Opinião

Velório virtual: a profanação dos rituais de passagem

Autores

17 de janeiro de 2025, 17h12

Boa tarde. Providenciaremos na modalidade virtual a participação do preso no velório. Amanhã de manhã enviaremos o link e agendaremos um horário para que um dos familiares possa acessar e estabelecer a conexão. Atenciosamente, T.U. CDP de Ribeirão Preto (sic).”

O e-mail recebido por uma colega advogada pode ser lido — sem muito esforço — como verdadeira profanação. J.C.V., preso preventivamente, não pode se despedir de sua falecida mãe. Ainda que seja absolvido no processo-crime a que responde, J.C.V. já foi condenado a uma pena que lhe acompanhará para sempre: não dar o último adeus a quem lhe deu a própria vida.

Mesmo depois de um investimento de R$ 50 milhões e aquisição de 191 novas viaturas, anunciados pela Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo em abril de 2023 [1], os presos do estado mais rico da federação não podem ir ao funeral de seus entes queridos. Até porque agora existe a “modalidade online” de velório — mais seguro e econômico, dirão alguns. E pouco importa que a Lei de Execuções Penais seja expressa ao prever a permissão de “saída” em caso de falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descente ou irmão (artigo 120, I, LEP).

Mas por que se indignar? Afinal, basta “enviar o link” para “estabelecer a conexão. Não está escrito, mas está dito: substituímos a transcendental conexão humana pela efêmera conexão online. A profanação desse nosso “admirável mundo novo” se espalha em velocidade 5G. Como chegamos até aqui? A solução encontrada pelo CDP de Ribeirão Preto não se deu no vácuo. Os sinais (virtuais) estavam aí…

Tudo virou virtual

Começamos com as sustentações orais em plenário virtual, assíncronas e sem garantia de que algum julgador, de fato, ouvirá o discurso. Depois passamos a admitir as audiências de custódia por videoconferência. Instrução processual? Raras são aquelas que se realizam no fórum, pois, afinal, não há escolta suficiente e é mais seguro e econômico que o preso seja interrogado pelo magistrado por videoconferência. Sem contato físico. Sem cheiro. Ascético.

E chegamos ao velório virtual. Estamos reduzindo a experiência de despedida a uma videochamada, mediada por uma câmera, um microfone e um computador. Não há abraço. Não há a catarse coletiva e familiar em torno da memória da pessoa morta. Não há lágrimas compartilhadas no calor do luto coletivo. O corpo do falecido é convertido em pixels e o pranto é silenciado pelo botão de mudo.

Spacca

Essa desumanização não é um acidente, mas sim um projeto. É o mesmo projeto que transforma presos em números de matrícula e não em pessoas. Que converte processos criminais em estatísticas de controle e não em histórias reais vividas por gente de carne e osso. Que permite que uma sustentação oral no tribunal seja reduzida a um “upload. Que desmantela a experiência do sagrado em nome da conveniência.

O que há em comum entre julgamentos criminais virtuais e velórios online? A profanação da sacralidade dos ritos. Julgamentos, funerais, batismos, casamentos e diversas outras cerimônias ou práticas culturais são ritos de passagem que marcam uma transição significativa na vida de um indivíduo em uma comunidade. Nas palavras da professora Ana Lúcia Pastore, “os ritos de passagem marcam o desenvolvimento social do indivíduo sendo os mais comuns, em todas as sociedades, os de nascimento, puberdade, casamento e morte. Neles, vestimentas, comida e comportamento costumam ser especiais. Antes de mais nada, um julgamento pelo Júri, e mesmo outros tipos de julgamento criminal, representam marcas no desenvolvimento social do acusado” [2]. Essas cerimônias cumprem a função de estabelecer fronteiras entre o antes e o depois, permitindo que a comunidade e o indivíduo reconheçam, compartilhem e processem as transições da vida.

Momentos de conexão viram burocráticos

Não por acaso, os rituais de passagem guardam uma sacralidade inerente à importância da transmutação social que ali ocorre para os indivíduos envolvidos. Quando virtualizamos essas experiências, fragmentamos esse significado, transformando momentos de profunda conexão e memória em atos burocráticos e superficiais.

Há quase 2.500 anos, Sófocles, por meio da tragédia de Antígona, nos ensinava sobre a sacralidade do velório e do cuidado com os mortos, mostrando o conflito entre as leis divinas, defendidas por Antígona para enterrar seu irmão Polinices, e as leis humanas, representadas pela ordem de Creonte de deixar o corpo insepulto como punição pela rebeldia do morto. Creonte, na sua inflexibilidade autoritária, acreditava que a ordem social podia se sobrepor ao luto familiar e ao sagrado. O resultado? A ruína. A tragédia. E parece que nós, tão “modernos”, tão “tecnológicos”, nada aprendemos.

À luz da nossa tradição helênica, do direito positivo e da cultura que nos constitui, o velório virtual de entes de pessoas presas é — sem hesitação — sacrilégio. É sintoma de uma sociedade adoecida que, na pressa de “avançar” tecnologicamente, profana aquilo que lhe é sagrado e retrocede em humanismo. Uma sociedade que não respeita seus mortos dá as mãos ao arbítrio de Creonte. E é nessa hora que devemos voltar à tragédia escrita por Sófocles para nos unirmos à resistência de Antígona.

 


[1] https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2023/04/17/policiais-penais-assumem-escolta-de-presos-no-interior-de-sp-e-baixada-santista-e-pms-sao-devolvidos-ao-patrulhamento.ghtml

[2] SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Controlando o poder de matar: uma leitura antropológica do Tribunal do Júri – ritual lúdico e teatralizado. Tese de doutoramento. FFLCH-USP, 2001, p. 102.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!