Opinião

CBIOs no contexto da não-cumulatividade do PIS e da Cofins

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16 de janeiro de 2025, 21h16

Ao final de 2017, no contexto das severas alterações climáticas observadas mundialmente e das metas traçadas no Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, foi publicada a Lei nº 13.576/17, responsável por regular a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio).

Um dos principais instrumentos para colocar em prática as mudanças/adequações ambientais pretendidas pelo governo brasileiro — na qualidade de protagonista mundial na defesa das pautas ambientais — foi a criação do mercado de créditos de descarbonização voltado para o setor de biocombustíveis, os denominados CBIOs.

Em resumo, a negociação dos CBIOs funciona da seguinte forma: enquanto os produtores de biocombustíveis (de matriz energética “limpa”) estão autorizados a emitir títulos a cada tonelada de carbono que deixa de ser lançada, os produtores e distribuidores de combustíveis fósseis (emissores de CO2) são obrigados a adquiri-los em quantidades que são estabelecidas pelos órgãos reguladores.

Ou seja, trata-se de um sistema de troca de créditos gerados pelos produtores de biocombustíveis e a serem adquiridos pelos agentes com atividades mais poluentes de forma a controlar e equilibrar a quantidade de CO2 emitido na atmosfera e incentivar a descarbonização da cadeia de combustíveis, com fundamento no princípio do poluidor-pagador e no artigo 225, §1º, V, da Constituição [1].

Ativos sui generis

Como os CBIOs são ativos sui generis, naturalmente começaram a surgir dúvidas acerca de sua natureza para fins de tributação e escrituração contábil e que, até o momento, continuam em debate no Judiciário.

Uma das questões envolvendo a tributação dos CBIOs que foi judicializada em razão da divergência entre a interpretação dos contribuintes e do Fisco refere-se à caracterização da receita com a sua negociação como financeira ou não, o que influencia diretamente na alíquota do PIS e da COFINS devidos pelas empresas emissoras dos títulos.

De um lado, nos parece lógico que as receitas decorrentes da venda dos CBIOs sejam configuradas como financeiras, especialmente porque a própria administração pública assim o fez quando regulamentou a atividade de negociação destes ativos em bolsa, especialmente por meio da Resolução CVM nº 172/22, que, em seu Anexo Normativo I, assim dispôs:

Art. 2º Para os efeitos deste Anexo Normativo I, entende-se por:

I – ativos financeiros, por natureza ou equiparação:

c) créditos de descarbonização – CBIO e créditos de carbono, desde que registrados em sistema de registro e de liquidação financeira de ativos autorizado pela CVM ou pelo Banco Central do Brasil ou negociados em mercado administrado por entidade administradora de mercado organizado autorizado pela CVM

Por isso, seria contraditório imaginar que a Fazenda Pública pudesse defender posicionamento contrário, considerando que RFB, PGFN e CVM fazem parte da administração federal. Além disso, a CVM, como autarquia criada para fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores mobiliários, certamente aparenta ser o órgão com maior qualificação e autoridade para definir a natureza dos ativos que estão sob sua fiscalização, não sendo razoável que os órgãos da administração tributária ignorem as definições e orientações conferidas por aquela autarquia (até mesmo por força do que disciplina o artigo 110 do CTN).

Importância da RenovaBio

No entanto, na prática, a Fazenda Nacional, diminuindo a própria importância da RenovaBio e indo de encontro ao espírito da Constituição, ultrapassa a definição conferida pela CVM para defender que a negociação dos CBIOs pelas produtoras de combustíveis limpos resulta em receita típica da atividade das emissoras, o que, então, as sujeita ao conceito de “receita bruta” disposto no artigo 12, IV, do decreto-lei nº 1.598/1977 (com a redação conferida pela Lei nº 12.973/14), atraindo, portanto, a incidência do PIS e da Cofins em sua alíquota “cheia”, ao invés daquela reduzida incidente sobre as receitas financeiras.

Spacca

A controvérsia foi recentemente julgada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), oportunidade em que a Corte, reformando o entendimento do juízo da 8ª Vara Cível Federal de São Paulo, entendeu que as receitas decorrentes da venda dos CBIOs possuem natureza financeira e, por isso, sujeitas às alíquotas próprias, previstas no artigo 1º do decreto nº 8.426/15.

De forma categórica e pedagógica, o desembargador Rubens Calixto, relator para julgamento da apelação nº 5028277-80.2022.4.03.6100, entendeu que “diferentemente das receitas próprias, fruto direto da venda de bens e serviços, o CBIO deve ser entendido como estímulo governamental às atividades que contribuam para reduzir a emissão de CO2, em consonância com os compromissos assumidos pelo país ao assinar e ratificar o Acordo de Paris”, concluindo, ao final, que “Incoerente seria adotar essa forma de estímulo e submetê-lo a tratamento tributário comum, na contramão dos objetivos governamentais e internacionais, neutralizando, em parte, os seus efeitos positivos”.

O julgamento foi finalizado pela 3ª Turma do TRF3 em 18/10/24, porém foi alvo de embargos de declaração pela Fazenda Nacional ao racional de que “a parte impetrante é produtora de etanol, há de se concluir que, inegavelmente, faz parte da sua produção (isto é, está dentro do feixe de suas atividades econômicas) os créditos de descarbonização, de maneira que a receita bruta obtida com a comercialização/venda destes bens integra a base de cálculo das contribuições ao PIS e à COFINS”. O recurso será julgado em fevereiro deste ano.

