TJ-SP e a Lei do Superendividamento: decisão inovadora ou precedente perigoso?
16 de janeiro de 2025, 17h15
Em 13 de janeiro de 2025, a 12ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) proferiu um importante acórdão (Apelação Cível nº 1049299-44.2023.8.26.0576), que reforça a complexidade e os desafios na aplicação da Lei nº 14.181/2021 (Lei do Superendividamento).
Trata-se de um julgado emblemático, não apenas pela análise minuciosa da concessão irresponsável de crédito, mas também por ilustrar lacunas interpretativas que ainda permeiam o tratamento jurídico do superendividamento no Brasil, mesmo após mais de três anos de vigência da lei.
O julgamento tratou de uma consumidora que contraiu oito empréstimos com a mesma instituição financeira, sendo sete deles em um intervalo de apenas 18 meses. O valor acumulado das dívidas ultrapassou R$ 240 mil, comprometendo integralmente sua renda. Reconhecendo a concessão irresponsável de crédito, o acórdão aplicou os preceitos da Lei nº 14.181/2021, excluindo juros e encargos abusivos, além de considerar as parcelas já efetivamente pagas. Após esses ajustes, a dívida remanescente ficou pouco acima de R$ 180 mil.
Para facilitar o pagamento, o plano compulsório foi estruturado em 180 parcelas mensais fixas de R$ 1.000, com uma última parcela destinada à quitação do saldo remanescente da dívida. Ao final, tanto a consumidora quanto a instituição financeira foram condenadas ao pagamento de honorários advocatícios fixados em R$ 1.000 para cada parte, sob o entendimento de sucumbência recíproca e com base na apreciação equitativa.
A singularidade deste acórdão reside não apenas no reconhecimento das práticas abusivas pelo fornecedor, mas também na tentativa de adaptação das disposições legais às circunstâncias do caso concreto.
Contudo, algumas interpretações levantam questões sobre o equilíbrio necessário entre a proteção ao consumidor e a previsibilidade jurídica. Ao fazer isso, o julgamento se torna um exemplo prático da dificuldade de harmonizar os princípios da Lei do Superendividamento com a realidade econômica e social, especialmente em um cenário de massificação do crédito.
Nos tópicos a seguir, analisaremos os principais aspectos do julgamento, destacando avanços, limitações e possíveis repercussões jurídicas.
Reconhecimento da concessão irresponsável de crédito
Um dos aspectos centrais do julgado foi o reconhecimento da concessão irresponsável de crédito pela instituição financeira. A consumidora contraiu oito empréstimos com o mesmo banco, sendo sete deles em um curto intervalo de 18 meses, totalizando mais de R$ 240 mil, em evidente descompasso com sua capacidade financeira.
A decisão corretamente apontou a violação dos artigos 52, 54-C e 54-D do CDC, que estabelecem, entre outros, o dever de avaliação responsável do crédito, a transparência contratual e o aconselhamento adequado ao consumidor.
O banco ignorou sinais claros de vulnerabilidade financeira e agravamento do estado de saúde da consumidora, diagnosticada com depressão. Essa conduta desrespeitou os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, agravando o superendividamento.
A aplicação do artigo 54-D, parágrafo único, para excluir juros e encargos abusivos, deixando apenas o principal da dívida, foi uma medida acertada para reequilibrar a relação contratual. No entanto, a decisão não reconheceu danos morais, que seriam cabíveis, dada a gravidade da conduta do fornecedor e seu impacto emocional na consumidora.
Embora a exclusão dos encargos tenha limitado o impacto financeiro, a ausência de sanções mais severas, como multas administrativas ou indenização, deixou a instituição financeira praticamente ilesa. Dada a gravidade do caso, o envio dos autos ao Procon para análise de penalidades seria essencial para reforçar o caráter pedagógico da decisão e dissuadir práticas semelhantes.
Prazo do plano de pagamento: uma interpretação perigosa
A decisão de fixar um plano de pagamento de 180 meses (15 anos), em desacordo com o limite de cinco anos previsto na Lei do Superendividamento, traz implicações preocupantes. O desembargador relator justificou o prazo prolongado como uma tentativa de viabilizar o pagamento da dívida e evitar um novo ciclo de inadimplência, especialmente diante da fragilidade financeira da consumidora. Contudo, essa interpretação, embora bem-intencionada, não está alinhada com os objetivos da legislação, que busca equilibrar a recuperação do consumidor e a segurança do sistema de crédito.
A escolha do limite de cinco anos pela Lei nº 14.181/2021 não foi arbitrária. Inspirada em experiências internacionais, como a legislação francesa, a norma objetiva evitar que o consumidor fique preso a dívidas por períodos excessivamente longos, o que comprometeria sua recuperação financeira e perpetuaria sua condição de vulnerabilidade. Na França, por exemplo, mesmo os casos excepcionais têm prazos máximos de sete anos, considerando o risco de inadimplência crescente em planos muito extensos.
Além disso, a flexibilização do prazo fragiliza a uniformidade do sistema e cria precedentes para decisões arbitrárias por parte de magistrados, permitindo interpretações que se afastem dos parâmetros estabelecidos pela lei. Essa prática compromete a segurança jurídica e pode desestimular o comportamento responsável de credores, que continuam a conceder crédito sem avaliar adequadamente a capacidade de pagamento do consumidor.
Outro ponto crítico é que a extensão para 15 anos beneficia desproporcionalmente a instituição financeira, que, mesmo após condutas irresponsáveis na concessão de crédito, permanece apta a receber o valor principal da dívida em condições extremamente favoráveis. Ao fixar o prazo de 5 anos, a lei busca não apenas equilibrar os interesses das partes, mas também impor consequências a práticas abusivas, promovendo um crédito mais responsável e em consonância com os princípios da boa-fé e da função social do contrato.
