A mudança de perspectiva dos efeitos da nulidade no direito administrativo e a nova Lei de Licitações
18 de janeiro de 2025, 15h18
O reconhecimento de nulidades no âmbito do Direito Administrativo tem sofrido grande mudança de tratamento ao longo do tempo, caminhando para a estabilização dos efeitos dos atos praticados, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, privilegiando a execução de políticas públicas e a não paralisação de contratos em detrimento do interesse público.
A Lei 8.666/1993 e o tratamento da nulidade
A Lei 8.666/1993 tratava da matéria de nulidade de maneira bastante rigorosa, estabelecendo que a prática de determinados vícios ensejava a nulidade de atos e contratos celebrados.
No artigo 7º, §6º, estabelecia-se que a infringência do disposto no artigo 7º ensejava a nulidade dos atos ou contratos. Não havia na lei ponderação quanto à razoabilidade de manter os atos praticados em casos de ilegalidade.
Graves eram as disposições e consequências da nulidade do procedimento licitatório. O artigo 49, §2º, estabelecia que a nulidade do procedimento licitatório induzia à do contrato. Já o artigo 59 estabelecia que a declaração de nulidade do contrato operaria retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos. A preservação de efeitos consistia (artigo 59) no dever de indenizar o contratado pelos serviços executados e por outros prejuízos comprovados.
Tal nulidade retroativa como regra geral poderia representar medida contrária ao interesse público. A norma privilegiava exclusivamente o princípio da legalidade, sem levar em conta outros fatores como a segurança jurídica, a razoabilidade e o interesse público na execução dos contratos e da política pública.
Os questionamentos a licitações na esfera judicial ou no controle externo normalmente não são de rápida solução, sendo o julgamento realizado muitas vezes após longo tempo. Em alguns casos, o contrato pode ter sido firmado e parcela relevante da obra já ter sido executada.
A nulidade da licitação e do contrato, muitas vezes, não representava medida que satisfaria o interesse público. Imaginemos uma obra em execução, e sobrevém decisão de nulidade do contrato. Haveria a sua paralisação, com prejuízos à coletividade, que não teria a entrega da obra no prazo devido. Além disso, seria necessária nova contratação, o que acarretaria mais prazo, bem como custos de mobilização e desmobilização.
Ademais, haveria consequências acerca da responsabilidade para a garantia da obra, tendo em vista que nova empresa assumiria a execução, o que poderia ensejar discussões acerca de responsabilidade por eventuais defeitos.
Em tal contexto, houve a proliferação de obras inacabadas e não concluídas pelo poder público, por decisões que suspendiam contratos ou por declaração de nulidades de contratos, que somados a outros fatores, contribuíram para elevado número de obras paradas.
Da Lei 9.784/1999
A Lei 9.784, lei do processo administrativo federal, configurou importante marco na evolução da matéria. No seu artigo 55, tratou da possibilidade de convalidação de atos administrativos.
Na lei fixou-se que esta somente seria permitida para os casos de atos praticados com defeitos sanáveis e desde que não houvesse lesão ao interesse público e nem prejuízo a terceiros. Assim, os defeitos insanáveis não admitiriam convalidação, nem se a manutenção do ato fosse mais benéfica ao interesse público que a declaração de nulidade.
Além disso, não se analisava se a nulidade acarretaria lesão ao interesse público e sim se a convalidação acarretaria lesão ao interesse público. Ou seja, para convalidar era necessário demonstrar o interesse público na convalidação.
A doutrina considera vícios sanáveis os relativos à competência e à forma, pois poderiam ser praticados novamente corrigindo-se o ato. Já os vícios referentes à finalidade, motivo e objeto não comportariam convalidação.
Decorre a convalidação e não declaração de nulidade, da aplicação do princípio pas de nullité sans grief, não se declarando nulidade sem que seja comprovada a existência de prejuízo.
As alterações na Lindb
Considerando a insuficiência da convalidação e visando maior segurança jurídica ao gestor público, bem como privilegiar o princípio da realidade e a preservação das políticas públicas, houve a edição de alterações na Lindb (Lei de introdução às normas do direito brasileiro), que mudaram substancialmente o tratamento legal das nulidades no âmbito do direito administrativo.
A citada norma estabeleceu uma série de precauções e salvaguardas para a invalidação de atos. Por exemplo, o artigo 20 estabelece a necessidade de não se decidir com base em valores jurídicos abstratos, exigindo que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Já o parágrafo único do artigo 20 estabelece exigências para a motivação de invalidação de atos, como a demonstração da necessidade e adequação. Em tal contexto, no direito administrativo deve-se avaliar a necessidade de eventual medida de invalidação do ato, ponderando se aquela medida é a que melhor satisfaz o interesse público, em face das possíveis alternativas, a exemplo da glosa de valores indevidos, mas preservando-se o contrato.
