Compartilhamento da íntegra do procedimento administrativo fiscal para recebimento da denúncia em processos criminais
18 de janeiro de 2025, 9h19
Neste texto, analiso a impossibilidade de que a representação fiscal para fins penais seja acompanhada por documentos selecionados pela autoridade fiscal e defender que o Fisco deve remeter a íntegra do procedimento fiscal, sob pena de nulidade no oferecimento/recebimento da denúncia por falta de justa causa e violação ao princípio da ampla defesa.
Inicialmente, cabe destacar que se cristalizou na jurisprudência que os crimes materiais contra a ordem tributária, previstos no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, somente se consumam com o lançamento definitivo do tributo, conforme o Enunciado de Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal:
Súmula Vinculante 24 – Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.
Assim, apenas com a finalização do procedimento administrativo fiscal, necessário ao lançamento definitivo do tributo, é que se consuma eventual crime tributário. Aliás, antes do lançamento definitivo do tributo, sequer corre o prazo prescricional, demonstrando a importância do procedimento administrativo fiscal para a completa caracterização dos crimes tributários.
Além disso, é cediço que, após a conclusão do procedimento administrativo fiscal, caso a autoridade tributária entenda que houve crime, deverá realizar uma representação fiscal para fins penais, conforme disposto no artigo 83 da Lei 9.430/1996, informando a suposta ocorrência de crime ao Ministério Público, titular da ação penal pública, a fim de que tome as providências que entender necessárias.
Compartilhamento de provas sigilosas
O tema da representação fiscal para fins penais e dos documentos que devem instrui-la foi central na discussão referente ao compartilhamento de provas sigilosas entre Receita Federal e órgãos de persecução penal, tratado pelo STF no Recurso Extraordinário 1.055.941/SP.
Na oportunidade, prevaleceu o correto entendimento de que não há violação ao sigilo constitucional e ao direito à privacidade na remessa, junto da representação fiscal para fins penais, da íntegra do procedimento administrativo fiscal, conforme a Tese nº 1 referente ao Tema 990 no STF. Confira-se:
Ementa Repercussão geral. Tema 990. Constitucional. Processual Penal. Compartilhamento dos Relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal para fins criminais. Desnecessidade de prévia autorização judicial. Constitucionalidade reconhecida. Recurso ao qual se dá provimento para restabelecer a sentença condenatória de 1º grau. Revogada a liminar de suspensão nacional (art. 1.035, § 5º, do CPC). Fixação das seguintes teses: 1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil – em que se define o lançamento do tributo – com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional; 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB referido no item anterior deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios. (RE 1.055.941, relator(a): Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 04-12-2019, publicado em 06-10-2020.)
O acerto da decisão decorre de que, se é obrigação legal a representação fiscal para fins penais quando a autoridade fiscal, ao final do procedimento administrativo fiscal, depara-se com uma conduta supostamente criminosa, não faz sentido exigir a prévia autorização judicial para remessa dos documentos que embasam a representação. Afinal, deve-se fornecer ao Ministério Público todos os elementos para a avaliação do suposto caráter criminoso da conduta.
Ademais, mesmo que exigida a prévia autorização judicial para acesso aos dados fiscais, na prática, o que ocorreria é que o Ministério Público receberia a representação fiscal para fins penais, sem documentos, pediria a autorização judicial para acessar os documentos e esta, obviamente, deveria ser fornecida sempre nesses casos, porque haveria justa causa para a quebra do sigilo. Então, optou-se pela opção mais lógica e célere de se permitir de antemão o compartilhamento da íntegra do procedimento administrativo fiscal junto da representação fiscal para fins penais.
Compartilhamento de procedimento fiscal é ilícito
Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal decidiu que é lícito o compartilhamento da íntegra do procedimento administrativo fiscal. Veja-se que a Tese nº 1 fixada pelo Supremo Tribunal Federal foi expressa e literal ao afirmar que “o compartilhamento lícito ocorre quando é enviada a íntegra do procedimento do Fisco ao Ministério Público”. Confira-se novamente a redação apenas da Tese nº 1:
1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil – em que se define o lançamento do tributo – com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. (RE 1.055.941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04-12-2019, publicado em 06-10-2020. Ementa, Tese nº 1.)
