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A Teoria da Decisão e a austeridade fiscal: Itatiaia, fake news e o Pix na garantia dos direitos fundamentais

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  • é doutorando em Direito pela Unesa bacharel em Ciências Militares (Aman) e em Direito (Unesa) mestre em Administração (UFF) professor de Direito Tributário do Toth Concursos e membro do Dasein.

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18 de janeiro de 2025, 8h00

A crise fiscal que atinge os diversos níveis de governo – municipal, estadual e federal – tem imposto medidas de austeridade como forma de assegurar o equilíbrio financeiro das administrações públicas. No município de Itatiaia, o Decreto nº 4.723, de 6 de janeiro de 2025, instituiu ações para redução e otimização das despesas de custeio, em um esforço para ajuste fiscal frente ao cenário econômico atual. Simultaneamente, o Brasil enfrenta uma avalanche de fake news sobre supostas tributações no sistema de pagamentos instantâneos Pix, o que complica ainda mais o debate público sobre finanças e políticas fiscais.

As medidas de austeridade fiscal devem respeitar o princípio da concretização dos direitos fundamentais e a vedação ao retrocesso social, não podendo ser tratadas de forma simplista ou reducionista. Associar austeridade automaticamente à subjugação do sistema jurídico aos ditames econômicos ignora a complexidade do problema e os valores do Estado democrático de Direito.

Superar o maniqueísmo em torno da austeridade fiscal é essencial para compreender que a compatibilização entre responsabilidade fiscal e proteção de direitos fundamentais não é apenas possível, mas necessária. Essa compatibilização exige uma abordagem hermenêutica que reconheça a Constituição como eixo normativo e axiológico para a interpretação e implementação de políticas públicas, inclusive as de caráter fiscal.

A Teoria da Decisão e a austeridade fiscal

A tomada de decisão constitui elemento central na administração pública, sendo determinante para a formulação e execução de políticas públicas que visem à concretização do interesse público. Trata-se de um processo complexo, que abrange aspectos jurídicos, sociais, políticos e econômicos que permeiam o contexto decisório. Diversas teorias oferecem fundamentos e metodologias para compreender e aprimorar a tomada de decisão. Dentre elas, a Teoria da Racionalidade Limitada, de Herbert Simon, assume relevância ao reconhecer que os gestores públicos enfrentam limitações cognitivas, restrições de tempo e acesso parcial às informações disponíveis, o que os leva a buscar soluções satisfatórias em vez de ótimas.

Outro modelo relevante é a Teoria do Equilíbrio Pontuado, de Frank Baumgartner e Bryan Jones, que argumenta que as decisões políticas são frequentemente caracterizadas por períodos de estabilidade intercalados por mudanças abruptas. Essa teoria sugere que ajustes em políticas públicas, como a implementação de austeridade fiscal, tendem a ocorrer quando crises ou novos dados rompem com padrões estabelecidos, desencadeando mudanças estruturais em áreas específicas da administração pública.

Mais importante ainda, no caso específico do Brasil, destaca-se a Teoria da Decisão da Crítica Hermenêutica do Direito (CHD), elaborada pelo professor Lenio Streck. Essa teoria propõe um modelo de decisão ancorado na Constituição e nos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, estabelecendo limites e parâmetros objetivos que devem guiar os gestores públicos e operadores do direito na implementação de políticas públicas. A CHD enfatiza que decisões administrativas e judiciais não podem ser tomadas de forma arbitrária ou discricionária, devendo observar as seguintes perguntas fundamentais:

1. É possível decidir?

Avaliar se há base constitucional, legal e hermenêutica que permita a tomada de decisão. No caso da austeridade fiscal, isso significa assegurar que as medidas adotadas estejam em conformidade com os direitos fundamentais, como o direito à saúde, à educação e à segurança social.

2. É necessário decidir?

Identificar se a decisão é imprescindível para enfrentar o problema em questão e se alternativas menos onerosas para os direitos fundamentais foram consideradas. No caso do Decreto nº 4.723/2025 de Itatiaia, questiona-se se a redução de despesas era realmente a única solução viável para equilibrar as contas públicas.

3. É constitucionalmente adequada?

Assegurar que a decisão não viole princípios constitucionais, como a vedação ao retrocesso social e a proibição de discriminação. Essa análise requer uma visão abrangente, que inclua os impactos de longo prazo das políticas públicas na sociedade.

Além disso, a CHD apresenta alguns princípios fundantes para orientar decisões, incluindo a integridade, a coerência e a concretização dos direitos fundamentais. No contexto da austeridade fiscal, tais princípios impedem que medidas sejam tomadas sem considerar os impactos sociais e os possíveis retrocessos no bem-estar coletivo.

