Contrato emergencial: a imprevisibilidade não pode ser induzida
16 de janeiro de 2025, 8h00
A mitologia grega nos ensina que a previsibilidade absoluta, assim como a onisciência, não faz parte da natureza humana, e que prever sempre o futuro pode ser mais sina do que virtude. A ninguém é dado o pleno domínio dos acontecimentos, razão pela qual o ordenamento jurídico confere tratamento especial às hipóteses de imprevisibilidade, disciplinando, inclusive no âmbito da administração pública, as situações emergenciais.
Diz a lenda que Sísifo, dotado de grande astúcia, vivia aplicando golpes e enganando os deuses, sempre planejando cada detalhe de seus empreendimentos ardilosos. Suas tramas eram bem-sucedidas sobretudo por sua extraordinária capacidade de prever com precisão o resultado de suas ações. Esse poder de previsão, no entanto, acabou selando seu destino, tornando-se sua punição eterna. Ele, rei de Corinto, enganou Tânatos e conseguiu neutralizar a morte, prendendo-a a uma coleira, o que ameaçou a segurança dos deuses, na medida em que os inimigos do Olimpo não mais morriam, tornando-se imunes à guerra.
Como punição, foi condenado a rolar uma grande pedra até o topo de uma montanha, a qual retornava ao sopé toda vez que atingia o cume, em um ciclo perpétuo de previsibilidade. Toda vez que iniciava a fatigante jornada de empurrar aquela rocha, já sabia de antemão que ela retornaria ao ponto de origem, tornando inútil seu desforço. A tristeza de saber exatamente o que iria acontecer pelo resto de sua vida foi sua pena.
Isso nos lembra que a imprevisibilidade faz parte da vida e é normal que sempre haja acontecimentos que fujam de nosso controle, sem que isso signifique falta de planejamento. Essa é a chamada situação emergencial, a qual é regulada no âmbito da administração pública. Evidentemente, essa não é a regra, ao contrário, a Lei de Improbidade (Lei nº 8.429/1992), em seu artigo 10, VIII, considera ato de improbidade toda ação dolosa de frustrar a licitude de processo licitatório, sancionando o administrador ímprobo com a perda de todos os bens e valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos por até 12 anos, pagamento de multa civil equivalente ao dobro do dano e proibição de contratar com o poder público por até 12 anos (artigo 12 da lei, II).
Nossa CF, em seu artigo 37, XXI, determina que os contratos públicos devem ser precedidos de licitação. Assim, a regra é o planejamento adequado da ação pública, com a observância do princípio da impessoalidade e a seleção objetiva da proposta mais vantajosa ao erário, mediante um procedimento que estabeleça a justa competição entre todos os interessados em contratar com o poder público. A exceção só se apresenta quando a situação de normalidade não estiver presente, em razão da extraordinária ocorrência do evento imprevisível. A situação excepcional está prevista no artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021 (antigo artigo 24, IV, da revogada Lei de Licitações – Lei Federal nº 8.666/1993). Referido dispositivo dispensa a licitação nos casos de emergência e calamidade pública.
Ninguém está livre de situações imprevisíveis que demandem ações urgentes do administrador público, sob pena de prejuízo ao erário, interrupção na prestação de serviços públicos contínuos, risco à segurança de pessoas ou comprometimento de obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.
A situação emergencial se caracteriza pela conjugação simultânea de diversos elementos e estão normatizados como pressupostos objetivos da emergência. São eles:
“a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação; a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas; a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso; a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado” (Decisão Plenária n° 347/1994 do TCU).
Com efeito, é imprescindível que a urgência não tenha sido causada pela desídia ou premeditação do administrador, o qual não pode beneficiar-se de sua própria torpeza para ver-se livre do dever de licitar. Emergência é situação não desejada, não prevista e inevitável.
Deste modo, o pressuposto legal da inevitabilidade é o fato gerador da imprevisibilidade amparada pelo ordenamento jurídico e autorizadora da contratação emergencial. É exatamente esse o fator decisivo que distingue a legítima dispensa do procedimento licitatório do ato doloso de improbidade. Trata-se, portanto, da pedra-de-toque do administrador público para viabilizar a contratação emergencial, amparado nas disposições do inciso IV, artigo 24, da revogada Lei Federal nº 8.666/1993, e no atual artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021. Tais julgados paradigmáticos, oriundos do Plenário do TCU, confirmam que contratação emergencial não pode ser decorrente de ausência de planejamento ou incúria do gestor público:
“A contratação emergencial destina-se somente a contornar acontecimentos efetivamente imprevistos, que se situam fora da esfera de controle do administrador e, mesmo assim, tem sua duração limitada a 180 dias, não passíveis de prorrogação (art. 24, inciso IV, da Lei 8.666/1993). (Acórdão 4570/2014- Plenário | Relator: JOSÉ MUCIO MONTEIRO).”
