Embargos Culturais

Tia Julia e o Escrevinhador, de Mário Vargas Llosa

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19 de janeiro de 2025, 8h00

Ao longo de uma animada discussão em grupo de WhatsApp, o professor Heleno Taveira Torres apimentou um debate em torno do escritor peruano Mario Vargas Llosa. Admirador incontido (tanto do Heleno, meu eterno mestre, quanto do MVLL, meu escritor preferido) rabisquei esta resenha, referente a um livro tantas vezes lido ao longo dos anos.

Dedico o esforço ao Heleno, e a outros colegas do grupo, a exemplo do desembargador Ney Bello e dos advogados Alberto Zacharias Toron, Celso Cintra Mori, Fábio Medina Osório e José Rollemberg, profissionais de banca, de tribuna e de verdade, que seguem uma linha que remonta a Demóstenes e a Cícero, e que fazem tanta falta nesses dias de advocacia robotizada.

MVLL é um autor que leva o leitor uma pluralidade de vozes. Tem-se a impressão de que os narradores se alternam no plano expositivo da narrativa. No entanto, e aqui a mágica desse fascinante escritor peruano, não há dificuldade alguma de compreensão, que não exige também esforço algum. Lê-lo, é um deleite.

As narrativas se entrelaçam em um sumário lógico. A constatação dessa lógica, por parte do leitor, comprova os prazeres desse ato aliciante que é ler. Penso que, ao terminar a leitura de Vargas Llosa, o leitor se pergunta: o que é melhor? Ler ou escrever? Vence a última – escrever – se o leitor se colocar no lugar do autor.

Essa experiência estética é alcançada no limite com a leitura de Tia Julia e o Escrevinhador. O livro é de 1997. Tenho comigo uma tradução de José Rubens Siqueira, originariamente publicada pela Objetiva, agora publicada pela Alfaguara, selo da Companhia das Letras.

O que chama a atenção nesse fascinante livro? Comecemos pela estrutura narrativa. O leitor se depara com dois enredos aparentemente independentes, que cartesianamente se dividem nos capítulos de forma sequencial e alternativa. São enredos aparentemente paralelos.

O primeiro enredo (que é o enredo principal) dá-nos conta da aproximação (inclusive em forma de paixão) do narrador para com uma tia, alguns bons anos mais velha, Tia Júlia. É uma Lolita invertida, no contexto do qual um jovem (o narrador tem 18 anos) apaixona-se pela tia; naturalmente, uma relação abominada por qualquer família limenha (o enredo se passa em Lima) de classe média e alta, no fim dos anos 50.

Spacca

Dentro desse primeiro enredo, o leitor desfruta das informações sobre a atividade jornalística do narrador, e sua proximidade com estações de rádio. É o tempo das radionovelas, que tanto sucesso fizeram no Brasil. Lembremo-nos da Rádio Nacional e sucessos como o Direito de Nascer e Jerônimo o Herói do Sertão. O enredo daquela primeira fora importado de Cuba, o autor é Felix Caignet, adaptada por Eurico Silva. Entre os mais importantes autores de radionovelas no Brasil apontamos Oduvaldo Vianna, Dias Gomes, Walter Foster, Janete Clair. Todos seguiram para a televisão. Foi a televisão que afundou as rádios novelas, uma espécie muito peculiar de destruição criativa, termo que Joseph Schumpeter fixou em uma obra de 1942.

O escrevinhador

MVLL, nesse subenredo, novelas de rádio, conta-nos a história de Pedro Camacho, o personagem mais cativante do romance. Não há como não se entusiasmar (e de sofrer) com essa figura. É, por evidente, o escrevinhador do título. Isso porque, nas entrelinhas, MVLL coloca-nos um problema de teoria literária, indagando se o folhetim popular (como a novela de rádio) deteria a condição de obra literária. Pedro Camacho (boliviano de origem) é carismático. No fim do livro o leitor compreende os porquês que o escrevinhador tanto odiava os argentinos. Uma revelação surpreendente.

O texto paralelo é uma profusão de narrativas supostamente independentes, que nos lembram contos de realismo quase fantástico. Cada uma das pequenas narrativas que MVLL incorpora ao texto fornece um sabor que, ainda que lidas individualmente, valem por todo o livro. O leitor não consegue parar de ler. Cada um desses capítulos subsidiários se encerra com uma intrigante pergunta.

Nas páginas finais todas as narrativas se complementam, num cataclisma bem peruano (um terremoto); isto é, se toda narrativa de bibliotecas medievais terminam em incêndios, uma narrativa épica peruana tem mesmo que terminar em um terremoto.

Quanto à forma, chama a atenção as adjetivações. Exemplifico: “devoção madalênica”, “príncipe renascentista generoso e exuberante”, “espírito de mármore”, “sede africana”, “sol futebolístico”, “espiritualidade de pombos”, “indiferença de cisne”, “curiosidade infantil”, “velocidade aeronáutica”, “delírios melodiosos”.

Há também metáforas e construções encantadoras. Exemplifico, de novo: “sair do túnel empoeirado de uma vida vivida sem sinceridade”, “horário de remador de galés”, “prática excessiva do exercício de Onã”,” peitos que nem balas de revólver atravessam”.

Realidade e imaginação

Em Tia Julia e o Escrevinhador constata-se uma multiplicação de personagens que se explicam mutuamente. A fusão entre o real e o imaginário faz-nos duvidar da realidade e encarar a imaginação com mais seriedade. Há uma exposição muito consistente da realidade peruana do fim dos anos 50, e de todas as suas tensões. A vida urbana e a vida rural se aproximam, inclusive porque o Peru descrito na narrativa é certamente muito distinto do Peru dos dias atuais.

MVLL retrata preconceitos familiares, que são de certa forma preconceitos que vivemos no Brasil. Há uma reconstrução de um tempo histórico sem que necessariamente sejam reconstruídas as personagens centrais. A narrativa de um lugar real confunde-se com uma narrativa de um lugar imaginário. A triste (e ao mesmo tempo alegre) história de Pedro Camacho é também uma reflexão sobre a ascensão e queda dos artistas. A fama, como regra, é rápida, passageira. Lembremo-nos de Leopoldo, o personagem representado por Roberto Benigni, em A Roma com Amor, dirigido por Woody Allen.

Tia Julia e o Escrevinhador transcende a simples ficção ao entrelaçar realidade e imaginação, de maneira imprevisível. MVLL nos conduz por uma viagem cultural, histórica e emocional que, além de retratar o Peru em suas particularidades, dialoga com preconceitos e tensões que ressoam universalmente. MVLL descreve sua aldeia, e por isso é um escritor universal.

Por meio de personagens multifacetados e tramas que se complementam, o romance desafia a questionar as fronteiras entre a realidade e a ficção, com toda a força para problematização das complexidades da vida e da arte. É uma provocação em forma de riqueza narrativa. Já na primeira página o leitor entende por que MVLL levou o Nobel de literatura em 2010.

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