Opinião

O curioso caso da indústria que não pode ser indústria na ZFM (parte 2)

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16 de janeiro de 2025, 13h12

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O ‘jabuti’ do artigo 8º da Lei nº 14.183/2021

Tal “estado de coisas” foi bruscamente alterado com o advento da Medida Provisória nº 1.034/2021, posteriormente convertida na Lei nº 14.183/2021, que tratava originalmente matérias tributárias que não guardavam qualquer relação com o tema ZFM e tinha como objetivo implementar uma política fiscal de emergência para enfrentamento à pandemia do coronavírus.

No Plenário da Câmara dos Deputados, o relator do projeto de lei de conversão da MP apresentou uma emenda que, após aprovação, foi incorporada ao atual artigo 8º da Lei nº 14.183/2021. Essa emenda promoveu alterações nos artigos 3º, 4º e 37 do Decreto-Lei nº 288/1967, não somente retomando as restrições a lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo, mas principalmente impondo restrição inovadora relativa a operações com petróleo cru na ZFM.

Trata-se de caso típico de emenda “jabuti”, incluída de forma oportunista e sem nenhuma pertinência temática com o objeto original da MP, em evidente desvio do devido processo legislativo.

Para além desta inconstitucionalidade formal, reconhecida expressamente pelo ministro Nunes Marques [1], o artigo 8º da Lei nº 14.183/2021 reduziu inconstitucionalmente o conjunto de isenções fiscais existentes quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, pois, conforme visto, as restrições impostas ao grupo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo não estavam mais vigentes naquele marco temporal.

Salienta-se, ademais, que a palavra “petróleo” sequer era mencionada no texto original do Decreto-Lei 288/67, o que demonstra que o legislador originário pós-Constituição de 1988 nunca buscou impor qualquer vedação ou limitação específica ao setor de petróleo, conforme entendimento exarado pelo ministro Dias Toffoli [2].

Por essa e outra razões, todas de natureza estritamente jurídica, a constitucionalidade do artigo 8º da Lei nº 14.183/2021 está sendo discutida no STF por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.239, ajuizada pelo partido Cidadania Nacional.

A reforma tributária e a oportunidade da ‘pá de cal’ para o refino de petróleo

O início das discussões em torno da reforma tributária ofereceu oportunidade única para que o Estado brasileiro solucionasse, de modo definitivo, eventuais dúvidas acerca do incentivo fiscal à indústria de refino de petróleo na ZFM.

É nesse contexto que se inserem (1) o 92-B do ADCT da Constituição Federal, inserido por meio da Emenda Constitucional nº 132/2023 [3]; e (2) a alínea “e” do artigo 441 do PLP.

O artigo 92-B do ADCT estabelece que:

“As leis instituidoras dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, da Constituição Federal estabelecerão os mecanismos necessários, com ou sem contrapartidas, para manter, em caráter geral, o diferencial competitivo assegurado à Zona Franca de Manaus pelos arts. 40 e 92-A e às áreas de livre comércio existentes em 31 de maio de 2023, nos níveis estabelecidos pela legislação relativa aos tributos extintos a que se referem os arts. 126 a 129, todos deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”

Já o PLP, por meio da alínea “e” do artigo 441 [4], corrige a distorção gerada pela Lei nº 14.183/2021, reinserindo o setor de refino de petróleo no regime de incentivos fiscais da ZFM, buscando, assim, restabelecer a neutralidade setorial e a segurança jurídica que sempre caracterizou o modelo. Para evitar uma assimetria concorrencial com o restante do país, o Congresso Nacional teve o cuidado de garantir que o benefício se aplique apenas às transações dentro dos limites geográficos da ZFM e desde que as refinarias possuam processo produtivo básico aprovado pela Suframa.

Os críticos ao PLP alegam que a inclusão de benefícios fiscais ao setor de refino de petróleo na ZFM contraria o disposto no artigo 92-B do ADCT, que preveria a manutenção do diferencial competitivo assegurado à ZFM em 31 de maio de 2023.

