Adoção de câmaras de consensualismo pelos Tribunais de Contas estaduais
19 de janeiro de 2025, 8h00
A defesa do consensualismo e do princípio dialógico, como essência de toda e qualquer atuação estatal, é a marca do constitucionalismo contemporâneo da pós-modernidade, fortemente influenciado pela crise dos pressupostos dogmáticos da modernidade nas mais diversas áreas do conhecimento. A crise do Estado é a crise do Direito, pautada na crença da centralidade e da territorialidade estatal [1].
Sob tal viés, a busca pela modernização dos Tribunais de Contas Estaduais (TCEs) é fundamental para fortalecer a eficiência e a transparência no controle do poder público, bem como enfrentar os desafios de uma administração pública complexa e dinâmica. A mudança de paradigma no processo decisório público tem uma nítida razão: o direito administrativo tradicional brasileiro — alicerçado na noção francesa de aplicação estrita da indisponibilidade e da supremacia do interesse público — está em processo de modificação ante a era da globalização [2].
Nesse sentido, a adoção de câmaras de consensualismo tem ganhado destaque como um mecanismo inovador para resolver conflitos administrativos de maneira célere e colaborativa e com o intuito de alinhar a busca pela eficiência administrativa ao respeito aos princípios constitucionais. Tais câmaras, com atuação pautada no diálogo entre os órgãos de controle e os gestores públicos, têm o potencial de otimizar os procedimentos e equilibrar princípios constitucionais como legalidade, eficiência e segurança jurídica.
Os Tribunais de Contas desempenham funções essenciais de fiscalização, garantindo que os recursos públicos sejam aplicados conforme os princípios constitucionais de eficiência, moralidade e transparência, nos termos do caput artigo 37 do texto constitucional [3]. Assim, a criação de câmaras de consensualismo não só se alinha a esses princípios como também atende ao imperativo constitucional de soluções administrativas mais ágeis e eficazes, conferindo autonomia a essas instituições e permitindo-lhes implementar ferramentas inovadoras, desde que compatíveis com os valores e os limites impostos pela Constituição Federal.
Sob tal ótica, as câmaras de consensualismo encontram respaldo nos princípios constitucionais do interesse público e da eficiência administrativa. Além disso, normas infraconstitucionais, como a Lei nº 13.140/2015 (Lei de Mediação), reforçam a viabilidade legal de métodos alternativos de resolução de conflitos na administração pública. Essas câmaras podem ser vistas como uma forma de mediação adaptada às particularidades do controle externo, garantindo que conflitos sejam resolvidos sem comprometer o rigor técnico ou a transparência dos atos administrativos.
Nesse contexto jurídico, os Tribunais de Contas Estaduais brasileiros passam a editar normas voltadas a regulamentar e viabilizar a implementação de meios de solução pacífica de conflitos administrativos, orçamentários, financeiros, de economicidade e operacionais (públicos ou público-privados), no bojo dos processos de controle externo por eles apreciados [4].
Conforme Di Pietro [5], o consensualismo no Direito Administrativo promove um modelo de gestão mais colaborativo e moderno, em que o controle deixa de ser exclusivamente punitivo para se tornar também preventivo e orientador. Já Leonardo Reis destaca que, no âmbito dos TCEs, essas câmaras podem funcionar como instrumentos eficazes para garantir a correção de irregularidades sem comprometer o equilíbrio financeiro ou a continuidade dos serviços públicos [6].
Fortalece esse movimento em torno da consensualidade administrativa a Nota Recomendatória nº 02/2022, expedida pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon). O documento orienta os TCEs para que, observado o regime jurídico-administrativo, adotem instrumentos de solução consensual de conflitos, aprimorando essa dimensão nos processos de controle externo.
O TCU, alinhado à referida Nota, criou a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso), cujo papel é identificar soluções consensuais para problemas relevantes, bem como mitigar litígios que, muitas vezes, tramitam demoradamente no Tribunal e nem sempre chegam a ser concluídos ou convertidos em benefícios à sociedade.
A iniciativa de criar a unidade técnica especializada do TCU se deu em razão da edição da Instrução Normativa nº 91/22 [7], que instituiu procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal desencadeados a partir das Solicitações de Solução Consensual (SSC), como são chamadas.
Como salientado pelo Ministro Bruno Dantas, ao abordar o tema “Soluções Consensuais medidas pelos Tribunais de Contas” durante o seminário “Eficácia das Decisões dos Tribunais de Contas”, realizado pelo TCE-MT, a promoção de soluções consensuais ou autocompositivas e a celebração de negócios jurídicos processuais marcam o progressivo desprestígio do contencioso e a assunção dessa via, como última instância e razão de atuação do poder público [8].
