Opinião

Derrogação dos incisos I e II do artigo 11 da LIA afronta a Constituição

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19 de janeiro de 2025, 6h01

A Lei nº 14.230/2021, ao alterar substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), promoveu a derrogação dos incisos I e II do artigo 11, que tipificavam, respectivamente, a prática de ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência, e o retardamento ou omissão indevida de ato de ofício. Essa alteração suscita questionamentos relevantes quanto à sua constitucionalidade, merecendo, pois, análise aprofundada à luz dos princípios constitucionais da legalidade e da moralidade administrativa.

Para compreender a dimensão dessa problemática, destaca-se que a força normativa do artigo 37 da Constituição de 1988, ao vincular toda a administração pública aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, consolida verdadeiros vetores axiológicos do Estado Democrático de Direito, fundamentais para a preservação da integridade na gestão pública. Consequentemente, todos os atos ou condutas contrárias a esses predicados configuram violações que exigem reprovação mediante aplicação de sanções, visando preservar a boa-fé, a honestidade, a ética, a decência e a presteza de seus agentes.

Ressalte-se que os princípios norteadores da administração pública e da probidade possuem máxima eficácia, isto é, força normativa soberana, não podendo ser aniquilados ou deformados pela vontade do legislador ordinário, hierarquicamente inferior. Portanto, revelam-se incompatíveis com normas infraconstitucionais que lhes neguem eficácia plena, as quais devem amoldar-se à Lei Maior.

O princípio da máxima eficácia orienta a interpretação das normas constitucionais, buscando atribuir-lhes o sentido de maior efetividade e alcance. Esse princípio visa garantir a plena realização dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, superando interpretações restritivas. Nessa linha, os juristas Ingo Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero afirmam que “[…] o princípio da máxima eficácia e efetividade implica o dever do intérprete e aplicador de atribuir o sentido que assegure maior eficácia às normas constitucionais, servindo de instrumento para assegurar a otimização da eficácia e da efetividade e, portanto, também da força normativa da constituição” [1].

Nesse contexto, o princípio da legalidade, para alcançar sua integridade, exige necessariamente a observância do princípio da moralidade, sendo essa uma condição sine qua non para a plena eficácia da legalidade administrativa. A probidade administrativa materializa-se no dever do agente público de atuar de forma ética, com honestidade e em estrita observância à lei.

A inconstitucionalidade de uma lei configura-se quando uma norma infraconstitucional contraria as disposições da Constituição Federal. Caracteriza-se, entre outras hipóteses, quando lei ordinária torna inócuo dispositivo constitucional ou nega-lhe eficácia plena. Tal situação ocorre quando o legislador ordinário extrapola sua competência legislativa — vinculada e subordinada à Carta Política. Não lhe é permitido, portanto, cessar, diminuir, esvaziar, negar ou reduzir o alcance projetado ao princípio constitucional da legalidade.

A derrogação dos incisos I e II do artigo 11 da LIA afronta diretamente a Carta Magna, que proclama a defesa da probidade, da legalidade e moralidade pública. A lei ordinária, hierarquicamente inferior, ao prestigiar e acobertar a improbidade, cria um indevido espaço de imunidade. Enquanto a Lei Maior assegura proteção plena à probidade administrativa, a lei ordinária concede proteção injustificada à impunidade.

A Lei de Improbidade Administrativa, além de colidir frontalmente com a Constituição, promove um retrocesso moral, ético e legal, violando o princípio da vedação ao retrocesso da moralidade pública. Esse retrocesso manifesta-se quando os valores e as normas que orientam a conduta dos agentes públicos são desrespeitados, comprometendo o interesse público e a credibilidade administrativa. No caso em análise, decorre da isenção de sanção pelo cometimento de atos ilícitos, contrariando o princípio da probidade administrativa.

A supressão de condutas típicas de improbidade representa um indevido retrocesso ético, legal e moral. Ao enfraquecer a tutela do microssistema de moralidade pública, essa postura regressiva do legislador ordinário implica tolerância aos desvios dos agentes públicos.

Spacca

Importante destacar que a derrogação desses dispositivos também desrespeita a Convenção de Mérida, aprovada pelo Decreto nº 5.687/2006, que promulgou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, sobre políticas e práticas de prevenção da corrupção.

A Constituição Federal tratou de forma singular a reprovação da improbidade administrativa para evitar prejuízos ao erário. Como já salientava Platão, na obra República, a punição e o afastamento da vida pública dos agentes corruptos visam estabelecer uma regra proibitiva para que os servidores públicos não se deixem “[…] induzir por preço nenhum a agir em detrimento dos interesses do Estado” [2].

