'Parâmetros para controle da violência policial fixados pelo STF servirão para todo o país', afirma PGJ do Rio
16 de janeiro de 2025, 17h56
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu importantes diretrizes para o controle da violência policial no Rio de Janeiro. Com isso, o Ministério Público estadual passou a exercer um controle mais aprofundado e eficiente das incursões das forças de segurança em favelas, o que levou a uma redução da letalidade policial em 52%, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para o procurador-geral de Justiça do Rio, Luciano Mattos, os parâmetros estabelecidos no processo deverão ser replicados em todo o Brasil.
No comando do MP-RJ desde 2021, Mattos transmitirá o cargo a Antonio José Campos Moreira nesta sexta-feira (17/1). Ele assumirá a função de assessor especial de Relações Institucionais da Corregedoria Nacional do Ministério Público.
Em seus dois mandatos, Mattos reorganizou os grupos de atuação especializada, criou planos de metas e investiu em tecnologia, como uma ferramenta de inteligência artificial para análise dos registros de candidaturas para as eleições de 2024.
Mattos foi tachado de bolsonarista por ter sido escolhido pelo governador Cláudio Castro (PL), especialmente na escolha para o segundo mandato, quando ficou em segundo lugar na eleição interna. Ele diz que as críticas são injustas, pois a Constituição fluminense permite que o chefe do Executivo nomeie qualquer um dos três mais votados.
O PGJ também afirma que o órgão agiu corretamente ao pedir, em 2022, que o Tribunal de Justiça fluminense anulasse a denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no caso de suspeita de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O Superior Tribunal de Justiça havia invalidado as decisões tomadas no caso pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, que permitiram a quebra de sigilo bancário e fiscal do parlamentar e de pessoas relacionadas a ele. Naquela ocasião, a acusação não mais se sustentava, segundo Mattos. Com a anulação da denúncia, o MP-RJ pode reiniciar a investigação e, se for o caso, propor novamente a abertura de ação penal.
No caso do assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol), Luciano Mattos ressalta a importância de investigar também os crimes acessórios, as medidas que os executores do delito, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, tomaram para ocultar o homicídio. Ações e condenações nesses casos paralelos agravaram a situação de Lessa e Queiroz, fazendo com que firmassem acordos de colaboração premiada que levaram aos acusados de serem mandantes do assassinato — os irmãos Chiquinho e Domingos Brazão (respectivamente, deputado federal e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio) e o delegado Rivaldo Barbosa.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Quais foram os principais feitos que o senhor atingiu na sua gestão?
Luciano Mattos — Eu estruturei minha campanha e meus projetos em três eixos principais: diálogo, combatividade e eficiência. Em relação ao diálogo, avançamos bastante nas questões relacionadas às redes sociais, à ampliação do nosso diálogo com a sociedade. Melhoramos a ouvidoria do Ministério Público. E tivemos um excelente relacionamento institucional com os outros poderes e instituições, trabalhamos muito em parceria.
No eixo combatividade, reformulamos a questão da atuação coletiva especializada e aumentamos significativamente o número de grupos, forças-tarefas, com resultados bem interessantes, principalmente na questão do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco). Fizemos uma aglutinação do antigo Gaec, de combate à corrupção, com o de crime organizado, formando um grande Gaeco, com dois núcleos. Tivemos também força-tarefa de uso e ocupação irregular do solo. Notoriamente em relação às milícias, fizemos um enfrentamento muito importante, gerando um prejuízo bilionário a essas organizações criminosas com a demolição e prevenção à construção de obras irregulares. Houve também a força-tarefa Degase, que trabalhou na questão da violência institucional dentro das unidades de internação de jovens.
Nós buscamos fortalecer a atuação coletiva, mas sem inviabilizar a promotoria na ponta. Afinal, esses grupos ferem de certa forma a lógica do Ministério Público, que é a do promotor natural. É uma garantia da sociedade e do investigado não escolher o promotor que vai investigar um determinado caso. É uma regra constitucional. Esses modelos de atuação coletiva devem ser excepcionais e temporários. Nós adotamos um modelo diferenciado, cobrando resultados. Teve, por exemplo, uma força-tarefa que começou, deu os resultados esperados, e a encerramos. Todos esses grupos passaram a ter uma chefia imediata, que coordenava todos os trabalhos, sabia o que estava entrando, o que estava saindo, se atendia aos requisitos.
