A proibição do contingenciamento dos fundos da criança e do adolescente
18 de janeiro de 2025, 6h02
O Poder Executivo não deve realizar o contingenciamento de verbas orçamentárias do Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA), tampouco dos fundos estaduais, municipais e do Distrito Federal. No entanto, lamentavelmente, tal forma de limitação de empenho é uma realidade nos distintos entes federativos do Brasil.
A questão que precisa ser respondida é: por que o FNCA e outros fundos destinados à proteção da criança e do adolescente, que existem precisamente para cumprir uma obrigação constitucional também atribuída ao Estado, qual seja, a proteção dos direitos da criança e do adolescente, com prioridade absoluta, sofrem contingenciamentos?
Pois bem, ocorre que nem esses Fundos nem os direitos da criança e do adolescente foram contemplados pela lista de “despesas que não serão objeto de limitação de empenho, por constituírem obrigações constitucionais ou legais da União”, disponível no Anexo III da Lei Federal nº 14.791, de 29 de dezembro de 2023 [1]. Tal rol prevê 64 despesas objetos dessa proteção, como a alimentação escolar, a atenção à saúde da população e a saúde da família.
Inexiste, nesse rol, qualquer previsão de proteção aos fundos dos juvenis ou menção aos seus direitos.
Contingenciamento de recursos públicos
O contingenciamento de recursos públicos está previsto no artigo 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 [2], cujo § 2º aduz que não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente federado.
Ora, não é a proteção das crianças e dos adolescentes, com absoluta prioridade, uma obrigação constitucional e legal de todos, inclusive dos entes federados (União, Distrito Federal, Estados e Municípios)?
O artigo 227 caput da Constituição estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Já o FNCA, que é gerenciado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) [3], por força do artigo 2º, inciso X, da Lei Federal nº 8.242/1991, é classificado como um fundo especial de despesa do ponto de vista do direito financeiro, isto é, aquele que é produto de receitas específicas que, por lei, se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços [4].
Atribuições do Conanda
Cabe ao Conanda, dentre outras atribuições, elaborar anualmente o plano de aplicação dos recursos do Fundo, considerando as metas estabelecidas para o período e em conformidade com seu plano de ação [5]. Ou seja, é o Conanda que faz o gerenciamento dos recursos advindos de todas as fontes autorizadas por lei [6] para garantia do direito prioritário das crianças e adolescentes.
Conforme os incisos do artigo 10 da Resolução nº 137, de 21 de janeiro de 2010 do Conanda [7], os Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente devem ter como receitas, dentre outros, recursos públicos que lhes forem destinados, consignados no Orçamento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive mediante transferências do tipo “fundo a fundo” entre essas esferas de governo, desde que previsto na legislação específica.
Os §§ 3º e 4º do artigo 8º da Resolução nº 137, de 21 de janeiro de 2010 aduzem expressamente que a destinação dos fundos dependerá de prévia liberação plenária do Conanda, por meio de resolução ou ato administrativo equivalente, bem como que as providências administrativas necessárias para tanto observarão o princípio constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente e às normas e princípios relativos à administração dos recursos públicos.
Dito isso, fica claro que o poder executivo não deve contingenciar o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente (FNCA) e seus correlatos, pois isso compromete a implementação dos planos de ação elaborados pelo Conanda, Conselho criado pela Presidência da República justamente para administrar tais fundos e assegurar que os direitos dos juvenis sejam priorizados.
Projeto de lei e ação civil pública
Corroborando com esse posicionamento, o tema da impossibilidade de contingenciamento desses fundos já foi objeto de projeto de lei e ação civil pública.
O Projeto de Lei nº 10.640/2018, do ex-deputado federal de São Paulo, Floriano Pereira Pesaro, pretendia acrescentar o §6º ao artigo 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 [8] para dispor que “as doações destinadas aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente nacional, distrital, estaduais, ou municipais não serão objeto de contingenciamento e não constituirão recursos de reserva de contingência”[9].
Em sua justificação, o deputado ressaltou que a Constituição, juntamente com o ECA, garante a prioridade absoluta das crianças e dos adolescentes, sendo dever de todos, inclusive do poder público, zelar pela dignidade da criança e do adolescente e assegurar seu pleno desenvolvimento.