A questão foi discutida abertamente no julgamento do RE 1.055.941/SP, pois o ministro Dias Toffoli, relator do feito, manifestou-se inicialmente pela possibilidade de que a Receita Federal — e os correspondentes órgãos do Fisco estadual e municipal — poderiam e deveriam selecionar os documentos que acompanhariam as representações fiscais para fins penais:
Uma coisa é a representação fiscal para fins penais, que pode descrever todas as informações necessárias relacionadas com o fato suspeito ou configurador, em tese, de delito (por exemplo, menção discriminada dos valores creditados na conta corrente do sujeito passivo em determinadas datas); outra coisa é o encaminhamento, na íntegra, de extratos bancários e declarações de imposto de renda, que são documentos sensíveis do sujeito passivo (e que, ressalte-se, contêm informações de terceiros), relativos a sua privacidade e intimidade, cujo conteúdo ultrapassa os elementos necessários para a caracterização do ilícito tributário justificador do envio da representação. (RE 1.055.941, relator(a): Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 04-12-2019, publicado em 06-10-2020. Trecho de voto do ministro Dias Toffoli, p. 80 do julgado)
Ocorre que o ministro Dias Toffoli voltou atrás em seu posicionamento inicial, aderindo ao entendimento exposto pelo ministro Alexandre de Moraes, que alertou sobre a inconveniência de não se permitir que órgão fiscal remeta a íntegra do procedimento administrativo fiscal ao Ministério Público:
Em nosso sistema penal acusatório, consagrado pela Constituição, somente nas hipóteses de crimes tributários, o titular da ação penal pública (CF, artigo 129, I) está condicionado ao término da atuação de outro órgão estatal, no caso, a Receita Federal.
Em outras palavras, o Ministério Público somente poderá oferecer denúncia apta em juízo e obter eventual condenação, após o devido processo legal, por crime material contra a ordem tributária, se comprovar em juízo a existência de lançamento definitivo de tributo contra o acusado (materialidade do delito).
Mas não basta a mera alegação de existência de lançamento definitivo de tributo, por exemplo, por certidão genérica do Fisco, exigindo-se, obviamente, tanto a demonstração de sua regularidade formal, por meio de comprovação do regular lançamento definitivo de tributo contra o acusado após o devido procedimento de fiscalização com todas as exigências legais, quanto a comprovação material da existência de irregularidade tributária por parte do contribuinte, pois esse tem constitucionalmente garantido o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Isso é essencial porque os termos do lançamento definitivo do tributo pela Receita, que comprovam a materialidade do crime, poderão ser novamente impugnados em Juízo.
O elemento necessário e essencial para o oferecimento da denúncia nos crimes materiais contra a ordem tributária é o regular lançamento definitivo do tributo, que, obrigatoriamente, precisará estar respaldado pelo material probatório constante no procedimento de fiscalização. (RE 1.055.941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04-12-2019, publicado em 06-10-2020. Trecho de voto do ministro Alexandre de Moraes, p. 194 do julgado)
De fato, outorgar à autoridade fiscal a prerrogativa de selecionar quais documentos remeterá ao Ministério Público para instruir a representação fiscal para fins penais é abrir margem para violações e desvios, além de prejuízos evidentes ao contraditório e à ampla defesa dos cidadãos, decorrentes de possível sonegação de documentos relevantes que podem induzir em erro a Justiça Criminal. E note-se que isso pode acontecer tanto para prejudicar quanto para beneficiar ilicitamente o investigado/acusado.
Autoridade fiscal não decide relevância em investigação
Não cabe à autoridade fiscal fazer a seleção do que é relevante ou irrelevante para a investigação criminal e para a formação da opinio delicti. Pelo contrário, deve remeter todo o conteúdo do procedimento administrativo fiscal para o Ministério Público, a fim de que esse órgão, competente para a avaliação do caráter criminoso das condutas, seja munido de todas as informações disponíveis.
