Opinião

STF em busca do regime interventivo adequado à Defensoria Pública

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  • é doutor em Direito Constitucional (Unifor) mestre em Ciências Jurídicas (UFPB) pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil e em Direito Público: Constitucional e Administrativo (Ciesa) professor do programa de pós-graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e defensor público (DP-AM).

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18 de janeiro de 2025, 6h30

Em cenário de redescoberta dos potenciais da Defensoria Pública para a democratização do acesso à justiça, o ministro Alexandre de Moraes foi um dos primeiros a destacar os potenciais da aplicação da “teoria dos poderes implícitos” (“inherent powers”) à Defensoria Pública, naquilo que a ministra Rosa Weber (ADI nº 6.876) chamou de “novo perfil institucional” desse organismo constitucional.

Nesse contexto, após relembrar da importância da teoria dos poderes implícitos para o constitucionalismo dos Estados Unidos (“Inherent powers”, Myers v. Estados Unidos, US 272 – 52, 118) e para democratização da função investigativa pelo Ministério Público Brasileiro (HC 91.661), Moraes (ADI nº 6.875/RN, j. 13/3/2022) investiu em acompanhar a tendência do Supremo Tribunal Federal de confirmar a prerrogativa de requisição da Defensoria Pública, agregando o argumento de que a “teoria dos poderes implícitos” promove “o reconhecimento de competências genéricas implícitas” permissivas do “pleno e efetivo exercício” da missão constitucional da Defensoria Pública.

Assim sendo, a referida decisão traz importantes pistas para a formação de um “regime adequado de participação” – utilizando –se palavras de Sofia Temer [1] –, para a Defensoria Pública enquanto instituição constitucional, autônoma, essencial e postulante do Sistema de Justiça especialmente vocacionada à defesa dos mais vulneráveis e dos direitos humanos.

Regressando ao contexto decisório do STF, a revisão das referidas “competências genéricas implícitas” deve ser redimensionada nas eras da “massificação” e dos “precedentes” – nas quais os julgamentos vinculantes ou mesmo meramente persuasivos passam a ter mais e mais peso. Nesse quadrante, garantida pela “força normativa da Constituição” (Konrad Hesse [2]), essa mesma lógica da “extração implícita” prerrogativas constitucionais hábeis à execução das finalidades institucionais da Defensoria Pública deve ser também utilizada quanto à intervenção institucional Custos Vulnerabilis.

Aliás, em harmonia com o precedente estampado na ADI nº 6.875/RN (rel. min. Alexandre de Moraes), a intervenção Custos Vulnerabilis respeita os critérios de “adequação, razoabilidade e proporcionalidade”, especialmente em seus caracteres preventivos e de economicidade. Isso porque a intervenção institucional busca impedir danos às pessoas mais vulneráveis e aos direitos humanos na formação dos entendimentos jurisdicionais, bem como, ao mesmo tempo, reduzir a utilização de recursos públicos, pois, uma vez formados precedentes respeitosos aos direitos humanos dos vulneráveis, diminuir-se-á a necessidade de atuações impugnativas da Defensoria Pública. Portanto, a sociedade ganha com tal modalidade interventiva.

Harmoniosamente à supracitada teoria dos poderes implícitos invocada por Moraes (ADI nº 6.875/RN) mas agora debatendo especificamente a intervenção Custos Vulnerabilis, o ministro Luís Roberto Barroso (ED-DPF nº 709/DF, j. 16/10/2023) invocou a mesma diretriz silenciosa para confirmar a constitucionalidade interventiva dessa “prerrogativa implícita” em prol dos propósitos institucionais atribuídos pela Constituição”. E Barroso continuou destacando que a intervenção defensorial é “decorrência direta da Constituição de 1988, especificamente do perfil institucional da Defensoria Pública”. O mesmo ministro ainda arremata com a ideia de implementação da igual essencialidade institucional: “Assim, como o Parquet atua como custos legis, o reconhecimento do custos vulnerabilis à Defensoria Pública é mais um passo nesse percurso” (STF, ADPF nº 709, j. 16/10/2023).