Portanto, a Teoria da Decisão da Crítica Hermenêutica do Direito não apenas oferece um guia normativo para decisões públicas, mas também estabelece um modelo que transcende a simples análise econômica. Ao vincular decisões administrativas à centralidade da Constituição, ela contribui para evitar abusos e assegurar que políticas públicas sejam formuladas e implementadas com vistas ao interesse público e à proteção dos direitos fundamentais.

Essa abordagem jurídica rigorosa é essencial, especialmente em cenários de crise fiscal, nos quais decisões apressadas ou mal fundamentadas podem gerar retrocessos sociais irreparáveis. Assim, medidas de austeridade fiscal devem ser tomadas com base em uma análise hermenêutica que privilegie o diálogo entre responsabilidade fiscal e justiça social, utilizando a CHD como ferramenta para alinhar a gestão pública com os valores constitucionais.

Pix, fake news e o desafio da transparência

Enquanto isso, no âmbito federal, a Receita Federal tem intensificado a fiscalização de transferências financeiras, com destaque para o sistema Pix. Criado em 2020 pelo Banco Central, o Pix revolucionou as transações financeiras no Brasil, mas também trouxe desafios relacionados à prevenção de crimes financeiros, como lavagem de dinheiro e financiamento ao crime organizado.

Novas regras exigem que informações sobre transações realizadas via Pix sejam compartilhadas com órgãos competentes, como o Coaf, para maior transparência e controle financeiro. No entanto, essas medidas suscitam preocupações quanto à proteção de direitos individuais, especialmente privacidade e liberdade econômica. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impõe limites ao uso dessas informações, exigindo que o Estado equilibre o combate a crimes financeiros com a preservação de garantias constitucionais.

Adicionalmente, a disseminação de fake news sobre uma suposta “tributação” no Pix tem polarizado o debate público, desviando a atenção das verdadeiras questões em jogo. Essa desinformação enfraquece a confiança nas instituições e distorce a análise racional das medidas fiscais e de fiscalização.

Analisando a implementação de medidas de austeridade fiscal em Itatiaia e as novas regras de fiscalização financeira envolvendo o Pix, sob a ótica da compatibilização com os direitos fundamentais resta evidente que a austeridade fiscal pode ser uma ferramenta legítima para enfrentar crises econômicas, desde que respeite os valores constitucionais e promova justiça social.

Ao mesmo tempo, o avanço da tecnologia financeira requer soluções equilibradas, que combinem eficiência na fiscalização com a proteção dos direitos dos cidadãos. Superar as narrativas polarizadas e focar em debates técnicos baseados em evidências é crucial para fortalecer o Estado Democrático de Direito e enfrentar os desafios do Brasil contemporâneo.

 

Post Scriptum: O governo federal, em um gesto que reflete a pressão da opinião pública e o impacto das fake news, recuou e decidiu revogar a instrução normativa da Receita Federal que previa o monitoramento de movimentações financeiras, incluindo transações via Pix. A decisão foi anunciada pelo secretário da Receita, Robison Barreirinhas, após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sob o argumento de conter o pânico gerado por distorções mal-intencionadas sobre o tema. Embora a revogação tenha sido acompanhada da promessa de uma medida provisória para reforçar o sigilo bancário e garantir a não taxação do Pix, o recuo evidencia a fragilidade institucional diante de narrativas falsas, colocando em xeque a capacidade do governo de sustentar medidas importantes para a fiscalização tributária e o combate à sonegação fiscal. Este parágrafo foi acrescentado ao apagar das luzes, já que o artigo estava finalizado quando a revogação foi anunciada, o que ressalta a volatilidade do cenário e a dificuldade de consolidar avanços técnicos em meio a um ambiente permeado por desinformação.

 


Referências:

Decreto n.º 4723/2025, Município de Itatiaia. Disponível em: https://avozdacidade.com/wp/tag/decreto-no-4723-25/ Acesso em: 15 jan. 2025.

STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.

BAUMGARTNER, Frank R.; JONES, Bryan D. Agendas and Instability in American Politics. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

SIMON, Herbert A. Models of Bounded Rationality: Empirically Grounded Economic Reason. Cambridge: MIT Press, 1982.

BUCHANAN, James M.; TULLOCK, Gordon. The Calculus of Consent: Logical Foundations of Constitutional Democracy. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1962.

Autores

  • é doutorando em Direito pela Unesa, bacharel em Ciências Militares (Aman) e em Direito (Unesa), mestre em Administração (UFF), professor de Direito Tributário do Toth Concursos e membro do Dasein.

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