O princípio do Sankofa e o resgate da metodologia científica no Direito
19 de janeiro de 2025, 17h14
A palavra Sankofa, do povo Akan de Gana, significa literalmente “voltar e pegar”. É também um princípio que possui dois símbolos Adinkras: o primeiro, uma ave mística que voa para a frente com a cabeça voltada para as costas, olhando para trás. O segundo, um coração estilizado, com espirais simétricas que ornamentam cada lado da parte lateral inferior.
Como princípio, Sankofa busca encorajar as pessoas a aprenderem com o passado para seguir em frente com seus projetos de vida alcançando seu potencial. A palavra deriva da junção de san, ko e fa; olha, busque e pegue. Também é associada a um provérbio: “Não é vergonha voltar para pegar o que você esqueceu, deixou para trás”.
Não é somente nos portões das casas brasileiras que vemos o Sankofa. O método de iniciação à ciência, revisão bibliográfica, também reflete, no espaço da academia, esse princípio, portanto, universalista mais do que “multicultural especificista”. O passado não pode ser perdido de vista durante os esforços de avanço do saber.
O projeto Exposição Ocupação Itaú Cultural, durante sua homenagem ao ex-senador Abdias do Nascimento, declarou, assim como sua viúva, como o princípio do Sankofa capturava a essência da prática ativista do inscrito no livro dos Heróis da Pátria [1]. Pioneiro em diversos espaços influenciando desde filósofos, como a destacada referência do feminismo negro brasileiro Aparecida Sueli Carneiro Jacoel [2] (SANTANA, 2001, p.13), juristas como Eunice Aparecida de Jesus Prudente [3] e demais na Teoria Crítica Racial Brasileira [4], como Dora Lúcia de Lima Bertúlio [5], e Kimberlé Willians Crenshaw, durante seu período de pesquisadora Fullbright na America Latina [6].
A comunidade afrodescendente brasileira e o movimento negro brasileiro tiveram sua pouca história escrita, quando existente, guardada em raríssimas bibliotecas que conseguiam referenciar tais Griots. Perdurou-se, e ainda perdura, a tradição oral de transmissão de saber, inclusive nos espaços onde aquelas obras encontravam-se guardadas [7].
Na última década, destacadamente, as escritas avolumaram-se. Ao mesmo tempo, essas descrições ou narrativas deixaram de ser tão completas quanto àquelas orais transmitidas pelos Griots, apesar da maior capacidade de “trânsito e viagem digital simplificados” em nosso vasto território continental e digitalizado.
Aqueles lançados em espaços sem referências de Griots, de mentoria ou de obras sobre a história da diáspora negra e brasileira, tiveram a formação sujeita a ideação de negro brasileiro [8] de seus mentores, em sua maioria não negros. Espaços onde dever-se-ia estabelecer diálogo entre culturas e não métodos de imposição de uma sobre outra, tornando-os, assim, democráticos plurais e republicanos, foram insuficientes em suas missões por falta de diversidade.
Somou-se a essa distância do saber dos Griots, nos territórios que receberam a juventude subalternizada, o fomento ao efeito Dunning-Kruger, jovens e sem referência, fomentaram o epistemicídio de predecessores enquanto popularizaram tradutores como inovadores do letramento racial de combate ao viés racial.
Convenientemente, para alguns, mentorados mantidos ignorantes da necessária precedência do método científico da revisão literária para iniciação científica, fosse da pouca bibliografia que existia fosse dos saberes Griots brasileiros, depararam-se com a popularização de um pretenso debate sobre justiça racial durante a pandemia nas redes sociais.
A pandemia não somente tornou nos testemunha do movimento Black Lives Matter (BLM), mas também nos lançou no mundo dos influencers e divulgadores científicos com ares de produtores, que sistematizavam, traduziam e compilavam, indistintos para a população em geral formando suas opiniões.
As razões de tais insuficiências e inconsistências não são oriundas, somente, da falta de formação básica sobre métodos de pesquisa e consequente não deliberada ignorância, inclusive, da necessidade de olhar para trás quando se manipula as ferramentas do direito, mas também da orientação ideológica de quem escolheu silenciar e fomentar citação seletiva, em deliberado intraepistemicídio, das lições do passado africano, afrobrasileiro, brasileiro, mundial e diáspora africana.
Fossem, os deliberadamente não epistemicidas, apresentados à importância dos clássicos, do antirracismo e do Direito, personagens como Luís Gama [9], Esperança Garcia, Abdias do Nascimento, Eunice Prudente, Dora Bertúlio, Hédio Silva, entre outros, nos primeiros contatos com os estudos do Direito, Justiça Racial e suas ciências auxiliares, teriam aprendido de início a “possibilidade de usar o direito contra o direito” [10], ou seja, conhecendo suas vidas e ativismo na “história” do país, e observando, com o olhar atento “para trás” a importância da “práxis” jurídica nos esforços de emancipação plena da diáspora africana em território brasileiro. Reconhecendo, assim, a natureza dual do direito posto, de instrumento de subalternização bem como instrumento de emancipação e conclamando à disputa.
