Senso Incomum

A 'tirania silenciosa' da IA no Direito e o neotaylorismo! Viva a Ópera!

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16 de janeiro de 2025, 8h00

1. A maravilha que é a ópera

Escrevo esta coluna tarde da noite, depois de assistir à ópera Aída [1] (Verdi), no Lincoln Center (NY). E daí, alguém dirá? É que a ópera é uma criação, uma obra de arte, um espetáculo. Imaginem no século 19 alguém montando essa peça. Que, re(a)presentada centenas de vezes (ou mais), ainda provoca emoções. Silêncios. Aplausos. É de arrepiar quando a princesa cativa Aída canta “minhas lágrimas são meu crime” – porque dividida entre o amor por Radamés e a fidelidade à sua terra natal, em guerra com o Egito. E o que dizer de outra ópera a que assisti, La Boheme (Puccini), quando Rodolfo pega nas mãos de Mimí e entoa a ária Che gelida manina? Puro encanto e magia.

Na contramão de Aída, La Boheme etc., avança a inteligência artificial, anticognição, antiarte, anti-humana.

Por isso resolvi escrever o texto a seguir.

2. A tirania silenciosa denunciada pelo professor francês

O professor Dominique Wolton acompanhou uma série de transformações tecnológicas e suas implicações. Em longa entrevista quando de sua visita ao Brasil para receber uma honraria, diz que vivemos uma  “tirania silenciosa” provocada pela tecnologia.

Na sequência mostrarei como isso tem a ver com o Direito.

Para ele, a evolução técnica favoreceu dois movimentos contraditórios. O primeiro é que cada um pode trabalhar sozinho, onde quiser, em qualquer lugar do mundo: é a individualização. E isso, de fato, é uma mudança extraordinária. O segundo movimento, mais discutível, é que existe uma economia de massa, onde tudo é padronizado e racionalizado. É uma padronização que empobrece. Isso também é fato.

Isso resulta em uma perda da individualização. Essa é uma mudança que as pessoas não percebem. E isso acarreta empobrecimento da iniciativa individual. Isso é verdade porque o trabalho está entrando em uma nova etapa de taylorismo.

Para o professor, nas relações entre técnica e trabalho, é a técnica que vence.

“Dizem que é maravilhoso, que é mais rápido. Sim, mas… O ser humano perdeu. Ele não está tão forte”.

Por isso, acrescenta Dominique, o homem precisa ser capaz de inventar, então, não temos necessidade disso. Existe uma perda total de autonomia:

“Porque todos estão, digamos, separados pelo computador. Todos se acham mais livres, mas para ele todos são, na verdade, dependentes. Há uma batalha entre a simplificação do trabalho com a tecnologia e o fato de que os homens, os seres humanos, sonham com um trabalho mais rico, mais pessoal, com mais inovação”.

Como consequência, vivemos uma (nova) alienação:

“É como quando nós trabalhávamos em linhas de montagem, um século atrás, para fabricar automóveis, com Taylor e Ford. Se dizia que aquilo era formidável, porque faríamos muito mais carros do que antes, e é verdade, se fazia muito mais carros. Mas o trabalho em linha de produção, a divisão do trabalho era 10 vezes pior. Então, foram os operários que perderam, e os trabalhadores. É o mesmo desafio hoje, mesmo que as técnicas não sejam as mesmas.  Vivemos uma tirania da pseudoliberdade. Com os recursos tecnológicos, com o modo de vida, tudo caminha para a singularização e a segmentação. E todo mundo acha que isso é formidável”.

3. Por que somos reféns da perda da iniciativa no direito

Tem razão o professor francês. Trazendo a discussão para o Direito – ele faz pertinentes críticas da tecnologização no jornalismo e na educação – temos que o avanço da IA provoca um neojustaylorismo. E ficamos reféns dessa perda de iniciativa. Perda da autonomia.

Spacca

Pior: cada vez lemos menos livros. As faculdades ensinam por resumos e esquemas. Crescem as mentorias.

O que estamos pesquisando no direito? Simples: novas formas de encontrar precedentes. Ou não é isso? As grandes “novidades” no direito são:

(i) ter um ChatGPT para chamar de seu (inclusive com um avatar) e que elabore petições e faça resumos de textos;

(ii) ter um robô que melhor encontre precedentes em um país sem precedentes (aqui recomendo fazer uma pausa e ler este texto: Um país sem Precedentes – é só clicar). Sim, o grande produto não é mais a doutrina, as “invenções teóricas”. O produto agora é o espiolhamento de julgados. Dia após dia aparecem novos robôs, inclusive no âmbito dos tribunais, neste caso para buscas internas.