Spacca

Mais recentemente, foi a vez do ministro Edson Fachin (ED-ADPF nº 991/DF e ED-ADPF nº 635/RJ) reforçar a proteção interventiva em prol das pessoas vulneráveis e direitos humanos por intermédio do Custos Vulnerabilis constitucional. Para Fachin, a intervenção defensorial de guardiã dos vulneráveis é “extensão” e “exteriorização” das atribuições institucionais da Defensoria Pública.

Ademais, o Plenário do STF chegou a convalidar, en passant, a legitimação institucional de Custos Vulnerabilis à Defensoria Pública quando confirmou sua legitimação, enquanto terceira, para a propositura de Pedidos de Suspensão (STP 1.007/CE). Com isso, há um passo importante à confirmação de um regime interventivo peculiar à Defensoria Pública – como é a intervenção Custos Vulnerabilis, extensão da essencialidade institucional nos debates atinentes às suas funções.

Portanto, o STF vem fundamentando a intervenção Custos Vulnerabilis como prerrogativa constitucional implícita na Constituição, ratificando as pesquisas [3] sobre o tema. Com efeito, é possível a convivência da intervenção defensorial com a figura do Custos Iuris do Ministério Público e dos demais agentes sociais via Amicus Curiae – como também apontou a ministra Nancy Andrighi no Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 1.854.842/CE). A referida convivência interventiva tem inspiração em modelo cooperativo-participativo, reforçado nos pilares da diversidade, corresponsabilidade e flexibilidade vetores esses imprescindíveis ao modelo de participação contemporâneo, na visão de Sofia Temer [4].

Um alerta aos distraídos: a intervenção defensorial é inconfundível com a intervenção Custos Iuris do Ministério Público – até porque esta outra carrega a visão, lente e interesse do Ministério Público. Essa distinção constitucional de interesses institucionais [5], por conseguinte, foi a base da proposta original de intervenção Custos Vulnerabilis (2014 [6]), extraída também da “atuação complementar” da Defensoria Pública proposta por Luigi Ferrajoli [7].

Pontos de contato

Regressando à decisão de Moraes (ADI nº 6.875/RN), para além da teoria dos poderes implícitos, há pontos de contato entre a prerrogativa de requisição e a intervenção Custos Vulnerabilis: (1) “finalidade garantir o exercício efetivo das atribuições constitucionais da Instituição, permitindo (…) prevenir lesões aos direitos dos assistidos”; (2) “potencialização do alcance de sua atuação coletiva (…) em favor de grupos vulneráveis e, ainda, para uma maior proteção dos direitos humanos”; (3) “mecanismo fundamental para o desempenho do mister constitucional da Defensoria Pública, que prestigia o aperfeiçoamento do sistema democrático, a concretização dos direitos fundamentais de amplo acesso à Justiça”.

A explicação é deveras simples: quando o Poder Judiciário colhe a oitiva da Defensoria Pública enquanto Custos Vulnerabilis, a expertise institucional na defesa dos mais vulneráveis e dos direitos humanos fortalece a democracia na formação de precedentes, os quais se formam potencialmente mais respeitosos aos direitos dos mais frágeis e excluídos, além de aumentar a prevenção de danos a essa população. Trata-se, com efeito, de um legítimo combate à sub-representatividade daqueles muitas vezes esquecidos na formação da Lei, mas agora contando com forte ferramenta participativa para influenciar decisões judiciais. Como alerta Cássio Scarpinella Bueno [8], a intervenção Custos Vulnerabilis é “fator de legitimação decisória indispensável e que não pode ser negada a qualquer título”, sendo “irrecusável” para a “construção de uma decisão mais democrática”.

Isso porque a Defensoria Pública tem vínculo constitucional expresso indissociável com as coletividades necessitadas e os direitos humanos, levando o min. Gilmar Mendes (ADI nº 4.636) a apresentá-la como ombudsman da democracia, do acesso à Justiça e dos direitos humanos. Desse modo, a participação interventiva da Defensoria Pública enquanto Custos Vulnerabilis é instrumento amplificador da democracia processual pois, como afirmou o ministro Fux (ADO nº 2), há íntima relação entre a instituição e a defesa do Estado Democrático de Direito.

