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Duas crianças 'mortas', dois 'erros judiciários', 'só que não'

Autores

  • é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

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  • é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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17 de janeiro de 2025, 10h19

1. Manchete: a notícia

 

CASO SALLY CLARK [1]
MANCHETE:

“Tragédia inimaginável! Maldição assombra família após segunda morte súbita de Filho! Dois jovens. Duas mortes inexplicáveis ou crimes? Uma família destruída.

Duas crianças indefesas. Duas mortes inexplicáveis. Uma família devastada. Em Cheshire, Inglaterra, uma mãe de 36 anos, Sally Clark, perdeu seus dois filhos. Christopher, seu primeiro filho, faleceu em dormindo às 11 semanas de idade, com a morte sendo considerada de causas naturais, sem sinais de negligência.

No entanto, 18 meses depois, seu segundo filho, Harry, também morreu de forma súbita às 8 semanas. Ambas as crianças aparentemente saudáveis foram vítimas de morte súbita, levantando dúvidas sobre a mãe. “É impossível, duas vezes, na mesma família!“, declarou um “especialista”. “Algo de errado não está certo”.

A acusação contra Sally resultou em sua prisão quatro semanas após a morte de Harry, com a acusação de assassinato, influenciada pela declaração do pediatra Roy Meadow de que que a “probabilidade” de duas mortes por “morte súbita” (natural) na mesma família era de “1 em 73 milhões”.

Sally foi condenada à prisão perpétua (duas vezes).

O júri condenou a partir da “Falácia do Promotor”, consistente em “confundir a probabilidade de um evento raro acontecer com a probabilidade de a acusada ser inocente”.

2. Realidade

A triste realidade por trás da tragédia: aleatoriedade e coincidência, por mais “inacreditáveis” que pareçam, existem.

Embora a morte súbita em famílias seja rara, a realidade é que ela pode ocorrer mais de uma vez. O sensacionalismo em torno do caso de Sally demonstra como a “intuição popular”, muitas vezes baseada em ditados como “relâmpago não cai duas vezes no mesmo lugar”, pode levar a conclusões precipitadas, irracionais e injustas.

Do ponto de vista “estatístico”, a ocorrência de dois eventos raros em sequência é mais comum do que se imagina. Fatores genéticos e desconhecidos podem contribuir para a suscetibilidade a mortes súbitas na mesma família (no caso havia bactérias potencialmente letais nos laudos cadavéricos que foram omitidas à defesa).

3. Cronologia

Ano Evento Cronologia do caso Sally Clark: descrição e notas
1996 Morte de Christopher O primeiro filho do casal Clark, Christopher, morreu com 11 semanas de idade durante o sono. O óbito é considerado pelos médicos como “morte natural”, com evidências de uma infecção respiratória e sem indícios de negligência.
1997 Morte de Harry O segundo filho do casal, Harry, morreu com 8 semanas de idade. Após a morte, a simpatia inicial dos profissionais desaparece e o casal é preso quatro semanas depois.
1999 Julgamento de Sally Clark Sally Clark é julgada e condenada por assassinar seus dois filhos. A acusação baseia-se na declaração do pediatra Sir Roy Meadow[2], consistente na afirmação de que a chance de duas mortes em berço na mesma família era de 1 em 73 milhões. No entanto, a inferência estatística estava errada e foi suficiente para convencer os jurados.
2003 Apelo e Liberação O apelo de Sally Clark é bem-sucedido e ela é libertada. A análise holística das evidências (ou a falta delas) demonstrou que a condenação se baseou em erros na interpretação de estatísticas relevantes e na ausência de provas suficientes (beyond reasonable doubt), incidindo a “falácia do promotor”. Configurou “erro judiciário”.
2007 Morte de Sally Sally Clark morreu em 16/03/2007 devido a intoxicação alcoólica.

 

4. Erro judiciário

Um erro judiciário ocorre quando uma pessoa sofre consequência em face uma acusação não confirmada por decisão favorável. Entretanto, no Brasil, a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, desde o Ag.Rg. RE 752.938, ministra Rosa Weber, julgado em 10/9/2013, esvaziou o “âmbito de incidência” do “erro judiciário”, ao declarar:

“A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal consolidou-se no sentido de que, salvo nos casos objeto do art. 5º, LXXV, da Constituição Federal – erro judiciário e prisão além do tempo fixado na sentença –, e daqueles expressamente previstos em lei, a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos judiciais”.

