RADICALIZAÇÃO CRESCENTE

Sistema jurídico não é adequado para lidar com as mudanças na sociedade, diz professor francês

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19 de janeiro de 2025, 9h52

A ascensão da extrema direita no mundo é reflexo de diversas mudanças na sociedade e da concepção histórica de alguns Estados. Essa é a análise do francês Nicolas Guillet, professor de Direito Público da Université Le Havre Normandie, que afirma que um dos principais fatores que dão lastro à escalada dos ultraconservadores é a insuficiência do sistema jurídico para lidar com as transformações da sociedade. Ele esteve recentemente em São Paulo para participar de um seminário sobre Direito Público francês proposto pelo Tribunal de Contas do Município.

Nicolas Guillet

Nicolas Guillet

“É uma questão complexa, porque, mesmo que existam ferramentas legais, elas são insuficientes. A ascensão da extrema direita é, em parte, o resultado da incapacidade de competir com ela na arena social e política. As regras legais para salvaguardar a sociedade democrática são inadequadas: em primeiro lugar, não é legal proibir partidos, exceto em casos limitados. Em segundo lugar, a concentração da mídia não é suficientemente regulamentada. A expressão nas redes sociais também não: você pode se esconder atrás de um pseudônimo e dizer as piores ofensas racistas sem sofrer a menor consequência”, disse Guillet em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Os ataques às Supremas Cortes também são sintomáticos. E esse é um ponto em comum entre Brasil e França, de acordo com ele. “Os representantes da extrema direita entenderam claramente que as normas constitucionais e as convenções internacionais constituem um obstáculo à implementação da legislação que favorece o que chamam de valores tradicionais, que são racistas e discriminatórios”, explica. Na França, o ministro do Interior, Bruno Retailleau — que pertence à direita —, declarou recentemente que “o Estado de Direito não é intangível, nem sagrado”.

Guillet é diretor do Centro de Pesquisa de Mutações Sociais e de Mutações do Direito da universidade em que leciona. Já foi juiz titular do Conselho Nacional de Ensino Superior e Pesquisa do governo francês e tem atuação científica expressiva nas áreas de Direito Marítimo e Portuário, Direito Administrativo Geral, Direito da Função Pública, Direito de Garantias e Finanças do Direito Público.

Ele é autor dos livros Les Difficultés de la Lutte Contre les Dérives Sectaires — Actes de la Journée d’Études du 10 Mars 2005 du Groupe d’Études Sur les Sectes de l’Assemblée Nationale (‎Harmattan); Contribution à l’Étude de l’Ordre du Jour en Droit Public (Mare & Martin); Liberté de Religion et Mouvements à Caractère Sectaire (‎LGDJ); Les Transformations de l’Administration Fiscale (Harmattan); e Mer et Droits Fondamentaux de la Personne Humaine (IFDJ), nenhum deles com tradução para o português.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Os sinais da ascensão da extrema direita em todo o mundo já são visíveis há alguns anos. Que semelhanças e diferenças o senhor observa entre a França e o Brasil?
Nicolas Guillet — Parece-me que a extrema direita está enraizada em diferentes terrenos, que podem ser comuns a vários países. O primeiro plano é identitário. Na França, a extrema direita sempre se concentrou em preservar a raça, em uma dialética entre nós e eles. Os representantes do Reagrupamento Nacional, por exemplo, sempre demonstram que consideram os muçulmanos franceses como cidadãos de segunda classe. Implicitamente, isso significa dizer que o Islã é incompatível com a sociedade francesa. Esse terreno cultural foi, além disso, fomentado pelo colonialismo. Não vamos nos esquecer de que a França participou ativamente do comércio de escravizados. E esse talvez seja o ponto em comum com o Brasil: as fortunas foram construídas sobre o tráfico de escravizados e nas estruturas sociais que resultaram disso (penso nas Antilhas francesas, por exemplo). Aqueles que dominaram desde os tempos coloniais não têm intenção de abrir mão de seu poder econômico e político. O segundo terreno é social. A crise econômica é sempre um fator favorável à ascensão da extrema direita. Isso foi crucial na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial. Ainda é na Europa hoje, onde o estrangeiro continua sendo o bode expiatório. Diante das dificuldades e das desigualdades, é fácil pintá-lo como o responsável por todos os males.