A interpretação de que a expressão “existentes em 31 de maio de 2023” se refere ao “diferencial competitivo” distorce o sentido do artigo mencionado, numa tentativa de vedar o incentivo fiscal concedido à indústria do refino situada na ZFM.

A despeito de interpretações equivocadas disseminadas recentemente [5], a leitura dos trabalhos legislativos em torno do atual artigo 92-B do ADCT não deixa dúvidas de que o marco temporal de 31 de maio de 2023 se aplica tão somente às áreas de livre comércio e não ao diferencial competitivo assegurado à ZFM.

Tanto é assim que a primeira versão desse dispositivo destacava as áreas de livre comércio em um parágrafo único específico, em que aparecia o marco temporal de 31 de maio de 2023:

“Art. 92-B. Durante o prazo previsto no caput do art. 92-A, o tratamento tributário favorecido dispensado aos bens produzidos na Zona Franca de Manaus poderá ser implementado mediante:

I – alterações nas alíquotas e nas regras de creditamento dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, não se aplicando o disposto no § 1º, X, do art. 156-A, todos da Constituição Federal;

II – a ampliação da incidência do imposto de que trata o art. 153, VIII, da Constituição Federal, para alcançar a produção, comercialização ou importação de bens que tenham industrialização na Zona Franca de Manaus, garantido tratamento favorecido às operações originadas na região.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se também às áreas de livre comércio instituídas até 31 de maio de 2023[6]. (grifos dos articulistas)

Ademais, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da PEC 45/2019 na Câmara, justificou a proposição do texto com o argumento de que as “Áreas de Livre Comércio (ALCs) foram criadas para promover o desenvolvimento das cidades de fronteiras internacionais localizadas na Amazônia Ocidental e em Macapá e Santana, com o intuito de integrá-las ao restante do País, oferecendo benefícios fiscais semelhantes aos da ZFM. Nesse sentido, o substitutivo concedeu os mesmos benefícios da ZFM às áreas de livre comércio instituídas até 31 de maio de 2023, elevando a proteção dessas regiões ao nível constitucional[7]. (grifos dos articulistas)

Resta claro, portanto, que o atual artigo 92-B do ADCT, incluído pela PEC da reforma tributária, teve por objetivo manter o diferencial competitivo (1) da ZFM; e (2) das áreas de livre comércio instituídas até 31 de maio de 2023.

São questões diferentes e inconfundíveis!

Dessa forma, conquanto ainda haja divergências em torno do incentivo fiscal a petróleo, lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo na ZFM – externalizadas principalmente no âmbito do julgamento da ADI 7.239 –, o fato é que tanto o artigo 40, quanto o recém adicionado artigo 92-B, ambos do ADCT da Constituição Federal, não impõem quaisquer obstáculos em nível constitucional à concessão de incentivos fiscais a indústria do refino de petróleo na ZFM.

Spacca

Em verdade, por mais que se admita a eventual constitucionalidade do artigo 8º da Lei nº 14.183/2021, o fato é que o advento de nova lei complementar na forma do PLP recentemente aprovado no Congresso Nacional implica tão somente na revogação da norma anterior de mesmo nível legislativo, em consonância com o brocardo lex posteriori derogat legi priori.

Explica-se: a alínea “e” do artigo 441 do PLP nada mais faz do que revogar parcialmente o artigo 8º da Lei nº 14.183/2021 – que exclui de modo geral os itens petróleo e derivados de petróleo do regime da ZFM –, a fim de excepcionalmente incluir o setor de refino no regime favorecido da região, no que tange especificamente às operações internas, e “desde que cumprido o processo produtivo básico”.

Em outras palavras, quis o legislador, com alínea “e” do artigo 441 do PLP, encerrar todo e qualquer debate e deixar absolutamente transparente que não existe qualquer restrição legal para que a indústria de refino de petróleo seja uma indústria incentivada na ZFM.

