Segunda Leitura

Bitcoin, blockchain e a nova soberania

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19 de janeiro de 2025, 8h00

Os entusiastas talvez chamem de “soberania 2.0” o resultado da necessária adaptação do conceito original, em razão do surgimento do bitcoin, a partir da tecnologia blockchain.

Falar sobre blockchain não pode ser visto como uma novidade absoluta. A tecnologia que viabilizou a existência do bitcoin em 2009 é conhecida desde a virada do milênio e teve disseminação exponencial nos últimos anos. O tema está presente, também, nos espaços de governança pública. Veja alguns referenciais:

– 2019: a Receita Federal instituiu a IN 1.888, disciplinando a declaração de criptoativos;

– 2021: o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 423, inserindo no conteúdo programático do concurso da magistratura o Direito Digital e as novas tecnologias: criptomoedas, blockchain e algoritmos;

– 2022: entrou em vigor no Brasil o marco legal dos criptoativos (Lei nº 14.478).

O que torna o assunto atual e relevante é a crescente adoção do bitcoin como forma de pagamento ou reserva monetária, tendência que pode resultar no esvaziamento gradual das moedas fiduciárias emitidas pelos bancos centrais dos Estados.

O básico sobre bitcoin e blockchain

O bitcoin é a “criptomoeda corrente” de uma rede que valida transações de modo público através da tecnologia blockchain. Trata-se de um sistema de verificação de pagamentos capaz de certificar que uma quantidade de moeda foi adquirida e ainda não foi utilizada, assim resolvendo o chamado problema do gasto duplo, próprio aos conceitos fundamentais da contabilidade.

A tecnologia blockchain (“corrente de blocos”, em tradução livre) promove o armazenamento completo dos dados produzidos pelas sucessivas transferências de criptoativos e envia instantaneamente cópia dos seus registros para todos os computadores integrantes da rede, que passam a atuar como unidades certificadoras redundantes. Esses dados são agrupados em blocos com determinada capacidade de armazenamento, os quais são conectados entre si em ordem cronológica por meio de uma cadeia de chaves eletrônicas (função hash), formando uma corrente de dados verificáveis.

Na prática, a blockchain desempenha digitalmente o papel antes reservado ao livro razão, pois consiste em um registro público de informações que não podem ser alteradas. Nesta analogia, os sucessivos blocos de dados correspondem às páginas do livro.

Charles Giacomini, juiz federal

A diferença está no fato de que se trata de uma tecnologia descentralizada, que dispensa um local para o depósito deste “livro razão digital”. O armazenamento se dá por meio da execução simultânea do mesmo software por milhares de computadores, que se comunicam diretamente, com interações ponto a ponto (“peer-to-peer” ou P2P), sem a necessidade de qualquer estrutura ou instituição intermediária.

O bitcoin, em específico, é a criptomoeda resultante da operação contínua do software chamado Bitcoin Core, um programa aberto que opera há mais de 15 anos sem intercorrências. As operações sincronizadas do sistema bitcoin formam uma grande rede de nós em um ambiente onde cada computador conectado representa a execução de um nó – unidade básica da tecnologia blockchain.

O bitcoin não é uma empresa. É um protocolo aberto. Qualquer pessoa que deseje participar da rede bitcoin pode instalar o programa em seu computador e passar a ser mais um nó do sistema, desde que a sua máquina atenda aos requisitos técnicos [1].

Em síntese, trata-se de um novo poder computacional que permite realizar transações certificadas por meio de um sistema descentralizado e público – porém anônimo, já que os endereços das operações (chaves públicas do pagador e do recebedor) possuem o formato de códigos.

Uma característica relevante do bitcoin é a sua escassez. O sistema tem a quantia limitada – e imutável – de 21 milhões de unidades, que, por sua vez, são compostas por cem milhões de frações, razão pela qual as operações observam 8 casas decimais após a vírgula: 1,00000000 BTC. Na visão de Saifedean Ammous, “o bitcoin é o primeiro exemplo de um bem digital que é escasso e não pode ser reproduzido infinitamente”, isso porque é um bem digital “cuja transferência impede que ele seja [continue sendo] de propriedade do remetente” [2].

Apesar da alta volatilidade e da cotação inicial desprezível, muitas pessoas enxergaram no bitcoin uma solução eficiente e confiável para suas transações, manifestando disposição para recebê-lo em troca de produtos ou serviços. Sem demora, cada vez mais usuários passaram a ter interesse em trocar suas moedas nacionais pelo criptoativo – comprar bitcoins – para uso ou reserva monetária, o que desencadeou sua expressiva valorização.

Qual a relação entre bitcoin e soberania?

Vários aspectos das criptomoedas interessam ao olhar jurídico. Alguns exemplos:

– o Direito Penal examina o uso das criptomoedas na prática de lavagem de dinheiro;

– o Direito Tributário analisa a incidência fiscal sobre o patrimônio e a renda provenientes de criptoativos; e

– o Direito das Sucessões analisa a transmissão hereditária de criptoativos.

A reflexão proposta nesta coluna diz respeito ao Direito Constitucional e aos atributos do Estado soberano, especialmente no que diz respeito ao monopólio da emissão de moeda.

A soberania

A soberania pode ser definida como o traço que caracteriza o poder supremo do Estado, dentro do território nacional, para criar regras e governar. De acordo com o conceito de soberania, a ordem interna é exercida pelos poderes juridicamente constituídos, sem qualquer interferência externa, ressalvadas as relações horizontais de Direito Internacional, sempre consentidas.

Um dos pressupostos da soberania é o princípio da subordinação, segundo o qual a população reconhece e aceita o fato de que o território do Estado coincide com o espaço de validade de uma determinada ordem jurídica, aplicada com exclusividade por uma personalidade estatal. As nações soberanas criam os seus próprios sistemas políticos, normativos e também monetários, tudo a partir das instituições de Estado.