Entrementes, a imperiosa conexão entre Defensoria Pública, democracia e acesso à Justiça levou o Plenário do STF, por intermédio da relatoria da ministra Carmen Lúcia (ADI nº 3.943), ao reconhecimento democrático de “não exclusividade” quanto à legitimação institucional coletiva, desde a Constituição (artigo 129, § 1º) – interpretação essa também aplicável à legitimação institucional interventiva, quando a convivência harmoniosa ocorre em regime de cooperação, concorrência e não exclusividade [9], tal qual a citada legitimidade coletiva.

Sem embargo, os debates sobre o regime interventivo constitucionalmente adequado ao “Estado Defensor” é, portanto, a próxima fronteira a ser desbravada para promoção de um efetivo e econômico acesso à justiça institucionalmente mais democrático, sendo inadmissível nesses debates quaisquer “bairrismos institucionais” ou nefastas “ciumeiras corporativas”.

Outrossim, se o Judiciário não tem se distanciado do padrão normativo de proteção das pessoas vulneráveis – como ressaltou o ministro Alexandre de Moraes em recente livro [10] –, isso também acontece quanto à intervenção defensorial. Nesse tema, por exemplo, o STJ reconheceu o padrão legislativo-protetivo dessa intervenção a partir do § 1º do artigo 554 do CPC/2015:

“(…) 3. Em que pese a inaplicabilidade do dispositivo ao feito, trazemos à reflexão importante questão envolvendo a normativa prevista no artigo 554, § 1º, CPC/2015, em que se exige a atuação da Defensoria Pública em casos como o presente: (…). Conclusão inafastável é que esse dispositivo busca concretizar a dignidade da pessoa humana, democratizando o processo, ao permitir a intervenção defensorial. O artigo almeja garantir e efetivar os princípios do contraditório e da ampla defesa de forma efetiva. 4. Importante destacar que a possibilidade de defesa dos vulneráveis, utilizando-se de meios judiciais e extrajudiciais, está prevista no art. 4º, XI, da LC 80/1994 (…)” (STJ, AgInt no REsp n. 1.729.246/AM, rel. min. Herman Benjamin, 2ª T., j. 4/9/2018, DJe 20/11/2018, grifos do articulista).

Com a mesma lógica jurídica, na Reclamação nº 54.011/SP, de relatoria do ministro André Mendonça (STF), a Defensoria Pública de São Paulo (DP-SP) foi expressamente admitida enquanto interveniente Custos Vulnerabilis, considerando-se especialmente o impacto social sobre segmento social vulnerável desde a ação originária (ação possessória multitudinária).

Redescoberta

Embora a intervenção defensorial esteja presente no cotidiano jurídico nacional há mais de uma década, a questão não parece tão próxima assim de ser debatida no Supremo. Em recursos extraordinários que visam debater a essencialidade da participação Custos Vulnerabilis, o STF tem negado o conhecimento recursal por múltiplos fatores, tais como a necessidade de revolvimento fático (ARE 1.422.204), de análise meramente reflexa da Constituição (RE nº 1.470.229; ARE 1.389.896), de inocorrência de impugnação específica (ARE nº 1.386.369) e de ausência de prejuízo na “mera” oitiva democrática da Defensoria Pública, acarretando irrecorribilidade (RE nº 1.498.445 e RE com Agravo n. 1.392.830).

Nos último anos, o STF vem lentamente redescobrindo a Defensoria Pública e seus potenciais para democratização do acesso à justiça. Com isso, a teoria dos poderes implícitos vem se concretizando como importante instrumental à efetividade constitucional e ao resgate da historicidade [11] institucional, porquanto os cargos originários dos Defensores Públicos brasileiros integravam a Procuradoria Geral de Justiça (PGJ-RJ, 1954) e o Ministério Público (MP-DF, 1948). Por fim, ao mirar MP e DP, essa mesma lógica pode ter conduzido ministra Rosa Weber a visualizar o “paralelismo entre as instituições essenciais à função jurisdicional do Estado que atuam na defesa da sociedade” (ADI nº 5.296/DF). Sem embargo, esse sobredito “paralelismo” deve também se confirmar com a paridade “interventiva” de armas entre tais instituições, enquanto efetivação das suas iguais autonomias e essencialidades institucionais à Justiça [12].