Apenas a título argumentativo, ainda que se entenda que o texto do PLP 68/24 ampliou os benefícios concedidos à ZFM, o incentivo concedido à refinaria não se mostra inconstitucional. Saliente-se, uma vez mais, que o conjunto de benefícios fiscais atrelados à ZFM pode ser devidamente ampliado, a depender das circunstâncias, mas nunca reduzido. É o que reiterou mais recentemente o próprio STF, por ocasião do julgamento da ADI 4.832 de relatoria do ministro Luiz Fux.

“Também não prospera a tese de que os incentivos fiscais admitidos pelo artigo 40 do ADCT seriam apenas aqueles já existentes quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, pois a norma transitória prevê a manutenção da Zona Franca de Manaus “com suas características”, isto é, preserva o regime jurídico daquela região enquanto “área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais”, não havendo se falar em impossibilidade de criação de novos incentivos fiscais, desde que fundados no arcabouço normativo que disciplina o regime da Zona Franca de Manaus [8]. (grifos dos articulistas)

Na mesma linha, agora no âmbito do julgamento da própria ADI 7.239 [9] mencionada acima, merecem destaque os votos do ministro Luís Roberto Barroso, relator da matéria, e dos ministros Alexandre de Moraes e Nunes Marques.

Ministro Luís Roberto Barroso

“Quanto ao regime da Zona Franca de Manaus, esta Corte, em reiteradas oportunidades, sustentou que, em atenção ao art. 40 do ADCT c/c arts. 92 e 92-A do ADCT, garante-se, ao menos, a preservação das suas características “de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais”, existentes à época da promulgação da Constituição. Nessa linha de argumentação, pode-se sustentar que houve a recepção constitucional dos incentivos fiscais atinentes à região da Zona Franca de Manaus, com vigência até o referido marco temporal.Tais incentivos constituem, portanto, o patamar mínimo do tratamento favorecido a ser garantido à região, sem desconsiderar a eventual incorporação de novas benesses fiscais à área, decorrentes da dinâmica do fenômeno econômico-tributário a ser captada pelo legislador.(grifos dos articulistas)

Ministro Alexandre de Moraes

“É indubitável que a região amazônica possui peculiaridades socioeconômicas que certamente autorizam o legislador a conferir tratamento tributário especial aos insumos advindos da ZFM. É legítimo, portanto, que o legislador trate de forma desigual as mercadorias produzidas na ZFM (como, de fato, o fez no Decreto-Lei 288/1967) com relação às oriundas de outras regiões do país.” (grifos dos articulistas)

Ministro Nunes Marques

“A Lei n. 14.138/2021, ao introduzir uma nova exceção à norma imunizante prevista no Decreto-Lei n. 288/1967, contrariou o objetivo constitucional de fomentar o desenvolvimento da Zona Franca de Manaus. Embora o regime jurídico da ZFM não seja imutável — conforme ressaltado pelo ministro Alexandre de Moraes ao indicar a ausência de cláusula pétrea —, eventuais alterações legais devem estar em harmonia com o conjunto de normas constitucionais que orientam a política fiscal voltada ao desenvolvimento regional. Esses dispositivos incluem os artigos 1º, inciso II; 43, caput e § 2º, inciso III; 151, inciso I; 165, § 7º; e 170, inciso VII, da Constituição Federal, além do artigo 40 do ADCT.” (grifos dos articulistas)

Os julgados acima evidenciam que o entendimento do STF é claro: os incentivos fiscais existentes na ZFM constituem um patamar mínimo, que não só deve ser preservado, como também pode ser ampliado. Desta forma, tem o legislador a prerrogativa de adaptar e incorporar novos benefícios, desde que em consonância com a dinâmica econômica e tributária, reforçando a legitimidade de políticas que favoreçam o desenvolvimento regional por meio da concessão de incentivos adicionais.

Conclusão

Passados cerca de 60 anos desde seu lançamento, hoje é possível afirmar categoricamente que o projeto ZFM venceu. De acordo com o Relatório de Indicadores de Desempenho do Polo Industrial de Manaus, divulgado no início de dezembro pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), o Polo Industrial de Manaus (PIM) fechou o mês de outubro com um total de 125.277 trabalhadores, entre empregos diretos, temporários ou terceirizados. Na comparação com outubro de 2023, a variação foi positiva em 8,04% [10].