Foi por esse motivo que o Supremo Tribunal Federal acertou ao fixar a tese de que “é constitucional o compartilhamento da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal”.
Não se pode perder de vista que a jurisprudência é pacífica no sentido de que é possível a condenação com base em provas colhidas no procedimento administrativo fiscal. A propósito, o Superior Tribunal de Justiça já sedimentou que:
Na hipótese, não há falar em ofensa ao art. 155 do CPP, pois a jurisprudência desta Corte Superior que se posicionou no sentido de que é legítima a utilização de prova advinda de procedimento administrativo fiscal, sem necessidade de sua repetição em juízo, em razão de seu contraditório diferido. (AgRg no AREsp nº 2.145.082/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 5/3/2024, DJe de 12/3/2024) [1].
Não é possível realizar o denominado “contraditório diferido” do procedimento administrativo fiscal se a autoridade fiscal não for obrigada a remeter a íntegra desse procedimento. A remessa parcial de documentos descontextualiza-os, impedindo a compreensão do todo que levou ao lançamento do tributo e dos elementos referentes àquela apuração fiscal.
Ressalte-se também a possibilidade de supressão de importantes documentos, de maneira a prejudicar ou favorecer o acusado (seja de maneira deliberada ou involuntária).
Sem acusações às autoridades fiscais
Não se faz, aqui, nenhuma acusação genérica às dedicadas autoridades fiscais, em sua esmagadora maioria de índole e caráter irretorquíveis. Ocorre, porém, que o sistema de Justiça Criminal, seus procedimentos e garantias existem justamente para evitar as más condutas daqueles poucos que, deliberadamente, agem de maneira ilícita para prejudicar outrem, bem como para afastar a possibilidade de erros involuntários por parte dos servidores.
Por essa razão que, de forma acertada, repita-se, o Supremo Tribunal Federal reconheceu como lícito o compartilhamento da íntegra do procedimento administrativo fiscal, não se podendo permitir que seja feita uma seleção arbitrária de documentos, sob pena de se prejudicar a defesa e a avaliação da própria viabilidade da denúncia.
Nos casos em que realizada essa seleção arbitrária, a consequência não pode ser outra que não a rejeição da denúncia pela ausência de justa causa, haja vista a impossibilidade do juízo de analisar a íntegra do procedimento investigatório. Além disso, a continuidade do processo penal sem a cópia integral do procedimento administrativo fiscal implica em clara sonegação de documentos à defesa, violando o contraditório e impedido a ampla defesa. Por último, nada impede que o Ministério Público, rejeitada a denúncia nesses termos, ofereça nova acusação, dessa vez com a íntegra dos documentos que permita uma análise completa e pormenorizada dos fatos.
Essa é a solução que, no marco das garantias vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, melhor conjuga o direito de defesa com a possibilidade da legítima persecução penal daqueles que indevidamente sonegam tributos, construindo um sistema de Justiça Criminal mais democrático e justo e menos sujeito a erros cometidos por todos nós, humanos e falíveis.
[1] No mesmo sentido de que a prova colhida no procedimento administrativo fiscal pode embasar condenação criminal, sem que isso implique em violação ao disposto no artigo 155 do Código de Processo Penal:
– AgRg no AREsp n. 2.171.488/SP, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do Tjdft), Sexta Turma, julgado em 4/6/2024, DJe de 6/6/2024.
– AgRg nos EDcl no AREsp n. 1.124.517/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 14/5/2021.
– AgRg no AREsp n. 1.449.560/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 25/6/2019, DJe de 1/8/2019.
– AgRg no REsp n. 1.640.700/RS, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 18/9/2018, DJe de 21/9/2018.
– AgRg no AgRg no REsp n. 1.515.946/PR, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 23/8/2018, DJe de 14/9/2018.
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