Portanto, ainda que o intuito tenha sido assegurar a viabilidade do pagamento, a flexibilização do prazo desvirtua os objetivos da Lei do Superendividamento e enfraquece sua aplicação como ferramenta de proteção e recuperação do consumidor vulnerável. Respeitar o limite legal é essencial para garantir a uniformidade, a segurança jurídica e a eficácia do sistema.
Proibição de novas dívidas: um passo louvável
A decisão do Desembargador relator de condicionar os efeitos do plano de pagamento à proibição de novas dívidas, salvo mediante autorização judicial, representa uma postura ativa e louvável na aplicação da Lei do Superendividamento.
Essa determinação incluiu, ainda, o envio de ofício ao sistema financeiro para garantir que a consumidora não tivesse acesso irrestrito a novos créditos durante a vigência do plano, evitando assim o agravamento de sua condição financeira. A medida não apenas protege a consumidora de sua própria vulnerabilidade, mas também reforça a responsabilidade do sistema de crédito em evitar práticas predatórias.
Essa proibição é coerente com os princípios da lei, que busca não apenas resolver situações de superendividamento, mas também prevenir sua reincidência. Ao limitar o acesso a novos empréstimos, a decisão atua de forma preventiva e educativa, assegurando que o consumidor compreenda a importância de gerenciar sua vida financeira dentro de limites sustentáveis.
Além disso, ao envolver o sistema financeiro, o Judiciário amplia o alcance da medida, promovendo maior adesão e fiscalização por parte das instituições financeiras, que têm o dever de atuar de acordo com os princípios de transparência e crédito responsável previstos no CDC.
Por fim, a proibição de novas dívidas reforça a lógica da repactuação como uma oportunidade única de reorganização financeira, garantindo que o consumidor não volte a uma situação de vulnerabilidade ainda maior.
Honorários advocatícios: uma valorização necessária
A fixação de honorários advocatícios em apenas R$ 1.000 no caso em análise desconsidera a importância do papel desempenhado pelos advogados na defesa de consumidores superendividados.
Além disso, a decisão equivocadamente aplicou o princípio da sucumbência recíproca, quando, na realidade, o núcleo da demanda foi amplamente favorável à consumidora. O reconhecimento da concessão irresponsável de crédito pelo banco e a imposição de um plano compulsório de pagamento são elementos que indicam a procedência substancial do pedido da autora, afastando a caracterização de sucumbência recíproca.
O procedimento de repactuação compulsória de dívidas é complexo e visa proteger consumidores vulneráveis, exigindo dos advogados não apenas conhecimento técnico aprofundado, mas também dedicação significativa em casos que frequentemente envolvem grande volume de documentos e cálculos detalhados.
Nesse contexto, honorários tão baixos não refletem adequadamente a relevância social e jurídica desse trabalho. A condenação dos credores ao pagamento de honorários proporcionais ao benefício econômico alcançado pelo plano compulsório seria mais justa, além de reconhecer o esforço dos profissionais na defesa dos direitos do consumidor.
Essa medida também teria um efeito pedagógico essencial, incentivando os credores a adotar posturas mais colaborativas durante as negociações, conforme exigido pela lei. A resistência infundada por parte das instituições financeiras viola os princípios da boa-fé objetiva e da cooperação, sobrecarregando o Judiciário ao exigir sua intervenção para solucionar conflitos que poderiam ser resolvidos consensualmente.
Quando os credores negligenciam suas obrigações de negociação responsável, a condenação em honorários mais significativos reforça a ideia de que práticas abusivas terão consequências concretas.
Portanto, além de garantir uma remuneração condizente para os advogados, a fixação de honorários proporcionais ao benefício econômico promove a efetividade do sistema protetivo do consumidor e reconhece a importância da atuação advocatícia como pilar essencial da justiça social.
O entendimento adotado no acórdão, ao tratar o caso como de sucumbência recíproca, enfraquece a valorização do papel dos advogados e a proteção ao consumidor, desconsiderando o impacto positivo da atuação jurídica em processos dessa natureza.
Conclusão
O acórdão analisado evidencia a relevância e a complexidade da aplicação da Lei do Superendividamento, refletindo o esforço do Judiciário em adaptar-se a um tema relativamente novo e fundamental para a proteção do consumidor vulnerável.
A postura do Desembargador relator no julgamento merece reconhecimento por demonstrar uma compreensão sensível e técnica das questões centrais da legislação, aplicando-a de forma a promover o equilíbrio nas relações de consumo e a dignidade do consumidor. Sua atuação reforça a importância de decisões que buscam não apenas resolver conflitos individuais, mas também consolidar uma cultura de crédito responsável no Brasil.
Contudo, como todo campo jurídico em evolução, ainda há espaço para reflexão e aprimoramento. Questões como a fixação de prazos de pagamento, a aplicação de sanções a fornecedores que violam princípios do crédito responsável e a valorização da atuação advocatícia precisam ser debatidas com maior profundidade para que a legislação alcance todo o seu potencial.
É essencial que os magistrados compartilhem experiências e desenvolvam interpretações mais uniformes, alinhadas aos objetivos da lei, evitando práticas que possam fragilizar sua eficácia.
O avanço da aplicação da Lei nº 14.181/2021 depende de um diálogo contínuo entre os operadores do direito, incentivando interpretações que valorizem a proteção ao consumidor sem comprometer a segurança do sistema de crédito.
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