 


[1] TEMER, Sofia. Participação no Processo Civil: pensando litisconsórcio, intervenção de terceiros e outras formas de atuação. 2ª ed. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 460.

[2] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.

[3] (1) CASAS MAIA, Maurilio. Luigi Ferrajoli e o Estado Defensor enquanto magistratura postulante e custos vulnerabilis. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 425, Out. 2014, p. 56-58; (2) PIMENTEL, Renan Augusto da Gama. A atuação da Defensoria Pública nas ações possessórias multitudinárias: uma análise da posição processual do órgão defensorial na hipótese do art. 554, § 1º do Novo Código de Processo Civil. In: CASAS MAIA, Maurilio (Org.). Defensoria Pública, Democracia e Processo. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 167-168; (3) GOMES, Marcos Vinícius Manso Lopes. Direitos humanos e princípios institucionais da Defensoria Pública. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 330.

[4] TEMER, Sofia. Participação no Processo Civil: pensando litisconsórcio, intervenção de terceiros e outras formas de atuação. 2ª ed. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 94 ss..

[5] Sobre interesse institucional, vale conferir: BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro: um terceiro enigmático. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 459 ss.

[6] CASAS MAIA, Maurilio. Luigi Ferrajoli e o Estado defensor enquanto magistratura postulante e Custos Vulnerabilis. Revista Jurídica Consulex, Brasília, n. 425, p. 56-58, out. 2014.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 537.

[8] BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Direito Processual Civil – Parte Geral do Código de Processo Civil. V. 1. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 218-219.

[9] CASAS MAIA, Maurilio. As intervenções constitucionais do Ministério Público (Custos Iuris) e da Defensoria Pública (Custos Vulnerabilis) no microssistema processual de proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade: concorrência e não exclusividade. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1.071, Jan. 2025.

[10] MORAES, Alexandre de. Democracia e Redes Sociais: O desafio de combater o populismo digital extremista. Barueri(SP): Atlas, 2025, p. 103-104.

[11] Sobre o tema, vale conferir os volumes 1 e 2 da seguinte obra: SOUSA, José Augusto Garcia de. PACHECO, Rodrigo Baptista. CASAS MAIA, Maurilio. (Org.). A História pede Passagem: Estudos em homenagem aos 70 anos da Defensoria Pública no Brasil. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024.

[12] Para outras pesquisas sobre Custos Vulnerabilis e STF: (1) GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. ROCHA, Jorge Bheron. Intervenção Custos Vulnerabilis da Defensoria Pública: casos no Supremo Tribunal Federal e formação de bons precedentes. In: PAULA, Benjamin Xavier de. HOGEMANN, Edna Raquel Rodrigues Santos. BIZAWU, Sébastien Kiwonghi. (Coord.). Direitos humanos e efetividade: fundamentação e processos participativos. Florianópolis: CONPEDI, 2023; (2) GONÇALVES, Anthair Edgar de Valente e. LIMA, Rodrigo Abreu Martins. A atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis em ações no Supremo Tribunal Federal: um mecanismo de cooperação e diálogo no processo de democratização da jurisdição. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, Brasília, v. 6, n. 2, 2024, p. 19-39.

Autores

  • é pós-doutor em “Direito Processual” (PPGD-UFES) e em “Direito e Sociedade” (UniLaSalle/Canoas-RS), doutor em Direito Constitucional (Unifor), mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), pós-graduado em “Direitos Civil e Processual Civil” e em “Direito Público: Constitucional e Administrativo” (Ciesa), professor de Direito Processual Civil (Ufam), defensor público (DP-AM) e líder do grupo de pesquisa Direito da Proteção dos Vulneráveis e Sistema de Justiça (PPGD-UFAM).

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