Em termos de constitucionalidade, cabe destacar que tais câmaras não violam a competência fiscalizatória dos TCEs, pois mantêm intactos os direitos à ampla defesa e ao contraditório. Ao contrário, essas instâncias fortalecem a atuação preventiva, criando uma dimensão no controle externo: a busca por acordos que beneficiem todas as partes envolvidas e assegurem a correta aplicação dos recursos públicos.
Sendo assim, o tribunal cumpre um papel importante, não só constitucional, ao realizar o controle externo e ser um grande mediador de conflitos que podem causar prejuízos e danos significativos ao bem público, à qualidade de vida e, inclusive, à segurança das pessoas. Com a iniciativa da mesa técnica, o órgão está construindo soluções autocompositivas e consensuais entre as partes, o tribunal e a administração pública, trazendo uma solução inovadora e inédita, que materializa o melhor interesse público, evitando consequentes demandas judiciais, paralisação de serviços ou obras essenciais à população, dentre outros benefícios [9].
Essa análise minuciosa dos fatores influenciadores do conflito realizada na mesa técnica permite identificar as alternativas para resolução técnica e jurídica do problema ou, a depender do caso, os caminhos para o estabelecimento de acordo consensual entre as partes em desavença, sem afastar o atendimento ao interesse público. Com base nesses resultados, o tribunal de contas pode homologar soluções consensuais e acordos autocompositivos, emitir recomendações e estabelecer critérios e prazos para resolução de problemas complexos e com relevância pública.
Uma característica importante é que os acordos firmados nessas câmaras têm força vinculante, mas devem ser homologados pelo plenário ou colegiado do tribunal. Esse requisito é essencial para assegurar que o conteúdo do acordo esteja em conformidade com as normas jurídicas aplicáveis e com os objetivos de fiscalização do TCE [10].
A adoção de câmaras de consensualismo traz uma série de impactos positivos para a administração pública. Primeiramente, reduz a litigiosidade, evitando o acúmulo de processos tanto nos próprios tribunais de contas quanto no Poder Judiciário. Isso permite uma maior agilidade na resolução de controvérsias, contribuindo para a desburocratização dos processos administrativos [11].
Além disso, o uso de consensualismo fortalece a cultura de conformidade e colaboração entre os agentes públicos. Ao invés de se posicionarem como antagonistas, os gestores passam a atuar de maneira mais proativa para corrigir eventuais falhas e ajustar condutas. Isso melhora a qualidade da gestão pública e aumenta a confiança da população nas instituições.
Transparência, redução de judicialização e maior eficiência
Outro aspecto fundamental é o ganho em transparência. Como os acordos são publicados e acompanhados, a sociedade tem acesso direto às medidas tomadas para solucionar problemas administrativos, reforçando o controle social sobre a aplicação dos recursos públicos [12].
A criação de câmaras de consensualismo nos TCEs transcende a esfera técnica do controle externo, gerando impactos concretos para a administração pública e a sociedade. Ao resolver conflitos de forma colaborativa, reduz-se a judicialização de demandas administrativas, diminuindo custos e acelerando a solução de problemas que, de outra forma, poderiam comprometer a prestação de serviços públicos.
Para os gestores públicos, essas câmaras representam uma oportunidade de corrigir eventuais desvios de conduta sem a imposição de sanções desproporcionais. Isso cria um ambiente mais favorável ao aprendizado institucional, incentivando a melhoria contínua das práticas administrativas.
Por outro lado, para a sociedade, os ganhos estão na maior agilidade e eficiência do controle externo, na melhor aplicação dos recursos públicos e no fortalecimento da confiança nas instituições. Ao promover soluções consensuais, os TCEs reforçam sua legitimidade e contribuem para uma administração pública mais transparente e participativa.
Apesar das vantagens, a implementação das câmaras de consensualismo enfrenta desafios. Um deles é a resistência cultural de alguns gestores públicos e servidores, que podem enxergar nesse modelo uma ameaça à autoridade fiscalizadora dos TCEs. Para superar esse obstáculo, é imprescindível promover capacitações e campanhas de conscientização, destacando os benefícios dessa abordagem.
Outro desafio é assegurar que as câmaras não sejam utilizadas para “afrouxar” a fiscalização. Isso demanda a criação de normativas claras que definam os limites e objetivos dessas instâncias, além da presença de mediadores experientes que garantam a imparcialidade do processo [13].
A rigidez e a falta de diálogo nos contratos administrativos frequentemente dificultam que o poder público alcance o cumprimento eficiente e voluntário das obrigações pactuadas. Isso resulta na má utilização de recursos e na ineficácia dos objetivos contratuais.
Uma gestão eficaz, pública ou privada, requer prevenção de conflitos, o que não se alinha a práticas inflexíveis ou contratos unilaterais que elevam a litigiosidade. Assim, priorizar soluções consensuais permite atender tanto aos interesses públicos quanto aos privados, promovendo maior eficiência, segurança jurídica e redução de disputas judiciais.
