Os contratos e sua interpretação
18 de janeiro de 2025, 13h12
O Estado de direito convive com a segurança jurídica como um componente da sua essência. Ou seja, sem segurança jurídica, não haveria Direito. Para Norberto Bobbio, a segurança jurídica não seria apenas uma exigência decorrente da coexistência ordenada do homem, mas também um “elemento intrínseco ao direito”, destinado a afastar o arbítrio e a garantir a igualdade, não se podendo sequer imaginar um ordenamento jurídico sem que subsista uma garantia mínima de segurança jurídica [1].
Essa premissa, mais do que nunca, parecer ter sido abandonada quando tratamos da realidade judicial brasileira. Atualmente, não raras vezes, é possível identificar casos em que o mesmo tribunal, em colegiados diversos, possui posicionamentos diametralmente opostos sobre a mesma temática.
Essa realidade também se aplica ao Direito dos Contratos, caso este objeto da presente reflexão. Nesta, será demonstrado, por meio de de um caso concreto, de que forma o Poder Judiciário interpreta determinado contrato de prestação de serviço com a finalidade de reduzir a multa contratualmente pactuada pelas partes, bem como de que forma fundamenta a sua decisão judicial para tanto. Antes disso, entende-se ser necessário discorrer brevemente sobre a teoria da interpretação dos negócios jurídicos [2].
O ato de interpretar o contrato
Os contratos, como qualquer outra manifestação humana, são passíveis de interpretação. Porém, no caso dos contratos, da mesma forma como ocorre com as leis, a interpretação deve ocorrer de forma distinta. Para Carlos da Mota Pinto, “a interpretação não visa pôr em relevo um resultado destinado a uma pura assimilação ou compreensão intelectuais (uma mensagem) ou afectivas, mas tem em vista evidenciar um conteúdo normativo (um conjunto de comandos) que vai pautar a conduta de alguma pessoa” [3].
O ato de interpretar o contrato é a atividade que visa a fixar o sentido e alcance decisivo dos negócios, segundo as respectivas declarações de vontade que integram o contrato. Trata-se de determinar o conteúdo das declarações de vontade e os efeitos a serem produzidos, desde que em conformidade com as declarações de vontade existentes no instrumento [4]. Para Luís da Cunha Gonçalves, as regras legais de interpretação são destinadas ao juiz intérprete e não às partes. Somente quando as partes estão em divergência e trazem aos tribunais o seu litígio é que se torna preciso dar-lhe solução, mas de modo que se mantenha, rigorosamente, o que foi convencionado [5].
As dúvidas e as ambiguidades suscitadas por uma ou mais cláusulas contratuais têm, assim, de ser resolvidas ponderando, antes de mais, a vontade exteriorizada pelas partes na génese do contrato (e já não a vontade manifestada por cada contraente durante a fase da execução contratual) [6].
Essa concepção está prevista nos artigos 236 [7], 237 [8] e 238 [9], todos do Código Civil Português. O artigo 236 prevê a necessidade de manutenção do contrato da forma como firmado sempre que a parte contratada tiver ciência da vontade do contratante. No artigo 238, ao final, há expressa vedação de que o intérprete modifique as obrigações contratualmente pactuadas de uma forma que não haja mínima previsão contratual.
Na realidade brasileira, após a entrada em vigor da Lei nº 13.874/2019, os artigos 421, parágrafo único, e 421-A, ambos do Código Civil, também exigem do jurisdicionado a intervenção mínima e excepcional nos contratos civis e empresariais. Neste ponto, entende-se haver aproximação legislativa entre as realidades brasileira e portuguesa.
Do caso concreto
A título ilustrativo e exemplificativo, veja-se caso concreto julgado pela 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. No caso, o recurso de apelação julgado analisou a celebração de contrato de prestação de serviços por meio do qual uma das empresas se obrigou a prestar serviços de infraestrutura, tecnologia e equipamentos para atendimento, pelo prazo de 12 meses, com início em 18 de julho de 2019.
Em 20 de março de 2020, a parte autora recorrida foi notificada pela ré acerca do intento de rescindir o contrato, alegando ter tomado conhecimento, por meio dos seus colaboradores, da presença de insetos nas áreas de apoio disponibilizadas nos termos do contrato. Em resposta, a autora recorrida informou à ré que tanto ela como o shopping onde está localizada possuíam todos os alvarás e autorizações necessárias para o perfeito funcionamento.
Vale-se dizer que ambas as partes firmaram, em 2019, contrato prevendo uma determinada cláusula penal, a ser aplicável em caso de descumprimento contratual. Neste ponto, tanto a parte contratante como a contratada tinham total conhecimento e ciência dos termos e riscos contratados.