Em consequência, consideram-se meros “efeitos colaterais” as situações em que “investigados ou acusados” submetem-se à prisão cautelar e, depois, são absolvidos ou sequer denunciados:

Responsabilidade civil do Estado. Prisão cautelar determinada no curso de regular inquérito policial. Não indiciamento do investigado. Danos morais. Dever de indenizar. Descabimento. Fatos e provas. Reexame. Impossibilidade. […] 2. O Tribunal de Justiça concluiu, com base nos fatos e nas provas dos autos, que não foram demonstrados, na origem, os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade extracontratual do Estado, haja vista que a prisão preventiva a que foi submetido o ora agravante foi regular e se justificou pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, não caracterizando erro judiciário posterior não indiciamento do investigado. Incidência da Súmula nº 279/STF. 3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que, salvo nas hipóteses de erro judiciário, de prisão além do tempo fixado na sentença – previstas no art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal -, bem como nos casos previstos em lei, a regra é a de que o art. 37, § 6º, da Constituição não se aplica aos atos jurisdicionais quando emanados de forma regular e para o fiel cumprimento do ordenamento jurídico”. [STF, ARE 939.966 AgR, ministro Dias Toffoli, 2ª T, j. 15/3/2016]

Eis o estado da arte. Mas nos “direitos patrimoniais”, no entanto, o tratamento é outro.

5. Responsabilidade pela tutela de urgência: CPC, artigo 302

Mantendo a diretriz do CPC de 1973, o de 2015, de modo claro e direto, estabeleceu:

“Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:

“I – a sentença lhe for desfavorável”;

Se o Estado é inerte e a parte autora promove ação, obtendo “tutela de urgência” (CPC, artigo 300), mas a decisão final é desfavorável, então a responsabilidade civil é objetiva, bastando que a parte ré comprove a “relação de causalidade” entre o “efeito da tutela de urgência” com os “danos” ou “prejuízos” experimentados. Logo, no ambiente patrimonial, a responsabilidade é ampla, obrigando o autor a recompor o “status quo ante”.

De modo comparativo, no Direito Penal a “liberdade” é rebaixada, em geral, a “mero dissabor”. Alexandre e Luiz Eduardo Cani, no Guia para Mitigação dos Erros Judiciários (Florianópolis: EMais, 2022, p. 153-154), destacam:

 

“Embora a discussão sobre os erros judiciários tenha surgido, ao menos entre os juristas, no contexto das reivindicações indenizatórias, […] em geral pelo “enquadramento” equivocado das premissas do domínio. Isso se deve, preponderantemente, ao já muito antigo entendimento de que o erro judiciário incide tão só no resultado do processo, ou seja, na condenação ou absolvição. Ou, com maior exatidão: de que erro judiciário é a condenação de um inocente ou a absolvição de um culpado. Despreza-se no campo penal, ao contrário do cível (em que as tutelas deferidas em favor do autor implicam a responsabilidade pelos danos ocasionados), a efetiva restrição de direitos subjetivos em face do percurso das agências de controle estatal. É que a simples instauração de Inquérito Policial ou Termo Circunstanciado gera efeitos nefastos na vida pública do agente”

“No tocante ao dano decorrente do tempo de vida desperdiçado, a teoria do desvio produtivo do consumidor (Marcos Dessaune) constitui parâmetro relevante e útil – inclusive já vem sendo aplicada noutras áreas, como no direito do trabalho. Tendo em vista que o Brasil optou expressamente na Constituição pelo sistema econômico capitalista (art. 170, II e IV), uma das consequências imediatas é a de que o dinheiro é imprescindível à sobrevivência. Então, se o tempo de prisão não for considerado como modalidade de dano indenizável, não há como negar, por outro lado, que durante o tempo em que alguém fica à disposição do juízo, mormente quando em prisão cautelar, deixa de obter condições para a própria sobrevivência, de galgar posições no mercado de trabalho, de aproveitar oportunidades de negócios e inúmeras outras atividades com potencialidades econômicas que não podem ser medidas ou, ainda, de perder o emprego/ocupação diante da ruptura da dinâmica do trabalho por ato que ao final se mostrou injustificado. Esse é o dano. O valor da indenização deve ser arbitrado como forma de compensação, porque em casos de condenações indevidas e de prisões indevidas não há nada que possa “reparar” o tempo de vida perdido. Resta apenas fixar algum valor para compensar.”

6. Manchete: Mulher envenena duas crianças com veneno de rato

CASO SALLY CLARK [3]
MANCHETE:

Suspeita de dar caju envenenado para crianças é indiciada por homicídio e motivo torpe (aqui)

“A Polícia Civil de Parnaíba concluiu, após 45 dias, o inquérito que investigava o envenenamento de duas crianças em Parnaíba, no litoral do Piauí, no dia 22 de agosto […] A investigação concluiu que a vizinha deles, Lucélia Maria da Conceição Silva, foi realmente a autora do crime e a indiciou por homicídio qualificado e tentativa de homicídio, além da qualificadora de motivo torpe.