E, por quê? Porque fomos “singularizados” pelo “sistema de justiça”, como denuncia o professor francês.  Fomos segmentados. E, como diz o professor, “todo mundo acha que isso é formidável”. Porque sequer pensamos que isso possa não ser a coisa certa; não pensamos em uma alternativa.

4. E caímos em uma armadilha…

Isto é, caímos em uma armadilha. Assim como as crianças foram arrastadas para esse mundo da tecnologização. Veja-se que no mundo todo estão proibindo telas em salas de aula. Estão proibindo, acertadamente, o uso de celulares nas escolas. Logo proibirão o uso de telas e smartphones nas faculdades.

Interessante é que no Judiciário e nas práticas jurídicas, ocorre o inverso: incentiva-se a “terceirização” (a palavra é por minha conta) da escrita e das decisões. E, fundamentalmente, das pesquisas.

Não é por acaso que o avanço da IA no Direito está relacionada diretamente à busca insana pela simplificação da linguagem [2]. Cada advogado ou professor acha que tem o domínio do mundo. Por meio da técnica. Como um operário que fabricava automóveis dez horas por dia. Quem perdeu? O operário. E agora temos esse neotaylorismo. A diferença é que produzimos via tok toc e insta em “linha de produção”. Importa é quem descobre melhor o último precedente, esquecendo que nosso sistema é civil law. Esquecendo que o que deve vincular é a lei do qual se extrai o precedente e não o precedente que substitui a lei. Estamos sendo ludibriados.

O modo como estamos “fazendo direito” é uma armadilha. Caímos na contradição secundária. Os “CEOs” da dogmática jurídica dita(ra)m a linha de produção. Fizeram uma espécie de “manual de instruções” acerca do que deve e pode ser produzido. Afinal, o sentido do produto é o que o establishment diz que é. E na pseudoliberdade que leva à tirania é que está a ilusão da liberdade, em que a linha de produção do direito esqueceu a doutrina. Pior: o que parte da doutrina está fazendo apenas retroalimenta a era da técnica. Buscam novas formas de atalhar. A grande invenção neotaylorista: robôs que elaboram petições, relatórios, sentenças e acórdãos. E examinam recursos. E que atuam como exterminadores de recursos. Como snipers anti epistêmicos, que atiram no padre e acertam sempre na igreja. Por isso o percentual de recursos admitidos é tão pífio.

5. O que restará para o estudo do direito? Metaforicamente: ainda haverá espaço para a ópera?

O que faz a linha de produção? Busca encontrar melhores meios de auxiliar essa técnica. Quem consegue mais rápido encontrar o precedente? Esse é o novo mundo, disse um professor dia desses, entusiasmado. Pode ser. Mas o que restará para o estudo do direito? Será apenas um jogo de estrategistas? Quem descobre primeiro o melhor precedente? Mas, o que faz esse robô face ao robô do próprio tribunal? Será uma briga de algoritmos?

Mas, antes disso: o que é isto – o precedente? Tudo isso leva a um paradoxo: se der certo, dará errado. Sim, porque se a técnica funcionar, já não precisaremos sequer dos estagiários e advogados que procuram os “melhores precedentes”. Como no comércio, os funcionários são substituídos por totens. Os robôs encontram a solução para os advogados nesse jogo que é o direito. E quem aplicará será outro robô – o do tribunal.

No meio disso ficará a terra arrasada: os escombros da doutrina e do que um dia foi o sistema de direito da civil law. E a teoria do direito? Desnecessária. Tudo agora é tecnologização. É a era do dispositivo – Ge-stell. É o botão que se aperta.

Assim como cada cidadão se transformou em jornalista, comentarista, cientista político, médico, influencer, coach etc. manuseando as redes sociais apenas com uma telinha na mão, no direito cada “operador” (mais qualificado ou não) se transformou em um teórico e especialista, com “plena liberdade de escolhas profissionais”, como ironiza o professor francês.

Isso, todavia, empobrece(u)-o individualmente. “Dispensado” de leitura, recebe, por meio da (era da) técnica, um discurso prêt-à-porter, prêt-à-parler e prêt-à-penser (como no sarcasmo de Warat). Repetindo o dizer do professor francês,

“todos estão separados pelo computador. Todos se acham mais livres, mas todos são, na verdade, dependentes. Há uma batalha entre a simplificação do trabalho com a tecnologia e o fato de que os homens, os seres humanos, sonham com um trabalho mais rico, mais pessoal, com mais inovação”.