Atualmente assiste-se a uma paulatina e crescente criação de instrumentos consensuais de controle, com o objetivo de substituir, ao menos parcialmente, o controle-sanção pelo controle-consenso e o controle-repressão pelo controle-impulso [14]. Justamente porque, atualmente, o foco do controle não é apenas a imposição de sanções, mas também a pacificação negociada das controvérsias na ordem interna, em conformidade com o que preceitua o preâmbulo da Constituição da República de 1988.
A adoção de câmaras de consensualismo pelos Tribunais de Contas Estaduais representa uma resposta moderna e eficiente às demandas de uma administração pública cada vez mais complexa e dinâmica. Essa inovação não apenas fortalece os princípios constitucionais de eficiência, legalidade e razoabilidade, como também promove um ambiente de maior diálogo entre os órgãos fiscalizadores e os gestores públicos.
Para que essa iniciativa seja plenamente exitosa, é necessário que os TCEs invistam em regulamentação adequada, capacitação técnica e uso de tecnologias que garantam a transparência e a legitimidade dos procedimentos. Com isso, os Tribunais de Contas podem assumir um papel ainda mais relevante no fortalecimento da gestão pública, contribuindo para o aprimoramento do controle externo e, sobretudo, para o benefício direto da sociedade.
Dessa forma, a criação de câmaras de consensualismo nos Tribunais de Contas Estaduais representa uma evolução no sistema de controle da administração pública brasileira. Ao equilibrar os princípios de legalidade, eficiência e celeridade, essas instâncias oferecem um caminho mais colaborativo e menos conflituoso para a resolução de problemas administrativos.
Diante de seus benefícios, incentiva-se que os tribunais invistam na regulamentação e estruturação dessas câmaras, garantindo que sua atuação seja não apenas legítima, mas também eficaz. Com isso é possível consolidar um modelo de administração pública mais moderno, eficiente e voltado para o bem-estar coletivo.
Referências
BRITO, Gabriel; BARROS, Luciano. Consensualismo na esfera pública e a materialização do princípio da efetividade. Consultor Jurídico, São Paulo, 21 ago. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-21/consensualismo-na-esfera-publica-e-a-materializacao-do-principio-da-efetividade/. Acesso em: 06 dez. 2024
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 06 dez. 2023.
BRITO, Gabriel; BARROS, Luciano. Consensualismo na esfera pública e a materialização do princípio da efetividade. Consultor Jurídico, São Paulo, 21 ago. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-21/consensualismo-na-esfera-publica-e-a-materializacao-do-principio-da-efetividade/. Acesso em: 06 dez. 2024.
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[1] DIAS, Maria. Tereza. Fonseca. Direito administrativo pós-moderno. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 37.
[2] BRITO, Gabriel; BARROS, Luciano. Consensualismo na esfera pública e a materialização do princípio da efetividade. Consultor Jurídico, São Paulo, 21 ago. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-21/consensualismo-na-esfera-publica-e-a-materializacao-do-principio-da-efetividade/. Acesso em: 06 dez. 2024.
[3] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte.
[4] OLIVEIRA, Gustavo Justino de.; SCHWANKA, Cristiane. A administração consensual como a nova face da administração pública no século XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, [S. l.], v. 104, p. 303–322, 2009. Disponível em: https://revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67859. Acesso em: 07 dez. 2024.
[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2021, p. 152.
[6] REIS, Leonardo. Consensualismo no Direito Administrativo Brasileiro: desafios e perspectivas. Revista de Direito Público Contemporâneo, 2022, p. 5.
[7] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Instrução Normativa nº 91, de 22 de dezembro de 2022. Institui procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 22 dez. 2022.
[8] DANTAS, Bruno. Soluções Consensuais mediadas pelos tribunais de contas (Palestra telepresencial), Seminário: Eficácia das Decisões dos Tribunais de Contas, Escola de Contas do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, 12 de maio de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/live/2rCPu5z8t1w?feature=share. Acesso em: 07 dez. 2024.
[9] TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MATO GROSSO (TCE-MT). Consensualismo como boa prática. Disponível em: https://qatc.atricon.org.br/boas-praticas/tce-mt-consensualismo/. Acesso em: 07 dez. 2024.
[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2021.
[11] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 102.
[12] Publicações do Instituto Rui Barbosa (IRB). Disponível em: https://www.irbcontas.org.br.
[13] REIS, Leonardo. Consensualismo no Direito Administrativo Brasileiro: desafios e perspectivas. Revista de Direito Público Contemporâneo, 2022.
[14] FERRAZ, Leonardo. Termo de Ajustamento de Gestão. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 27, Salvador, Bahia, set./out./nov. 2011.
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