“As investigações apontaram que a suspeita teria envenenado cajus após as crianças subirem no muro da casa dela para pegar frutos em uma árvore. A ação dela seria uma retaliação à ação das crianças, contra quem já havia feito ameaças.

“O delegado regional de Parnaíba […], disse à TV Cidade Verde que os laudos feitos pelo Instituto de Criminalística confirmaram que o veneno encontrado no corpo da criança, onde foi feita a necrópsia, foi o mesmo que foi encontrado na casa da suspeita do crime. Ela está presa desde o dia 23 de agosto, um dia após o crime, após serem encontrados os indícios do crime na casa dela”.

Depois de mais de quatro meses presa, sob ameaça de morte constante, casa incendiada, Lucélia Maria da Conceição Silva foi solta:

“A Justiça do Piauí soltou nesta semana Lucélia Maria da Conceição Silva, de 52 anos, que estava presa desde agosto do ano passado, após ter sido acusada de envenenar os irmãos Ulisses e João Miguel Silva, de 8 e 7 anos, respectivamente, em Parnaíba, no litoral do estado. A informação foi confirmada pelo Ministério Público.

“A decisão foi tomada após a divulgação de um laudo do Instituto de Medicina Legal (IML), que, cinco meses após as mortes, descartou a presença de veneno nos cajus que Lucélia teria oferecido às crianças. Os meninos, filhos de Francisca Maria, faleceram em agosto de 2024, após ingerirem os cajus, o que inicialmente levou a polícia a acreditar que a acusada fosse a responsável pelo envenenamento” (aqui).

A injustiça, a privação da liberdade, os dados e prejuízos, a prevalecer a posição majoritária, estão fora do “erro judiciário”.

7. Sally e Lucélia: erros judiciários lógicos

O pano de fundo e a linha que envolve: (1) a prevalência do “Processo Penal do Espetáculo”, na feliz construção de Rubens Casara (CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015), a partir de Guy Debord; (2) erro lógico quanto à inferência de que “dado” que Lucélia tinha o “veneno em casa”, havia suficiência causal.

Spacca
Alexandre Morais da Rosa com tarja

 

A condenação de Sally Clark e a prisão de Lucélia Silva demonstram o uso inadequado de estatísticas em julgamentos, suscitando questões sobre a importância de padrões científicos, a integridade e o uso adequado de argumentos estatísticos em casos penais, além da exigência quanto às “competências” técnicas dos agentes processuais que, no caso, “deram causa à restrição da liberdade” (ato ilícito porque desprovido de causa válida, ainda que “lotados” de “boas intenções”).

Mantido o atual posicionamento quanto ao “erro judiciário”, tendo em vista que a prisão cautelar tinha fundamento, mesmo tendo sido vítima de um erro estatístico primário, causa do pedido e da decretação da prisão cautelar, Lucélia Maria da Conceição Silva nenhuma indenização receberá.

Enquanto isso, a Inglaterra reconheceu o “erro judiciário” no caso de Sally Clark, ainda que jamais possa recompor o “status quo ante”, mas pode “dar um salto para o futuro”, com reformas técnicas e formação qualificada, evitando a reiteração de erros colegiais de agentes públicos.

O julgamento estatal deve se apoiar em provas válidas, com suporte científico e raciocínio lógico, porque a busca por justiça e verdade assume o dever de conformidade democrática. Do contrário, prevalecem critérios irracionais e incontroláveis, com final, em geral, “trágico” e, no Brasil, “não indenizável”, porque o Estado é “irresponsável” pela “prisão cautelar de uma inocente”. Todo cuidado é pouco.

 


[1] Fontes: https://www.lawteacher.net/free-law-essays/criminal-law/miscarriage-of-justice-case-sally-clark.php; a https://evidencebasedjustice.exeter.ac.uk/case/sally-clarke/

[2] A reputação e a credibilidade do médico Roy Meadow foram afetadas após a anulação da condenação de Sally Clark por ter emitido afirmação maliciosa, desprovida de sustentação teórica, além de desconsiderar evidências que apontavam para presença de bactérias potencialmente tóxicas nas crianças.

[3] Fontes: https://www.lawteacher.net/free-law-essays/criminal-law/miscarriage-of-justice-case-sally-clark.php; a https://evidencebasedjustice.exeter.ac.uk/case/sally-clarke/

 

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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