Atuamos também na atribuição originária do procurador-geral de Justiça, que ficou bem reduzida. Pouco antes de eu assumir o cargo, o Supremo Tribunal Federal restringiu significativamente o foro por prerrogativa de função, limitando-o a crimes cometidos no exercício do cargo. Quando eu assumi o cargo, 64% dos processos de prefeitos foram para a primeira instância. O mesmo ocorreu com os deputados, dois anos depois. Ainda combatemos licitações fraudulentas e fizemos um trabalho de infiltração em organizações criminosas, tanto no Parlamento quanto no processo eleitoral.
E no terceiro eixo, de eficiência, fizemos muitos projetos na área de tecnologia. Desenvolvemos um robô para rapidamente conseguir fazer as impugnações dos candidatos que não eram ficha limpa (em 2024), porque o prazo é muito exíguo, só cinco dias. Essa ideia foi implementada de forma experimental, mas na próxima eleição ela já vai funcionar em todos os casos. Outra ferramenta tecnológica permite identificar as causas com risco de prescrição nas áreas de criança e adolescente e de patrimônio público.
Também implementamos um planejamento estratégico com metas indicadoras de resultados. Fizemos dois grandes planos. Um plano chamado Racionalizar, em que estabelecemos em oito eixos o cumprimento de metas para todos os setores da Procuradoria-Geral de Justiça. Cumprimos cerca de 70% ou 75% das metas. Foi algo inédito, porque não havia esse tipo de acompanhamento. E fizemos um plano semelhante na área de segurança pública, considerando as áreas criminal, infância e juventude e urbanística, que é hoje também uma questão importante na área de segurança e de controle do território.
ConJur — Houve algo que o senhor gostaria de ter feito, mas não conseguiu?
Luciano Mattos — Muita coisa. Cumprir 100% das metas dos planos seria uma dessas medidas. Gostaria de ter avançado em algumas questões de regulamentação interna. Também gostaria de ter podido avançar mais na parte eleitoral, dando mais estrutura para os promotores, especialmente para coibir a infiltração do crime organizado nos mandatos eletivos e no processo eleitoral.
ConJur — Após o governador Cláudio Castro reconduzir o senhor a mais um mandato, em 2023, 29 promotores pediram remoção, a maioria do Gaeco. Isso porque o senhor foi o segundo colocado, e não o primeiro da lista tríplice. Como o senhor avalia a lista para a escolha do chefe do MP? E como avalia esses pedidos de remoção após sua recondução ao cargo?
Luciano Mattos — Uma coisa é opinião, outra é o que está na Constituição, que deve ser cumprida. O episódio demonstra a importância do promotor natural. Promotor na sua promotoria não pode renunciar a nada. Ele é titular, o caso é dele, tem de investigar, ainda que o Gaeco busque despersonalizar a atuação, por questões de segurança. Então a renúncia coletiva causou um prejuízo imensurável à instituição. Foi um movimento político-institucional para eu não aceitar a nomeação. Não aceitar a nomeação seria violar a Constituição Federal.
O Ministério Público Federal, por exemplo, luta para ter a lista tríplice constitucionalizada e respeitada, tanto que faz informalmente eleições pela associação. Vendo tudo o que se passou, eu penso que a lista acaba compatibilizando dois importantes instrumentos: a legitimidade interna e a legitimidade externa, via políticos eleitos pela sociedade. Caso contrário, corremos o risco de ficar em um movimento puramente classista e corporativo. Se o governador fosse eleito pelos servidores públicos, ele não iria se preocupar com a escola de uma determinada comunidade. E vale ressaltar que eu não fui o mais votado, mas fiquei em segundo, por uma diferença pequena. Algo natural, pois estava no cargo, sofrendo o desgaste da implementação de medidas durante a epidemia de Covid-19.
ConJur — Quais são os maiores desafios do Ministério Público no combate à criminalidade no Rio de Janeiro?
Luciano Mattos — Segurança pública é um tema multifacetado e multidisciplinar. O Ministério Público tem um papel importantíssimo, mas muito amplo. É preciso aprimorar os processos de atuação, criar um plano diretor. Para isso, é preciso uma mudança de cultura, ter uma cultura de metas e indicadores de resultados. Nós implantamos isso, mas precisamos avançar mais. O MP pode atuar com esse olhar na área de investigação penal, de combate ao crime organizado. Já tem uma atuação importante através desses grupos, como o Gaeco e outros, mas deve ter uma atuação mais estratégica, no sentido de neutralizar organizações criminosas.
ConJur — O caso de Marielle Franco só foi resolvido após Luiz Inácio Lula da Silva reassumir a Presidência da República e promover a federalização das investigações — embora em conjunto com o MP-RJ. Por que foi preciso o apoio das forças federais para resolver o caso?