ConJur  Como essa estratégia funciona?
Nicolas Guillet —É uma tática clássica de dividir para dominar melhor: divide-se a classe trabalhadora em diferenças identitárias absurdas quando todos, em graus variados, estão sujeitos à mesma forma de exploração econômica. Se há uma diferença entre o Brasil e a França, é quanto ao plano histórico, porque a França derrubou uma ordem social desigual com a Revolução de 1789, que durou ao menos até 1795 e foi marcada pela afirmação da igualdade dos cidadãos perante a lei. Grande parte da luta política nos séculos 19 e 20, liderada pelos movimentos socialistas e depois comunistas, concentrou-se na busca contínua por isso: direitos iguais, igualdade econômica, racial, de gênero etc. É a grande ideia revolucionária e republicana na França. E, é claro, a extrema direita é uma oponente feroz.

ConJur — O senhor falou no seminário em São Paulo sobre o neoliberalismo e como ele se infiltrou nas normas jurídicas e incentivou a extrema direita. Como isso aconteceu?
Nicolas Guillet — Obviamente, esse não é um fenômeno natural, é uma construção política, apoiada por grupos políticos em várias esferas: internacional, regional e nacional. Os países da América do Sul estão muito bem familiarizados, infelizmente, com a influência do FMI e do Banco Mundial. Na Europa, o neoliberalismo assume a forma de ordoliberalismo, bem descrito por Michel Foucault em Nascimento da Biopolítica e, mais recentemente, por Christian Laval e Pierre Dardot em A Nova Razão do Mundo. O neoliberalismo não é, em si, favorável à extrema direita, mas acaba por romper com o consenso social e político estabelecido após a Segunda Guerra Mundial entre capital e trabalho, o que, a meu ver, é um fator de ascensão.

ConJur Qual o impacto disso no Direito Público?
Nicolas Guillet — O neoliberalismo ataca as estruturas do Direito Público e as funções do Estado. Em primeiro lugar, o Estado não está mais autorizado a intervir na economia para regular as relações econômicas. E o estado de bem-estar social está retraído, no sentido de que o Estado assume cada vez menos responsabilidade pelos serviços públicos, reduz o pagamento de benefícios sociais e desmantela a proteção social coletiva. À medida que a função social do Estado se desvanece, o mercado se estende a todas as áreas da vida humana. Os indivíduos são reduzidos a consumidores que devem maximizar seus interesses. A consequência, aparentemente, é que as instituições coletivas (partidos políticos de massa, sindicatos, comunidades religiosas etc.) estão se enfraquecendo, embora tenham sido criadas para proteger os cidadãos contra as forças do mercado e os excessos do Estado. A dinâmica em ação é uma manobra dos capitalistas para acumular capital. E é nesse contexto que a extrema direita só precisa se abaixar para recolher os votos dos eleitores desgostosos com a política, que parece impotente para mudar suas vidas ou mesmo para protegê-las.

ConJur — Em sua opinião, quais são os principais mecanismos legais usados pela extrema direita para obter poder?
Nicolas Guillet — Essa é uma pergunta interessante que ninguém faz na França. Porque é admitido que, em uma sociedade democrática, a expressão é livre (dentro dos limites estabelecidos pela lei) e que a extrema direita é livre para participar de eleições. Eles se aproveitam do sistema democrático para ganhar poder: para pleitear cargos públicos, para publicar jornais e, hoje, para possuir a mídia audiovisual. A batalha cultural é essencial para a extrema direita. O avanço da Frente Nacional na mídia ocorreu na década de 1980, quando Jean-Marie Le Pen é convidado a participar de um importante programa político transmitido pelo canal público, embora o partido fosse muito pequeno na época. O jornal Le Monde Diplomatique produziu um mapa  — Mídia francesa: quem é dono do quê? — que mostra como a mídia é essencialmente de propriedade de grupos industriais ou financeiros, ou até mesmo do Estado. Isso prova duas coisas: a primeira é que a informação parece ser uma mercadoria. A segunda é que o pluralismo é, de fato, limitado, já que os interesses dos principais grupos privados são idênticos: ter o poder de influenciar, definindo uma linha editorial favorável à preservação dos interesses do capital. Você pode se esconder atrás de um pseudônimo e dizer as piores coisas racistas sem sofrer a menor consequência — e aqui há uma cumplicidade real por parte das plataformas digitais. Em minha opinião, o sistema jurídico não é adequado para lidar com as mudanças na sociedade. A ascensão da extrema direita é, em parte, o resultado da incapacidade de competir com ela na arena social e política. Os partidos de massa entraram em colapso. O populismo de esquerda — nos moldes do Podemos, na Espanha, ou do LFI, na França — pode mostrar um processo interessante nesse sentido: ao expressar a voz do povo, ou seja, suas necessidades, esses movimentos políticos conseguiram reunir setores do eleitorado que, para alguns, poderiam ter votado na extrema direita para protestar contra um sistema que defende uma oligarquia e negligencia a maioria.

