era advertida por Montesquieu, nos primórdios da reflexão sobre os limites do poder de punir e sobre as garantias jurídicas da liberdade individual.

Ora, as doutrinas da interpretação jurídica hoje predominantes, independentemente de suas várias denominações, diferenças ou diversas tradições a que se referem, insistem unanimemente na radical e consubstancial indeterminação da linguagem legal. Ambiguidade, vagueza e generalidade (em todas as suas formas e declinações) são consideradas propriedades inerentes aos enunciados legislativos. Consequentemente, a noção de verificabilidade jurídica, central no paradigma garantista, é desqualificada como ideologia: é relegada aos mitos e ilusões do iluminismo jurídico.

Naturalmente, não pretendo abordar, aqui, uma discussão sobre o estatuto epistemológico dos enunciados interpretativos e sobre o uso apropriado da palavra “verdade”. Porém, acredito que seja importante prestar atenção às consequências dessa orientação doutrinária. Menciono apenas duas (e encerro).

A primeira é a legitimação do criacionismo judicial, que implica o enfraquecimento do componente cognitivo da atividade jurisdicional, em favor de seu componente potestativo. Em outras palavras, comporta a expansão daquele terrível poder que é o poder de julgar.

A segunda consequência é que, se na escuridão da semântica jurídica todas as vacas são cinzas (isto é, se todos os enunciados normativos são indeterminados), não há razão para se empenhar em uma reflexão operativa, propositiva e normativa sobre a linguagem legal e sua necessária e urgente reforma. Assim, também sob esse ponto de vista, os juristas acabam negligenciando a ciência da legislação.

A cultura garantista precisa reagir a essa involução doutrinária. Não apenas no plano científico, mas também no plano didático. Porque a didática, o trabalho pedagógico, é a dimensão mais relevante e mais impactante de nossa função social; é o momento mais delicado de nosso compromisso profissional e cívico. Nossos discursos, nas salas de aula das universidades, possuem uma força performativa da qual devemos estar conscientes. Todos os dias, nós fazemos coisas com as palavras. E devemos fazê-las sempre melhor, encontrando sempre as melhores palavras.

 

– Conferência proferida na abertura do congresso em comemoração aos 35 anos do livro Diritto e Ragione, ocorrido na Universidade Federal do Pará, dia 22 de novembro de 2024.

Tradução: Ana Cláudia Pinho, professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará (Amazônia-Brasil)

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