Só que a inovação está amarrada aos limites impostos de antemão pela linha de produção. O ditame condutor é:

(i) o direito é indeterminado;

(ii) quem faz a determinação dessa indeterminação são os tribunais;

(iii) portanto, o seu trabalho, caro operador, é encontrar um modo de melhor aplicar esse produto prê-à-porter: a tese, o precedente (sem que se saiba, afinal, a diferença entre um e outro).

(iv) mas tem um plus: mesmo que o operador encontre o precedente, caberá ao órgão de cúpula (pensem no controle de qualidade na fábrica) dizer se o precedente ou a tese é persuasiva ou qualificada.

(v) afinal, os produtos que não se encaixam são descartados na linha de produção.

Claro, nisso tudo deve ser juntado uma dose considerável de análise econômica e consequencialismo, o que retirará o que resta de juridicidade da discussão. Claro, é fundamental essa estratégia para o triunfo dessa era dos algoritmos. Se o direito serve (deveria servir) para impedir que a política, a economia e a moral o corrijam, é fundamental, para o triunfo da era da técnica, que o próprio direito seja fagocitado, anulado. Portanto, já não será direito. Será apenas uma estratégia de poder.

Parece que o causídico e o professor de direito acreditaram na tese da professora Lee Epstein, da consagrada Universidade de Harvard, em palestra na USP: não é necessário estudar teoria do direito – melhor é entender as regras do baseball, disse ela. Pronto: uma simples técnica.

Bom, Machado de Assis já sabia disso no século 19. Para ele, nas palavras de um personagem, melhor que escrever um tratado sobre carneiros é comprar um, assar e convidar os amigos.

Os gênios da revolução da IA arriscam muito. No mundo todo. Sabem tudo de algoritmos, dados, padrões, mas podem esquecer que alguém deve fazer as perguntas. E programar o robô. Sabem tudo, mas, pergunta-se: não deveriam ler Searle, Gadamer, Wittgenstein, por exemplo? Ou os cientistas que criticam o “produto IA”? Como Chomsky, por exemplo. A propósito, há países como a França, por exemplo, preocupados com o avanço do uso da IA no âmbito das práticas judiciárias. Ao contrário do Brasil, em que parece não haver limites. A ver, pois.

Talvez devessem ler os poetas que criticam a IA. Como Jorge Gomes Miranda, autor português muito premiado, que escreve:

Um algoritmo olha/para o abismo/e o nada que vê/não permite compreender/a natureza humana”.

Numa palavra: paradoxalmente, a revolução da IA no direito é anti-intelectual. A um, porque rejeita a possibilidade de uma objetividade possível no pensamento jurídico. A dois, porque é cega à filosofia. No fundo, é como o triunfo do Know Nothing, o partido do Saber Nenhum, na distopia de MacIntyre dos anos 80. Na distopia, quando alguns corajosos (stoic mujic…) resolvem resistir, só encontram fragmentos. Daí meu aviso. Quando, como na distopia de MacIntyre, buscarmos recuperar os livros, as obras completas, os fatos jurídicos algoritmizados, poderá acontecer de só nos restar fragmentos. ChatGPTizados. Frutos da árvore envenenada pela Meta-IA (aliás, o psicólogo Álvaro Machado Dias, em curso que ministra na Folha de S.Paulo, fala em Metamodernidade, além da “psicologia das máquinas”).

Talvez estejamos meta ferrados. Nada artificialmente.

E, de novo, não venham com schumpeterismo, falando em “destruição criativa”. Para Schumpeter, a destruição criativa é o processo de criação de algo novo, que implica a destruição do que já existia. OK. Mas, se é isso, então o novo é a robotização e o velho é a teoria e o estudo do Direito? Isso deve ser destruído?

Numa palavra, ainda há espaço para reflexões? Para óperas?

 


[1] Por várias vezes o computador alterou Aída para Ainda. Sintoma…!

[2] Aliás, minha coluna intitulada  “Com ‘linguagem simples’, mundo jurídico se apequena e vira um brechósofreu fortíssimos ataques, mormente decorrentes do analfabetismo funcional, pelo qual quem acessa consegue ler (se chegar ao fim do texto), mas não consegue interpretar; o simbólico disso foi um causídico (sic) que, pelo fato de eu ter utilizado uma anedota sobre Einstein e a simplificação da teoria da relatividade, acusou-me de “comparar” física e direito – o que mostra o tamanho do buraco em que nos metemos. Outros “interpretaram” o texto como uma ode à elitização; um professor (sic) criticou-me por incentivar essa elitização, enquanto ele, na sala de aula, “se esforça para simplificar…”.  Pior: muitas críticas vindas de bacharéis que separam sujeito e verbo. E ainda querem simplificar…

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