Em sentença, o juízo de primeiro grau julgou procedente a ação, reconhecendo a incidência da multa contratualmente prevista, ante a rescisão imotivada, além da condenação da ré ao pagamento dos valores relativos ao aviso prévio de 60 dias, conforme cláusulas 7.1 e 5.1 da avença. A ré recorrente foi condenada ao pagamento de R$ 177.913,40, acrescido de correção monetária, pela tabela prática do Tribunal de Justiça, e de juros moratórios, de 1% ao mês.
Em sede de apelação interposta pela empresa ré, a 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo [10] reconheceu, efetivamente, que o pedido de rescisão não possuía justa causa. Porém, ao analisar o valor da multa contratual, decidiu da seguinte forma: “No entanto, a penalidade merece melhor adequação, nos termos do art. 413 do Código Civil. Ora, a permanecer a multa no valor fixado na r. sentença, a apelante devolverá à apelada mais que 50% do que recebeu pela prestação dos serviços, o que se mostra exagerado, em flagrante violação aos princípios da função social do contrato, boa-fé objetiva e equilíbrio econômico contidos nos artigos 421 e 422 do Código Civil”.
Ao final, o juízo concluiu da seguinte forma: “Destarte, considerando as disposições da cláusula 7.1, entendo por readequar a multa, considerando o tempo de adimplemento contratual. Portanto, a multa deve ser fixada no valor equivalente a 04/12 do valor de 1(uma) prestação vigente (R$ 41.792,00), ou seja, R$ 13.930,66″.
Em outras palavras, a empresa autora apelada teve a multa contratualmente prevista de R$ 177.913,40 reduzida para R$ 13.930,66, tendo como fundamento jurídico a suposta violação aos princípios da função social do contrato, boa-fé objetiva e equilíbrio econômico contidos nos artigos 421 e 422 do Código Civil.
Porém, em momento algum está descrito na decisão qual teria sido, por parte da empresa autora, a efetiva violação aos princípios da função social do contrato, boa-fé objetiva e equilíbrio econômico. Esse ônus, ao que parece, seria de inteira responsabilidade da parte recorrente/demandada.
Veja-se que, não há na decisão judicial dúvida quanto aos termos do contrato. Consequentemente, não se está diante de um “caso duvidoso”, conforme o Código Civil Português preceitua em seu artigo 237. Está-se diante do mero arbítrio jurisdicional que, ao analisar o caso em concreto, opta, conforma a sua consciência, modificar as bases contratuais e, consequentemente, os custos inerentes envolvidos.
Com isso, permanece uma dúvida relevante: caso a multa contratual fosse, originariamente, no patamar de R$ 13.930,66, será que haveria o interesse contratual por parte da empresa demandante? Obviamente tal questionamento é hipotético, porém parece ser relevante, considerando a modificação brusca por parte do Juízo dos riscos e ônus contratualmente pactuados.
Da AED
A multa contratual prevista possui papel primordial na relação contratual, especialmente se analisada pelo prisma da AED. Ela funciona como elemento punitivo do contrato. O valor da multa é computado na tomada de decisão por parte do devedor. A parte devedora faz uma operação racional sobre os custos e os bônus no momento do adimplemento contratual. Sendo assim, a modificação arbitrária da multa para o patamar de R$ 13.930,66 nada mais é do que uma modificação radical (quebra da base objetiva) desse elemento punitivo contratual consensualmente pactuado tornando à parte devedora mais benéfico descumprir o contrato do que cumpri-lo.
A decisão judicial, do ponto de vista da AED, torna o contrato excessivamente oneroso à parte credora, no momento em que reduz a multa contratual e, consequentemente, torna-o suscetível ao seu descumprimento racional por parte da empresa devedora.
Tomando a economia como poderosa ferramenta para analisar normas jurídicas, em face da premissa de que os agentes agem racionalmente, conclui-se que elas responderão melhor a incentivos externos que induzam a certos comportamentos mediante sistema de prêmio e punições. A realidade, no entanto, vem demonstrando um cenário de incentivos à judicialização.
Dito isso, a fundamentação jurídica utilizada pelo Juízo poderia ser utilizada em outro caso semelhante ou não, tamanha a ausência de indicadores concretos e pela ausência de demonstração de qual ato praticado pela parte autora teria, supostamente, violado os referidos princípios. Sua utilização é feita de forma retórica, sem relação direta com o caso concreto e com as provas produzidas pelas partes.
Da conclusão
Casos julgados dessa forma — para além de sua ilegalidade e irrazoabilidade — transmitem à sociedade incentivos econômicos perversos. Novamente, volta-se à ideia de segurança jurídica, tendo em vista que as decisões tomadas no cotidiano das partes são embasadas na forma como os tribunais decidem. Consequentemente, decisões ativistas geram incentivos equivocados ao mercado, além de diminuir os índices de credibilidade do próprio Poder Judiciário como instituição.