Ademais, o artigo 22, parágrafo 1º, estabelece que, na análise da regularidade, deve-se considerar as dificuldades reais e as circunstâncias práticas do caso. Em tal contexto, pode o administrador demonstrar que não havia outra conduta a ser adotada para melhor satisfazer o interesse público, mesmo não cumprindo integralmente procedimentos formais.
A Lindb também estabelece a necessidade, no caso de imposição de novo dever, de regime de transição para que o novo dever seja cumprido de forma proporcional.
Também foram preservados atos cuja produção de efeitos já se completou, não cabendo a declaração de nulidade com base em mudança de interpretação. Neste caso, deve-se considerar as orientações existentes à época (artigo 24).
Da Nova Lei de Licitações e a declaração de nulidade de contratos
A Lei 14.133/2021 avançando na linha estabelecida pela Lindb inovou ao tratar do regime da nulidade dos contratos administrativos.
Antes da sua edição, constatou-se que, em algumas hipóteses de vícios insanáveis, o interesse público seria melhor atendido com a estabilização dos efeitos do ato realizado, não sendo recomendável a declaração de nulidade do ato. Cite-se como exemplo a identificação de irregularidade formal na licitação identificada quando o contrato já estava em fase final de execução da obra. A declaração de nulidade da licitação poderia acarretar mais prejuízos à coletividade que a sua continuidade e estabilização do ato praticado.
Cabe destacar que a 14.133/2021 estabelece novo parâmetro da análise da necessidade de declaração de nulidade de contratos, pois realiza a inversão da lógica anterior de nulidade, cabendo a declaração da nulidade apenas quando tal medida se mostrar realizadora de interesse público. Ou seja, é a hipótese de declaração de nulidade do contrato que deve comprovar que tal medida satisfaz interesse público, privilegiando-se de forma geral a continuidade dos contratos e das relações estabelecidas, conforme consta no artigo 147.
De acordo com a Lei, para a decretação da nulidade, primeiramente é necessário verificar se a irregularidade pode ser objeto de saneamento.
Em seguida, deve-se realizar prévia análise se a declaração de nulidade é medida de interesse público. Tal análise deve considerar aspectos ambientais e sociais na paralisação da obra, deterioração das parcelas já executadas, custos para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato, impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato, dentre outras relevantes questões.
Destacamos que antes a convalidação somente seria realizada caso não ferisse o interesse público. Agora, a decretação de nulidade de contratos somente pode ser decretada se houver prévia análise do interesse público na anulação. Caso a nulidade não se revele medida de interesse público, a paralisação ou nulidade do contrato não poderá ser adotada.
Caso constate-se que a nulidade seja a medida mais adequada a atender o interesse público, aí sim esta operará retroativamente, preservando-se o direito à indenização por perdas e danos (artigo 148, §1º e artigo 149).
Interessante regra é a possibilidade de que a declaração de nulidade só tenha eficácia em momento futuro (artigo 148). Tal regra revela-se importante para que o contrato seja preservado e que haja tempo para a realização de nova contratação, sem paralisação das atividades e prejuízos à coletividade.
Assim, constata-se que a Lei 14.133/2021 representou grande mudança na lógica da declaração de nulidade de contratos administrativos fornecendo arcabouço normativo robusto para a preservação dos contratos do poder público ao exigir análise de que a declaração de nulidade é medida de interesse público, cabendo ser levado aos julgadores e instâncias decisórias os impactos, riscos e prejuízos que a declaração de nulidade pode causar com o fim de preservar a execução dos contratos e a efetividade das políticas públicas, evitando-se a proliferação de contratos suspensos e obras paralisadas.
Referências
CAMINHA DE ALBUQUERQUE, Caio Felipe. Regime de nulidades na Lei de Licitações. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-abr-16/caio-albuquerque-regime-nulidades-lei-licitacoes/#:~:text=Com%20efeito%2C%20o%20artigo%20147,licitat%C3%B3rio%20ou%20na%20execu%C3%A7%C3%A3o%20contratual.
FERRAZ, Luciano. Nulidades na nova Lei de Licitações: antes nunc do que tunc. 2021. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-nov-11/interesse-publico-nulidades-lei-licitacoes-antes-nunc-tunc/ .
TEIXERA JÚNIOR, Flavio Germano de Sena; NÓBREGA, Marcos. A TEORIA DAS INVALIDADES NA NOVA LEI DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS E O EQUILÍBRIO DOS INTERESSES ENVOLVIDOS. 2021. Disponível em https://ronnycharles.com.br/wp-content/uploads/2021/07/ARTIGO-A-TEORIA-DAS-INVALIDADES-NA-NOVA-LEI-DE-CONTRATAC%CC%A7O%CC%83ES-PU%CC%81BLICAS-E-O-EQUILI%CC%81BRIO-DOS-INTERESSES-ENVOLVIDOS-1.pdf
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