“É irregular a contratação tida como emergencial, por dispensa de licitação, sempre que não esteja presente o elemento da imprevisibilidade dos acontecimentos futuros, pois, nesses casos, restam demonstradas a falta de planejamento e a desídia administrativa por parte do gestor público. (Acórdão 1030/2008-Plenário | Relator: VALMIR CAMPELO).”
“A dispensa de licitação por situação emergencial caracterizada não em fatos novos e imprevisíveis, mas em situação decorrente de ausência de planejamento do gestor conduz à irregularidade das contas e à imposição de multa. (Acórdão 798/2008- Primeira Câmara | Relator: MARCOS BEMQUERER)”.
A ausência intencional de planejamento para provocar artificialmente a situação emergencial ou a demora excessiva resultante de falha da administração, descaracteriza por completo a excludente da imprevisibilidade. São exemplos disso: desconhecimento intencional de situações historicamente de risco; execução de serviços além do estritamente necessário; fracionamento das obras causando recontratações; reduzido número de fiscais ou mão de obra; inadequadas qualificações operacional e econômica das contratadas; demora judicial decorrente de questionamentos jurídicos acerca do caráter restritivo do edital; alterações contratuais não formalizadas etc. Essas inferências normalmente são identificadas como pretexto para as contratações emergenciais. São fatores ilegítimos não autorizadores das situações emergenciais. Nesses casos, não houve imprevisibilidade, na forma preconizada pela nossa legislação e jurisprudência contemporânea dos Tribunais de Contas, mas dispensa ilegal do procedimento licitatório.
Importante pontuar que a contratação emergencial nasce de situação efetivamente imprevisível e, portanto, que não pode ser perene, sendo autorizada pelo prazo de um ano e proibida a recontratação de empresa (cf. artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021). No regime anterior (artigo 24, inciso IV, da Lei Federal nº 8.666/1993), não havia impedimento à seguidas recontratações com base em situação emergencial, causando um efeito de potencial perenidade em contratações diretas com a mesma empresa e consequente burla ao princípio da isonomia entre os licitantes.
Sobre tal fator, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou, ante a provocação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890, de tal forma a esclarecer o escopo do dispositivo questionado (artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021): coibir contratações emergenciais sucessivas, salvo antes do decurso do prazo de um ano, conjugado ao impedimento de recontratação fundada na mesma situação. Essa interpretação conforme à Constituição Federal de 1988, respeita o princípio da satisfação do interesse público, conforme acentuado na deliberação unânime do Plenário da Excelsa Corte, da mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890. Tal, no entanto, “não impede que a empresa participe de eventual licitação substitutiva à dispensa de licitação ou seja contratada diretamente por fundamento diverso previsto em lei, inclusive outra emergência ou calamidade pública, sem prejuízo do controle por abusos ou ilegalidades verificados na aplicação da norma.”
Em uma aplicação prática dessa leitura do artigo 75, VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021, se for introduzida a ocorrência do fracionamento das obras, o contexto se torna violador à regra do artigo 37, XXI, da Constituição de 1988, que estabelece a obrigatoriedade da licitação e a excepcionalidade da contratação direta, situações de matriz republicana. A possibilidade legal de contratação emergencial pressupõe o requisito da autêntica imprevisibilidade, limitada no tempo e circunscrita ao objeto estritamente necessário, ante o risco à segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos ou bens públicos ou privados, cumprindo, em si, um princípio de matriz republicana nas sociedades contemporâneas. Aos órgãos de controle cabe sempre avaliar caso a caso, com critério, seriedade e ponderação, a fim de garantir a prestação do serviço público mediante dispensa de licitação nas hipóteses verdadeiramente necessárias, pena de afronta ao princípio republicano.
Referências
Constituição Federal de 1988. Em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acessado em 09/01/2025.
Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm, acessado em 09/01/2025
Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm, acessado em 09/01/2025.
Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6890. Em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15370249192&ext=.pdf, acessado em 09/01/2025.
Tribunal de Contas da União. Decisão Plenária n° 347/1994. Em https://www.tcu.gov.br/acordaoslegados/1994/Plenario/DC-1994-000347-CA-PL.pdf, acesso em 09/01/2025.
Wikipédia, Sísifo. Em https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADsifo, acessado em 09/01/2025.
World History Encyclopedia, Sísifo. Em https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-13620/sisifo/, acessado em 09/01/2025.
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