ConJur — Como o Direito Público pode se proteger contra os excessos resultantes da polarização política?
Nicolas Guillet — Em minha opinião, a polarização política é apenas um sintoma do estado da sociedade e, portanto, das disputas de poder. Há um paradoxo em nossos tempos: o neoliberalismo, que é simplesmente uma nova versão do capitalismo, está desacreditado em todos os lugares. Ele produz grande miséria, com a cumplicidade do Estado e de suas elites, mas continua sua marcha de exploração econômica e de destruição do ecossistema. Portanto, há interesses contraditórios em jogo e um conflito que está se tornando mais agudo. O desafio da polarização é, portanto, determinar quais forças sociais e políticas conquistarão o Estado: as do capital, que buscam preservar seu poder e dominação? Ou as forças do trabalho, que buscam evitar seu empobrecimento e rebaixamento social? E o Direito Público não pode fazer nada a respeito. A luta pelo direito, nas palavras de Ihéring, que citei no seminário, é uma luta política. Nessa luta, não sou muito otimista quanto à capacidade das forças do capital de limitar suas reivindicações: se elas acharem que seus interesses serão mais bem protegidos por um governo de extrema direita, elas o apoiarão. Já vimos isso no passado: na França, com o regime de Vichy; no Chile, com o golpe de Estado contra Allende; e, no Brasil, com a desestabilização de Lula e Dilma. Hoje, na França, estamos vendo uma radicalização do discurso da direita, mas também do centro, incluindo o presidente Macron, que, às vezes, usa o vocabulário da extrema direita. O terreno cultural está sendo preparado para facilitar a aceitação da chegada de Le Pen ao poder, porque o que chamamos de burguesia está, mundialmente, pronto para fazer pactos com a extrema direita. Eu acrescentaria que as regras legais que permitem limitar os excessos da polarização, por exemplo, para se opor às ações violentas, não são muito eficazes: um grupo violento pode ser dissolvido por decreto, mas ele sempre pode se reconstituir de outra forma.

ConJur — O Direito Público está sendo usado como um instrumento para legitimar ações que comprometem os direitos democráticos?
Nicolas Guillet — No caso da França, e de maneira geral, acredito que não. O Direito Público francês é fundado em valores democráticos e republicanos que remontam a 1789 e à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Desde então, esses direitos foram desenvolvidos e aprofundados em termos de legislação. Penso no preâmbulo da Constituição de 1946, que tem valor constitucional e que reconhece direitos econômicos e sociais (por exemplo, o direito de greve, inclusive para funcionários públicos, salvo exceções limitadas). Outro ponto são os princípios gerais do Direito estabelecidos pelo Conseil d’État e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República. Esses valores permeiam o sistema jurídico e lhe dão solidez diante de ações que buscam minar os direitos democráticos. Por outro lado, certas áreas do Direito Público estão sendo enfraquecidas. Podemos ver que os direitos dos estrangeiros rumam a uma tendência antidemocrática. Podemos pensar no direito do cidadão de fora da União Europeia de votar em eleições políticas na França, que nunca foi reconhecido, nem mesmo em eleições locais, apesar de ter sido prometido pela esquerda. No entanto, os estrangeiros pagam impostos e contribuem para a Previdência Social, participam da vida econômica, comunitária e cultural. E então, ao lado dos direitos dos estrangeiros, também podemos ver que o Estado está cada vez mais negligenciando as liberdades públicas: há violência gratuita por parte da polícia (em manifestações, mas também em bairros da classe trabalhadora contra populações racializadas), proibições injustificadas de manifestações de prefeitos ou de reuniões públicas em universidades, uso dos poderes excepcionais do estado de emergência para restringir o exercício de direitos e liberdades, uma extensão sem precedentes das ferramentas de vigilância da população no espaço público, e assim por diante.

ConJur — A Suprema Corte do Brasil e seus ministros têm sido os principais alvos da extrema direita e de seus apoiadores. Como essas ameaças podem ser analisadas sob a perspectiva do Direito Público comparado?
Nicolas Guillet — Recentemente, o ministro do Interior, Bruno Retailleau — que pertence à direita —, declarou que “o Estado de Direito não é intangível, nem sagrado”, antes de voltar atrás diante da repercussão política. Esse é um exemplo da crescente desconfiança em relação aos tribunais, especialmente aqueles que buscam proteger os direitos humanos fundamentais. Frequentemente, ouvimos políticos atacando a Corte Europeia de Direitos Humanos. A corte pode condenar um Estado com base no fato de que sua legislação, regulamentos ou até mesmo práticas administrativas violam um direito garantido pela Convenção Europeia de Direitos Humanos. Isso é, obviamente, intolerável para a extrema direita, para quem a lei deve expressar a soberania nacional. Da mesma forma, o Conselho Constitucional francês é criticado por julgar a constitucionalidade das leis aprovadas pelo legislativo nacional. Os representantes da extrema direita entenderam claramente que as normas constitucionais e as convenções internacionais constituem um obstáculo à implementação da legislação que favorece o que chamam de valores tradicionais, que são racistas e discriminatórios. Além disso, o exemplo da Polônia, com seu primeiro-ministro nacionalista populista, mostra claramente o perigo que a extrema direita representa para o Judiciário em geral e sua independência em particular. Nesse caso, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu várias decisões condenando a Polônia, cujas reformas legislativas não respeitam os princípios estabelecidos nos tratados da União Europeia, em especial o princípio do Estado de Direito.