São mais de 500 indústrias de alta tecnologia instaladas na Amazônia, abrangendo os mais variados segmentos como eletroeletrônico, bens de informática e duas rodas, além de mineração e produção de alimentos. No segmento de eletrodomésticos, a ZFM abriga marcas como Philips, Semp Toshiba, LG, Panasonic, Philco, Electrolux.

O artigo 441, “e”, do PLP, ao garantir o incentivo fiscal para a indústria de refino localizada na ZFM, apenas aprofunda uma das políticas públicas mais bem sucedidas da história da República. Com ele, assegura-se o pleno abastecimento, a segurança energética e a maior autonomia de uma das regiões mais isoladas do país.

Em vez de criticada, a iniciativa deveria ser celebrada como um exemplo bem-sucedido de concretização dos objetivos originais de desenvolvimento regional da ZFM, uma vez que nada impede que outras refinarias venham a se instalar na região. A questão, portanto, não é sobre exclusividade, mas sobre a disposição do empresariado nacional de enfrentar os desafios únicos da Amazônia.

Por fim, o que está em jogo não é somente a sanção do artigo 441, “e”, do PLP, mas a tentativa de deslegitimar o papel de uma indústria de refino que, contra todas as adversidades, cumpre todos os requisitos que a qualificam como incentivada na ZFM e se posiciona como pilar estratégico para a economia da região. As críticas, desprovidas de fundamento jurídico ou econômico sólido, são, na realidade, um reflexo de interesses concorrenciais que buscam travar o avanço de um setor vital para o desenvolvimento regional. Se sucumbirmos a elas, estaremos diante de uma aberração: o curioso caso de uma indústria que não pode ser indústria na ZFM.

 


[1] “Na hipótese, vislumbro inconstitucionalidade formal nos arts. 8º e 10, II, da Lei n. 14.183/2021 por outra razão: essas disposições, a meu sentir, preenchem todos os requisitos para serem conceituadas como os chamados ‘jabutis legislativos’”. ADI 7239, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 11-03-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 30-04-2024 PUBLIC 02-05-2024.

[2] “O primeiro ponto a se destacar é que a redação original do art. 37 em tela aludia tão somente a “lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos de petróleo”. Ou seja, ele não citava o bem “petróleo” isoladamente considerado (o qual não se confunde com os produtos dele derivados). Como o item “petróleo” não estava excepcionado pela redação original do art. 37, era ele sim alcançado pelos incentivos fiscais estabelecidos para Zona Franca de Manaus. Não poderia, portanto, o legislador, por meio da lei ora questionada (Lei nº 14.183/21) revogar a aplicação desses incentivos em favor das operações com petróleo, sob pena de ofensa ao art. 40 do ADCT”. ADI 7239, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 11-03-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 30-04-2024 PUBLIC 02-05-2024.

[3] Emenda responsável pela implementação da Reforma Tributária.

[4] “Art. 441. Não estão contemplados pelo regime favorecido da Zona Franca de Manaus:

(…)

e) petróleo, lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo, exceto para a indústria de refino de petróleo localizada na Zona Franca de Manaus, em relação exclusivamente às saídas internas para aquela área incentivada, desde que cumprido o processo produtivo básico, permanecendo a vedação para todas as demais etapas;

[5] https://www.conjur.com.br/2024-dez-30/por-que-o-presidente-da-republica-nao-so-pode-mas-deve-vetar-o-artigo-441-e-do-plp-68-24/

[6] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2371230

[7] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2372833

[8]  ADI 4832, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 12-12-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 21-02-2024  PUBLIC 22-02-2024.

[9]  ADI 7239, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 11-03-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 30-04-2024 PUBLIC 02-05-2024.

[10]  https://www.gov.br/suframa/pt-br/publicacoes/indicadores/IndicaOUT24_Resumo

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