Luciano Mattos — Na verdade, não houve uma federalização das investigações. Houve essa tentativa no início, mas ela foi rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça, que disse que era do estado a investigação e rejeitou a federalização. Isso foi antes da minha gestão.
Quando eu cheguei, os executores do crime já haviam sido denunciados, o processo estava em andamento, mas havia a necessidade de aprofundar a questão dos mandantes. No início, as colegas que participaram da primeira parte do caso não quiseram continuar no Gaeco, mas depois outros promotores foram designados exclusivamente para atuar em uma força-tarefa para apurar os mandantes, e não só isso, mas também os crimes acessórios — ocultação, fraude processual, o que eles fizeram para encobrir o crime.
O trabalho foi iniciado por aquelas promotoras, depois passou por outros colegas e, de 2023 para cá, por uma outra equipe. Essas trocas foram muito criticadas. Primeiro que o promotor natural não pode dizer “me tira do caso”. Ele é o responsável pelo caso. O que ele pode fazer é sair da promotoria, mas quando há esses casos especiais, em que há designações, e a pessoa fala “não quero continuar”, temos de respeitar e encontrar outras pessoas que queiram trabalhar no caso. Agora, trocas não necessariamente são ruins. Podem gerar alguns prejuízos, demorar um tempinho para a pessoa aprender sobre o caso, mas entra uma pessoa com outro olhar, outro vigor, e isso ajuda. Foram três trocas no meu período, e a última equipe fez um trabalho brilhante.
Nos dois primeiros anos de meu mandato, foram feitas muitas investigações, mas a apuração dos mandantes não avançou muito. Quando Lula assume o governo, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, insistentemente manifestava a intenção de se dedicar ao caso. Eu procurei o ministro e fiz uma proposta. Existe uma lei federal que permite, em casos de graves violações de direitos humanos, a participação da Polícia Federal. Isso não significava que o caso sairia da Justiça estadual. Ele continuaria com a Justiça do Rio, com o Ministério Público do Rio, a Polícia Civil não seria afastada, mas haveria uma contribuição da Polícia Federal. Foi o que aconteceu.
A partir de uma prova que apresentamos à PF, começaram as tratativas para negociar a delação de Élcio de Queiroz. Ele não sabia muitos detalhes dos mandantes, mas relevou informações importantes. A partir desses desdobramentos, Ronnie Lessa também resolveu fazer delação. Vale lembrar que Ronnie Lessa era réu primário no início das investigações, mas como também investigamos na apuração de delitos paralelos, a essa altura ele já havia sido condenado e era réu em outras ações, o que certamente pesou em sua decisão de colaborar. E o caso foi federalizado porque Ronnie Lessa citou Domingos e Chiquinho Brazão, que tinham foro privilegiado no STJ e no STF, respectivamente (o primeiro por ser conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio, o segundo por ser deputado federal).
O processo dos executores de Marielle continuou no Rio. Nós fizemos os júris e saiu um resultado que consideramos adequado a uma reprimenda em relação às execuções (Ronnie Lessa foi condenado a 78 anos de prisão, Élcio de Queiroz, a 59 anos). Concluir esse caso com êxito foi uma grande vitória da minha gestão, tanto que o trabalho é muito reconhecido pela própria família de Marielle.
ConJur — No seminário Pacto pelo Rio, promovido pela FGV em fevereiro de 2024, o senhor ressaltou a importância de o poder público retomar áreas dominadas pelo crime. Como fazer isso em áreas dominadas pela milícia e pelo tráfico de drogas?
Luciano Mattos — O controle do território é fundamental. E é algo muito difícil de fazer em uma área dominada pelo crime organizado. O primeiro trabalho que nós fizemos foi a criação de uma força-tarefa para isso. Antes, a milícia ou o tráfico construía um prédio, e a polícia não agia, por se tratar de controle urbano, nem a prefeitura, por não conseguir fazer nada quanto à segurança pública. E nada mudava. Eu conversei com o prefeito Eduardo Paes e traçamos uma estratégia de controle de territórios. Criamos um fluxo em que os órgãos da Prefeitura do Rio atuam, identificam a construção irregular rapidamente, adotam os procedimentos necessários e emitem a ordem de demolição administrativa. Isso tudo feito em parceria com o Ministério Público, que também já tem as parcerias com as polícias. E tudo é derrubado. Antes, quando terminava a investigação, o prédio já estava pronto, a ocupação já estava consolidada, era muito mais difícil tirar as pessoas de lá, e, como ocorreu na Muzema, pessoas até morreram. Agora isso foi invertido: nós derrubamos primeiro, respeitando o direito de defesa — porque às vezes pode ser um erro —, mas, cumpridas todas as etapas legais, rapidamente promovemos a demolição. Em um segundo momento, faz-se a investigação de quem comandou aquilo, se era financiamento da milícia ou do tráfico, lavagem de dinheiro ou só crime ambiental. Isso gerou enorme prejuízo às organizações criminosas e permitiu que a Prefeitura do Rio retomasse o controle de diversos territórios.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal, na ADPF 635, discute a imposição de medidas para diminuir a letalidade em operações policiais no Rio de Janeiro. Entre outras ordens, a corte determinou que o MP-RJ fiscalize as operações policiais. Como fazer isso em um cenário em que a polícia do Rio é uma das que mais matam no Brasil?