Do mesmo modo que Luís Gama e Esperança Garcia estudaram o sistema posto para disputar proteção de direitos a si e demais subalternizados no pré-abolição, ainda é vital estudar a história dos predecessores nas disputas por Justiça Racial. Conhecedores do sistema positivado não precisam “transplantar” órgãos/institutos jurídicos”, de sistemas outros incompatíveis ao sistema nacional. Lamentavelmente, muitos não compreenderam que as disciplinas propedêuticas do direito são inerentes a formação do jurista e não complementares, estanques, ausentes do cotidiano da instrumentalização técnica profissional.
A incongruência de conclame ao resgate de pautas de justiça racial a partir de uma ignorância às precedentes referências e suas produções, tanto do conteúdo jurídico nacional quanto da nossa história, africana, afrobrasileira e a história nacional, dimensão fatual [11] da tridimensionalidade do direito brasileiro, segue ameaçando a Justiça Racial.
Agora que se inicia um novo ciclo Gregoriano, em lugar de voar impensadamente para a frente, correndo o risco de ir em direção oposta ao avanço, condenando-se a um eterno retorno enquanto enfrenta-se espantalhos [12], por que não reduzir a velocidade do voo e olhar detidamente para trás, reconhecendo a cientificidade jurídica do debate sobre justiça racial que nos precisamos fazer e reduzindo a distância do que se precisa voltar para buscar?
[1] Lei nº 14.800 de 08 de janeiro de 2024
[2] SANTANA, Bianca. Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro. São Paulo. Companhia das Letras; 1ª edição (maio 2021). 296 p.
[3] De JESUS, Edmo de Souza Cidade. Pelos Becos da Memória jurídica: as escrevivências de Eunice Prudente e Dora Bertulio nas relações entre o campo científico e a formação do quilombo jurídico Direito e Relações Raciais. Dissertação de Mestrado. UFSC. 2023. Acesso em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/249865/PDPC1674-D.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[4] “A teoria crítica racial, elaborada a partir da constatação dos retrocessos e da insuficiência dos avanços em direção à igualdade racial obtidos por meio da legislação dos direitos civis e da ação afirmativa, nos Estados unidos, tem origem no âmbito jurídico, mas amplia-se para as ciências sociais.” NASCIMENTO, E. L. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. Editora Selo Negro. São Paulo. 2003. p.100.
[5] https://www.scielo.br/j/rdp/a/NFJR7sgzKmzc78Z5Q87JYGK/abstract/?lang=pt
[6] https://law.ucla.edu/faculty/faculty-profiles/kimberle-w-crenshaw
[7]Nos anos 90s a Biblioteca do Centro Cultural de São Paulo sobre história, possuía uma sessão sobre movimento negro no Brasil. Em 1990 Benedita da Silva publicava tradução de “Escrevo o que eu Quero” de Steve Biko.
[8] Em África Pré Colonial a função de mentor restringia-se àqueles que se dedicaram pelo menos há mais de 30/40 anos ao saber. Assim, a posição de Sábio, de Griot Embaixador/Genealogista, de Sobá, de Régulo da comunidade apenas era reconhecida àqueles que se dedicaram por décadas a formarem-se para ocupar tais posições. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf
[9] É sabido que Luiz Gama valia-se, destacadamente, das normas de aplicação da lei brasileira no tempo e espaço, assim como do controle de convencionalidade, dos contratos de compra e venda de escravizados, para conquistar a liberdade de inúmeros africanos no Brasil.
[10]https://www.ibirapitanga.org.br/historias/direito-em-pretugues-atuar-alem-dos-limites-do-sistema-de-justica/
[11] O CNJ inserindo sociologia, filosofia, e demais disciplinas humanísticas durante a presidência da gestão do professor Lewandoski, conclamou que as formações dos profissionais de direito comprometessem-se com esse básico de conhecimento em humanidades. https://cm-kls-content.s3.amazonaws.com/201601/INTERATIVAS_2_0/FILOSOFIA_DO_DIREITO/U1/LIVRO_UNICO.pdf
[12] “A falácia do espantalho consiste em apresentar de forma caricata o argumento da outra pessoa, com o objetivo de atacar essa falsa ideia em vez do argumento em si. Deturpar, citar de maneira incorreta, desconstruir e simplificar demais o ponto de vista do adversário são formas de cometer essa falácia. Em geral, o argumento espantalho é mais absurdo que o argumento real, facilitando o ataque. Além disso, acaba levando o oponente a perder tempo defendendo-se da interpretação ridícula de seu argumento, em vez de sustentar sua posição original.” Almossawi, Ali. O livro ilustrado dos maus argumentos [recurso eletrônico] / Ali Almossawi; ilustração de Alejandro Giraldo. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2017
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