ConJur — Como funciona o Ministério Público francês?
Nicolas Guillet — Ele é hierárquico, dependendo do tipo de jurisdição, e também é especializado, com um escritório nacional de promotoria antiterrorista e um de promotoria financeira. Está em uma posição legal singular na França em termos de seu relacionamento com o Executivo. Os promotores públicos são colocados sob a autoridade do ministro da Justiça, o que obscurece a separação de poderes. Eles não têm estabilidade no cargo, ao contrário dos juízes. Seu procedimento de nomeação também é diferente do dos magistrados. Os membros do gabinete do promotor público recebem instruções gerais do ministro na forma de circulares de política criminal. Entretanto, eles não recebem nenhuma instrução desse tipo quando se trata de processos judiciais. Além disso, eles têm total liberdade de expressão no tribunal. A questão de sua independência não é simples do ponto de vista jurídico. Nem todos os tribunais têm a mesma análise dessa questão. Para a Corte de Cassação e a Corte Europeia de Direitos Humanos, a promotoria pública francesa não é uma autoridade judicial porque não goza das garantias necessárias de independência. Quanto ao Conselho Constitucional, em uma decisão de 8 de dezembro de 2017, foi declarado que as disposições da lei orgânica sobre o status do Judiciário são consistentes com a Constituição porque, por um lado, elas garantem uma reconciliação equilibrada entre o princípio da independência da autoridade judicial e as prerrogativas que o governo deriva da Constituição. Por outro lado, elas não desconsideram a separação de poderes, o direito a um julgamento justo, os direitos da defesa ou qualquer outro direito ou liberdade que a Constituição garanta.

ConJur — Em sua opinião, como o sistema judiciário francês lida com casos de lawfare, como o de Jean-Luc Mélenchon (líder de uma corrente da esquerda francesa) e o da “lava jato” brasileira?
Nicolas Guillet — O que posso avaliar é que o sistema judiciário pode ser explorado para fins políticos. E, mesmo sem ir tão longe, está claro que a Justiça não é neutra porque os juízes ainda são seres humanos e, apesar de sua ética profissional e de uma cultura de independência, eles próprios podem estar inclinados a tratar um político de forma mais ou menos favorável. De qualquer forma, não há dúvida de que as críticas a um sistema de Justiça política, que ataca os representantes eleitos, são recorrentes. A recente condenação de Nicolas Sarkozy a três anos de prisão, dos quais dois anos foram suspensos, é um exemplo claro: seus advogados denunciaram um julgamento injusto e disseram que encaminhariam a questão à CEDH. O caso de Jean-Luc Mélenchon me parece diferente porque ele não foi um político de destaque. Não foi presidente, nem primeiro-ministro. Mélenchon está claramente exposto a pressões porque é um oponente resoluto do atual sistema econômico e político, e não faz concessões. Qualquer coisa que possa enfraquecê-lo e os líderes da França Insubmissa (partido de Mélenchon) será usada. Por exemplo, é chamado de antissemita por se opor aos massacres em Gaza, quando tudo o que está fazendo é defender a paz e o Direito Internacional. Ele recebeu ameaças físicas e sua casa de campo foi recentemente vandalizada. Que eu saiba, a busca nos escritórios da França Insubmissa em 2018, durante duas investigações preliminares, não resultou em nenhuma ação legal. Mas a operação nos permitiu, antes de tudo, colocar as mãos em documentos e arquivos políticos, e também — porque Mélenchon tem caráter — mostrar que ele desafiou o sistema judiciário e se opôs à polícia. Ele foi condenado no final de 2019 por rebelião, incitação direta à rebelião e intimidação de magistrados e funcionários públicos. Houve algum zelo por parte do magistrado ao ordenar a busca? Houve uma instrução individual implícita nesse caso? Não sei. Em minha opinião, e para ampliar o ponto, o problema com o sistema de Justiça tem duas causas: a primeira é a falta de independência do Ministério Público, que já foi mencionada. A segunda é a falta de recursos no sistema de Justiça, que não permite que os juízes lidem com os casos com calma.

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