Visão da doutrina

Nessa perspectiva, ao suprimir dispositivos que tipificavam condutas como abuso de poder, violação à lei, prevaricação e retardamento ou omissão indevida de ato de ofício, a alteração legislativa da LIA, além de configurar uma inconstitucionalidade latente, compromete gravemente a credibilidade do sistema jurídico perante a sociedade.

Diante da inconstitucionalidade apontada, importa analisar seus efeitos jurídicos. Os efeitos repristinatórios decorrem da declaração de inconstitucionalidade de uma lei que revogou outra lei anterior. Nessa hipótese, a lei anterior, aparentemente revogada, volta a ter vigência e eficácia, uma vez que a lei posterior, declarada inconstitucional, é considerada nula desde sua origem. Dessa forma, os efeitos repristinatórios restauram a situação jurídica anterior à edição da lei inconstitucional.

O tema encontra sólido respaldo doutrinário. Alexandre de Moraes ensina que “[…] a declaração de inconstitucionalidade de uma norma acarreta a repristinação da norma anterior que por ela havia sido revogada, uma vez que norma inconstitucional é norma nula, não subsistindo nenhum de seus efeitos” [3]. Na mesma linha, Uadi Lammêgo Bulos afirma que “[…] essa eficácia é automática. Nem precisa vir anunciada no acórdão para tornar-se válida. Subtende-se dele” [4].

Tal entendimento encontra fundamento legal no artigo 11, § 2º da Lei nº 9.868/1999, que estabelece que “a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário”. O mesmo efeito jurídico se verifica quando do julgamento do mérito, conforme consolidado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Adin nº 2.621-MC/DF, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa.

“A declaração de inconstitucionalidade in abstracto, de um lado, e a suspensão cautelar de eficácia do ato reputado inconstitucional, de outro, importam – considerado o efeito repristinatório que lhes é inerente – em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. Esse entendimento – hoje expressamente consagrado em nosso sistema de direito positivo (Lei nº 9.868/99, art. 11, § 2º) -, além de refletir-se no magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, “Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais”, p. 272, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 249, 2ª ed., 2000, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 4, tomo III/87, 1997, Saraiva; ZENO VELOSO, “Controle Jurisdicional de Constitucionalidade”, p. 213/214, item n. 212, 1999, Cejup), também encontra apoio na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, desde o regime constitucional anterior (RTJ 101/499, 503, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RTJ 120/64, Rel. Min. FRANCISCO REZEK), vem reconhecendo a existência de efeito repristinatório nas decisões desta Corte Suprema, que, em sede de fiscalização normativa abstrata, declaram a inconstitucionalidade ou deferem medida cautelar de suspensão de eficácia dos atos estatais questionados em ação direta” (RTJ 146/461-462, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 2.028-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES – ADI 2.036-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES – ADI 2.215-PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO) [5].

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desde o regime constitucional anterior, reconhece a existência do efeito repristinatório nas decisões que, em sede de fiscalização normativa abstrata, declaram a inconstitucionalidade ou deferem medida cautelar de suspensão de eficácia dos atos estatais questionados em ação direta. Esse entendimento, hoje expressamente consagrado em nosso sistema de direito positivo, encontra amplo respaldo na doutrina constitucionalista brasileira.

Com efeito, mesmo que o Acórdão não mencione expressamente seus efeitos, a aplicação da repristinação ocorre de imediato. Como já decidiu a Corte Suprema na ADIN nº 2.621-MC/DF,

“A decisão judicial que decreta (rectius, que declara) a inconstitucionalidade atinge todos os ‘possíveis efeitos que uma lei constitucional é capaz de gerar’, inclusive a cláusula expressa ou implícita de revogação. Sendo nula a lei declarada inconstitucional, diz o Ministro Moreira Alves, ‘permanece vigente a legislação anterior a ela e que teria sido revogada não houvesse a nulidade’” [6].

Portanto, declarada a inconstitucionalidade da Lei de Improbidade Administrativa que revogou os incisos I e II do artigo 11, restabelece-se a eficácia jurídica da lei anterior, que prevê a punição para as condutas de “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência” e “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”. Essas tipificações visam coibir o abuso de poder, entendido como o ato pelo qual agente investido de poder público ultrapassa os limites legais ou éticos de suas atribuições.

 


[1] MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 240.

[2] PLATÃO. República. Bauru: Edipro, 1994, p. 117.

[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ed. São Paulo: Atlas, 2008, pág. 757

[4] 4 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 252.

[5] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp ?numDj=151&dataPublicacaoDj=08/08/2002&numProcesso=2621&siglaClasse=ADI&codRec urso=0&tipoJulgamento=MC&codCapitulo=6&numMateria=106&codMateria=2.

[6] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp ?numDj=151&dataPublicacaoDj=08/08/2002&numProcesso=2621&siglaClasse=ADI&codRec urso=0&tipoJulgamento=MC&codCapitulo=6&numMateria=106&codMateria=2.

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