Luciano Mattos — Em um cenário mais violento, como o do Rio, a tendência é que a letalidade policial seja um pouco maior. Claro que isso não é desejado, mas é o que ocorre. Mas houve uma grande redução da letalidade policial nos últimos anos, o Rio de Janeiro está próximo do patamar desejado de redução. Essa ADPF tem sido considerada um exemplo de processo estrutural. Os autores entraram pedindo certas coisas, mas com decisões, audiências públicas, estudos, avaliação periódica, virou um processo completamente diferente.
É um tema que divide frontalmente esquerda e direita, polícia e comunidade. No início, nós éramos criticados por todos os lados. Hoje penso que todos os lados concordam com boa parte da nossa manifestação. Fizemos o dever de casa. Cumprimos a decisão, no que é possível, e vamos trabalhar com metas. Nós construímos uma ferramenta tecnológica de painel de monitoramento de operações policiais, cobramos da polícia as informações, fomos alimentando o sistema, trabalhando com os dados, e ao final até fomos elogiados pelo ministro (Edson) Fachin quando esteve acompanhando todo o trabalho que fizemos. Nós temos um plantão 24 horas para receber notícias de violações de direitos humanos. A cada episódio com lesão ou morte, o MP-RJ instaura uma investigação.
Nós conseguimos a implementação das câmeras nas fardas de policiais. Tem problemas? Sim, é preciso ir ajustando. Tem uma questão seríssima na gestão das imagens que é ser preciso ter cadeia de custódia das provas, para elas poderem ser utilizadas nos processos. Então é um emaranhado de problemas, mas avançamos bastante. Hoje nós temos tudo mapeado, sabemos exatamente as operações, como elas ocorrem, quem são os agentes, quais foram os resultados.
Porém, há questões de que discordamos e pretendemos, agora no final da ADPF, mostrar com nossos argumentos, com dados. Por exemplo, é um equívoco a questão da “excepcionalidade” como requisito para operações policiais. O que é “excepcionalmente” no Rio de Janeiro? Nós apresentamos dados que mostram que, depois da decisão do STF durante a epidemia de Covid-19, as operações policiais aumentaram, mesmo com esses controles todos, e a letalidade policial reduziu. Logo, não tem relação de causa e efeito fazer operação. Uma operação planejada é muito melhor do que uma incursão em uma comunidade sem qualquer tipo de planejamento. Então postulamos ao Supremo que caia essa obrigatoriedade da “excepcionalidade”. No fim, o STF, nessa ADPF, cumpriu um papel importante na questão das operações policiais, do controle externo da atividade policial e da letalidade policial, algo que certamente vai servir para o Brasil inteiro.
ConJur — Em 2022, o TJ-RJ arquivou, a pedido do MP-RJ, a denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro pelo esquema de “rachadinha” em seu gabinete na Alerj. Como avalia a condução do caso pelo órgão?
Luciano Mattos — O STJ anulou várias partes do processo da investigação que fundamentava a denúncia. Quando eu assumi a PGJ, em 2021, a denúncia já tinha sido oferecida. Portanto, as investigações tinham sido encerradas. Não houve falha de investigação por parte do MP-RJ. O STJ anulou as decisões do juiz de primeiro grau (Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro) que permitiram a quebra de sigilo bancário e fiscal (de Flávio Bolsonaro e de pessoas relacionadas a ele). Então nós pedimos que o TJ-RJ anulasse a denúncia, e a corte acatou o nosso pedido. Afinal, a denúncia estava lastreada em provas que haviam sido anuladas. Isso permitiu que nós recomeçássemos a investigação. Cabe agora ao próximo procurador-geral decidir o que fazer com o que sobrou da investigação. A depender do resultado, o MP-RJ pode oferecer a denúncia novamente.
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