A ação civil pública mencionada, por sua vez, foi proposta pelo Ministério Público Federal em face da União para obrigá-la a descontingenciar os recursos do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente no exercício de 2019. A sentença foi favorável ao MPF, sobre a qual a União apelou, mas a sua apelação foi desprovida. Nessa oportunidade, foi confirmada a sentença que condenou a apelante, à época [10].
Dito isso, se os direitos da criança e do adolescente devem ser prioritários aos entes federados e não estão na lista de despesas que não podem ser contingenciadas, como garantir o cumprimento do texto constitucional?
Me parece que deve haver, em conjunto, um esforço de interpretação jurídico-hermenêutica por parte do Poder Executivo, quando do planejamento financeiro anual, e uma dedicação do nosso Legislativo recentemente eleito, de atenção a esse grupo constitucionalmente prioritário, o futuro.
[1] Lei Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2024
[2] Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF
[3] Art. 6º da Lei nº 8.424, de 12 de outubro de 1991: Fica instituído o Fundo Nacional para a criança e o adolescente. Parágrafo único. O fundo de que trata este artigo tem como receita: a) contribuições ao Fundo Nacional referidas no art. 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; b) recursos destinados ao Fundo Nacional, consignados no orçamento da União; c) contribuições dos governos e organismos estrangeiros e internacionais; d) o resultado de aplicações do governo e organismo estrangeiros e internacionais; e) o resultado de aplicações no mercado financeiro, observada a legislação pertinente; f) outros recursos que lhe forem destinados.
[4] Artigo 71 da Lei nº 4.320/64
[5] Art. 9º, inciso IV da Resolução nº 137, de 21 de janeiro de 2010
[6] artigo 10 da Resolução nº 137, de 21 de janeiro de 2010 do Conanda: I – recursos públicos que lhes forem destinados, consignados no Orçamento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive mediante transferências do tipo “fundo a fundo” entre essas esferas de governo, desde que previsto na legislação específica; II – doações de pessoas físicas e jurídicas, sejam elas de bens materiais, imóveis ou recursos financeiros; III – destinações de receitas dedutíveis do Imposto de Renda, com incentivos fiscais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente e demais legislações pertinentes; IV – contribuições de governos estrangeiros e de organismos internacionais multilaterais; V – o resultado de aplicações no mercado financeiro, observada a legislação pertinente; e VI – recursos provenientes de multas, concursos de prognósticos, dentre outros que lhe forem destinados.
[7] Dispõe sobre os parâmetros para a criação e o funcionamento dos Fundos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente.
[8] Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA
[9] A iniciativa do projeto objetivou a garantia de que os recursos dos Fundos viabilizassem a garantia dos direitos da criança e do adolescente, enfatizando a necessidade de uma abordagem integrada e articulada entre a família, a sociedade e o poder público, buscando alianças e parcerias, na efetivação dos direitos dos juvenis. Infelizmente, o PL foi arquivado por ausência de pareceres das Comissões de Seguridade Social e Família; Finanças e Tributação; Constituição e Justiça e de Cidadania.
[10] Obrigação de fazer, consistente no descontingenciamento e disponibilização dos recursos do FNCA programados para execução neste exercício; – Obrigação de fazer consistente em apresentar, na proposta de Lei Orçamentária anual, disposição específica no sentido de dotar, para execução, a integralidade dos recursos destinados ao Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente; – FNCA, que se subordinará, exclusivamente, aos critérios estabelecidos pela legislação de regência de tal fundo; – Obrigação de não fazer, consistente em não promover novos contingenciamentos dos recursos do FNCA, de modo que todos os valores arrecadados pelo Fundo sejam disponibilizados para aplicação; – Obrigação de fazer consistente em criar conta corrente específica para receber e manter os recursos destinados ao FNCA, na forma dos arts. 260-C e 260-G, do Estatuto da Criança e do Adolescente, ficando proibida a utilização de manobras contábeis e financeiras que, de qualquer forma, venham a permitir que tais recursos venham se confundir ou integrar com reservas financeiras da UNIÃO; e – Deferida a tutela para determinar que o descontingenciamento e disponibilização dos recursos se dê no prazo de 15 dias, contados da intimação da sentença.
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