Partindo-se da consideração de que, em condições nas quais o responsável pela escolha conheça adequadamente a relação custo/benefício, ele próprio será (racionalmente) quem estará mais bem aparelhado à tarefa. Em situações de incerteza, impõe-se o seguinte: a avaliação dos riscos e as estimativas probabilísticas de êxito ou fracasso, que também são feitas pelo mesmo agente [11]. Esse é o ponto.
Por fim, analisando a decisão acima analisada com base na teoria da interpretação dos contratos, bem como da AED, parece ser caso típico de ativismo judicial que, além dos seus efeitos ao caso concreto, transmite aos demais jurisdicionais os incentivos errados, disseminando uma ideia de uma ainda maior insegurança jurídica.
[1] BOBBIO, Noberto. La certeza del Diritto è un mito? Revista Internazionale di Filosofia del Diritto, Roma, v. 28, p. 150-151, 1951.
[2] Para Carlos da Mota Pinto, haveria duas posições diversas sobre a teoria da interpretação, sendo uma delas objetiva e a outra subjetiva. A posição subjetiva exigiria do intérprete buscar, através de todos os meios adequados, a vontade real do declarante. Ou seja, valeria a vontade originária do declarante. Para a posição subjetiva, o intérprete não buscaria a vontade efetiva do declarante, mas sim o sentido exteriorizado ou cognoscível através de certos elementos objetivos. Para isso, a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria (PINTO, Carlos da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. Universidade de Coimbra. 1973, p. 625).
[3] PINTO, Carlos da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. Universidade de Coimbra. 1973, p. 622.
[4] PINTO, Carlos da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. Universidade de Coimbra. 1973, p. 623.
[5] GONÇALVES, Luís da Cunha. Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, vol. IV, Coimbra Editora, 1931, p. 422.
[6] ANTUNES, Ana Filipa Morais. A interpretação do contrato. In: Revista de Direito Comercial. P. 103/132, 2024-07-28.
[7] Artigo 236.º (Sentido normal da declaração) 1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoàvelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
[8] Artigo 237.º (Casos duvidosos)Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
[9] Artigo 238.º (Negócios formais) 1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. 2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.
[10] APELAÇÃO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. Sentença de primeiro grau que condenou a ré ao pagamento da multa contratual em decorrência da rescisão antecipada do contrato. Inconformismo da ré. RESCISÃO IMOTIVADA. Ré contratada para prestação de serviços de infraestrutura, tecnologia e equipamentos para atendimento. Rescisão antecipada imotivada. Alegação de presença de escorpiões no local da prestação de serviços que não constitui motivo para a rescisão motivado do contrato. Laudo pericial elaborado em ação trabalhista que confirmou a ausência de labor em condições insalubres. Negócio celebrado com prazo de 12 meses. Reconhecimento da rescisão contratual imotivada. Aplicabilidade da cláusula penal que decorre de disposições contratuais expressas e inteligíveis. Incidência dos princípios da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) e da segurança jurídica. REDUÇÃO EQUITATIVA DA CLÁUSULA PENAL. Possibilidade. Parcial cumprimento das obrigações. Proporcionalidade que deve ser observada segundo o prazo não cumprido do contrato. Observância aos princípios da função social do contrato, boa-fé objetiva e equilíbrio econômico contidos nos artigos 421 e 422 do Código Civil. Redução equitativa da multa. Inteligência do art. 413 do Código Civil. Precedentes deste E. Tribunal. DESCUMPRIMENTO DA COMUNICAÇÃO PRÉVIA DA RESCISÃO. Deixando de comunicar a rescisão imotivada com 60 (sessenta) de antecedência, convola-se em perdas e danos, segundo o valor da prestação básica, na data da rescisão. Tratando-se de responsabilidade contratual, os juros de mora incidem da cotação. Inteligência os artigos 405, do Código Civil e 240 do CPC/2015. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. SUCUMBÊNCIA. Redistribuição, a teor do disposto no artigo 86 do CPC/2015. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJSP; Apelação Cível 1002458-95.2022.8.26.0100; Relator (a): Rosangela Telles; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II – Santo Amaro – 10ª Vara Cível; Data do Julgamento: 23/11/2022; Data de Registro: 23/11/2022).
[11] SANTOLIM, Cesar. A análise econômica do processo civil brasileiro sob a perspectiva da abordagem comportamental. In: YARSHELL, Flávio Luiz; SICA, Heitor Vitor Mendonça (org.). Ensaios sobre análise econômica do processo civil. Londrina: Thoth, 2023, p. 78.
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