Para a concretização dos seus objetivos, os Estados soberanos exercem diferentes tipos de poderes: estabelecem leis, exercem a jurisdição, comandam a força policial e, no que tange ao sistema financeiro, detêm o monopólio da emissão da moeda e regulam as entidades que operam no mercado.

O desafio

Os sistemas monetários estatais foram surpreendidos pelo surgimento da tecnologia blockchain, que, como visto acima, dispensa a presença de uma instituição intermediária para a realização de transações financeiras, permitindo que o pagador e o recebedor transfiram recursos diretamente entre si, sem a necessária presença do Estado. O bitcoin é o primeiro e mais notável caso de uso dessa tecnologia.

Diversos países estão em plena corrida regulatória, tentando conceber soluções normativas capazes de manter as operações com criptomoedas sob seu controle. É neste contexto que o marco legal dos criptoativos no Brasil dispõe sobre as “prestadoras de serviços de ativos digitais” (Lei nº 14.478/2022, artigo 5º). A Receita Federal, por sua vez, está em vias de instituir nova regulamentação para criptoativos [3].

O desafio está no fato de que, de maneira inédita, a tecnologia blockchain permite que o titular da criptomoeda realize a autocustódia de seus ativos, o que corresponde ao saque da moeda e ao correspondente armazenamento pessoal – online ou por meio de um dispositivo físico. O efeito prático disso é a exclusão do Estado das trocas econômicas.

Segundo Gustavo Cunha, “a capacidade de ter custódia tem implicações significativas, especialmente em relação à regulação e aos controles tributários estabelecidos pelos Estados”.[4] Por sua vez, Álvaro María afirma que “o Bitcoin infligiu uma ferida no seio do próprio poder estatal: a perda do direito exclusivo de emitir moeda – algo que afeta, de uma forma ou de outra, toda a vida política” [5].

Linhas de tensionamento

Uma análise despretensiosa sugere que, a depender da inclinação do titular da criptomoeda, existem duas possíveis linhas de abordagem sobre o tensionamento entre as características da blockchain e os elementos próprios à soberania estatal.

A primeira linha é a conservadora, observada pelo titular que está plenamente disposto a conviver com o controle estatal sobre seu patrimônio e renda. Essa pessoa demonstra subordinação às instituições de Estado, mantém seus criptoativos sob a custódia de instituições reguladas ou, no caso de fazer a autocustódia, promove a respectiva declaração.

A segunda linha é a reacionária, adotada por quem não pretende assumir voluntariamente compromissos relacionados à declaração de patrimônio e renda. Esta pessoa enxerga nas criptomoedas uma forma de ocultação patrimonial garantida pela criptografia, com a consequente blindagem patrimonial, inclusive contra o próprio Estado. Ao realizar a autocustódia, esta pessoa busca evadir-se do controle estatal, seja no que diz respeito à incidência tributária, seja no que diz respeito à sujeição de seu patrimônio aos mecanismos de constrição, como o bloqueio judicial.

Proliferam na internet discursos entusiastas da linha reacionária, enfatizando aspectos como o anonimato e a inconfiscabilidade dos criptoativos. É um discurso atraente, pois, de um modo geral, os pesados controles estatais não agradam a ninguém. Porém, esta linha carrega todos os riscos próprios aos caminhos reacionários.

Conclusão

O tema das criptomoedas ainda está longe de ser dominado pela população em geral. Fora dos círculos especializados, os debates são vagos e desprovidos de maior rigor técnico. Entre investidores individuais, quase tudo se resume à gestão de riscos financeiros.

O profissional da área jurídica, de um modo geral, também não é um especialista em criptoativos. As exceções costumam estar entre tributaristas e penalistas da área econômica. São raras as pesquisas sobre os reflexos da tecnologia blockchain nos elementos que compõem a teoria do Estado.

Embora o bitcoin esteja cada dia mais consolidado, não se pode negar que é um sistema recente. As instituições de Estado estão apenas começando a assimilar as mudanças decorrentes da tecnologia blockchain – e tudo indica que os próprios Estados precisarão adotá-la em algum momento.

Gustavo Cunha afirma que “as discussões atuais envolvem uma mudança nos papéis do sistema financeiro, uma aproximação maior dos Bancos Centrais com o público, a criação de moedas privadas que poderiam colaborar ou competir com as moedas governamentais” [6].

É possível que, no futuro, estes dias sejam lembrados como o início de uma nova era das relações econômicas, quando o bitcoin ganhou adesão planetária e obrigou os teóricos a revisarem a estrutura do Estado – pelo menos no que diz respeito a um dos alicerces da soberania: o monopólio da emissão de moeda.

 


[1] Publicação didática sobre o protocolo bitcoin: https://blog.areabitcoin.com.br/bitcoin-core/

[2] AMMOUS, Saifedean. O padrão bitcoin: a alternativa descentralizada ao banco central. 3ª ed. Campinas: Editora Axia, 2024, p. 222.

[3] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/receita-federal-recebe-contribuicoes-para-a-nova-regulamentacao-de-criptoativos

[4] CUNHA, Gustavo. A tokenização do dinheiro: como blockchain, stablecoin, CBDC e o DREX mudaram o futuro. São Paulo: Actual, 2024, p. 41.

[5] MARÍA, Álvaro. A filosofia do bitcoin. São Paulo: Faro Editorial, 2024, p. 90.

[6] Obra citada, p. 57.

Autores

  • é juiz federal em Florianópolis (SC), mestre em Ciência Jurídica, especialista em Direito Público e professor de Direito Tributário, Direito Financeiro, Direito Econômico e Direito Internacional.

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