Tributação dos CBIOs

A conclusão da 3ª Turma do TRF3 nos parece irretocável e será de grande valia para a discussão da tese junto aos tribunais superiores, já que é muito provável que a PGFN ainda siga com a discussão após esgotamento das vias recursais ordinárias.

No entanto, entendemos que a discussão da forma de tributação dos CBIOs não deve estacionar apenas na incidência do PIS e da Cofins sobre as receitas obtidas com a sua negociação pelas emissoras, devendo se estender também sobre a forma de aproveitamento dos créditos decorrentes de sua aquisição para os contribuintes sujeitos à sistemática não-cumulativa daquelas contribuições.

É que, se a Receita Federal pretende defender que a receita de negociação dos CBIOs é típica das emissoras dos títulos, também deve admitir que os contribuintes adquirentes dos CBIOs podem aproveitar créditos relacionados à sua aquisição, na qualidade de “insumos” de sua atividade empresarial.

Nesse contexto, cumpre lembrar que o STJ afastou a necessidade de que os insumos para fins de creditamento do PIS e da Cofins se incorporem fisicamente ao produto, definindo que são eles as despesas necessárias à obtenção de receitas pelo contribuinte — ou, então, utilizando o denominado “método subtrativo indireto”, de modo a configurar os insumos como toda despesa que, se subtraída da atividade da empresa, lhe impossibilitaria de obter receitas.

Ora, como a despesa com a aquisição dos CBIOs é uma imposição legal às produtoras e distribuidoras de combustíveis fósseis — sob pena de severas sanções administrativas —, deve-se reconhecer a sua natureza de insumo, coadunando-se, inclusive, com o entendimento da própria RFB ao emitir a Solução de Consulta Disit/SRRF06 nº 6.026/2021, e com o voto proferido pela ministra Regina Helena Costa no julgamento do recurso especial repetitivo nº 1.221.170/PR.

Não foi essa, no entanto, a postura da Fazenda Nacional ao discutir o tema nos autos do mandado de segurança nº 5070324-86.2022.4.02.5101, que tramitou perante a 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro, oportunidade em que defendeu que as despesas com a aquisição de CBIOs não se enquadrariam nos conceitos de essencialidade e relevância definidos pelo STJ e, por isso, não dariam direito à apuração de créditos de PIS e Cofins.

Receita financeira

Outro ponto que chama atenção com relação à tributação das negociações de CBIOs está diretamente ligado à sua configuração como receita financeira.

Como visto, é possível que os tribunais superiores se manifestem em breve sobre a questão, notadamente a partir do recente julgamento do TRF3 que, aplicando a interpretação da CVM, determinou que as receitas decorrentes da negociação dos CBIOs sejam tributadas com as alíquotas instituídas no artigo 1º do Decreto nº 8.426/15 em razão da natureza financeira dos títulos.

Porém, faz-se necessário que outro flanco da discussão seja aberto a partir do enquadramento das receitas decorrentes das negociações de CBIOs como financeiras, qual seja, a possibilidade de aproveitamento das despesas com a aquisição de tais títulos, mesmo em se tratando de despesas financeiras.

Isso porque, como já é sabido, apesar de as alíquotas de PIS e Cofins sobre receitas financeiras terem sido parcialmente restabelecidas com a edição do artigo 1º do Decreto nº 8.426/15, fato é que a sistemática não-cumulativa daquelas contribuições foi esquecida quando do restabelecimento em questão — ou seja, a tributação de tais receitas não foi acompanhada da autorização de aproveitamento do crédito de despesas financeiras na mesma proporção.

O restabelecimento da possibilidade de aproveitamento de créditos com despesas financeiras já seria o caminho mais justo e razoável a partir da interpretação sistemática da legislação tributária (afinal, a proibição do crédito de despesas financeiras ocorreu justamente em razão da redução a zero das alíquotas de PIS e Cofins sobre as receitas financeiras), porém a questão torna-se mais relevante no contexto da política ambiental proposta na RenovaBio.

CBIO viável aos contribuintes

Afinal, para que a negociação dos CBIOs siga se mostrando uma opção viável aos contribuintes, faz-se necessário que as relações tributárias decorrentes das obrigações daí decorrentes sejam isonômicas e privilegiem a neutralidade fiscal (princípio que, inclusive, ganhou status constitucional após a promulgação da Emenda Constitucional nº 132/23).

A saber, desde a Emenda Constitucional nº 132/23, há no texto constitucional a possibilidade de tratamento diferenciado para os biocombustíveis, como forma de estimular e estabelecer um diferencial competitivo para o setor, considerando o aumento do petróleo no cenário internacional à época. Atrelado a isso e à crescente das crises climáticas, também foi incluído o princípio da defesa ao meio ambiente no âmbito do Sistema Tributário Nacional[2].

Portanto, mais do que a neutralidade fiscal, o legislador constitucional permitiu a concessão de regime diferenciado de forma a beneficiar o setor de biocombustíveis, o que faz com que a não concessão do crédito (ainda que para o adquirente dos títulos) no contexto do RenovaBio seja ainda mais danosa. Isto porque, o Fisco acaba se utilizando de uma obrigação legal para majorar indiretamente o ônus da compra de CBIOs, o que acaba por quebrar a confiança e a cooperação entre administração e contribuinte, gerando insegurança com políticas de precificação do carbono no país[3].

Além disso, exsurge da reforma constitucional tributária a positivação do princípio da justiça tributária (vide-se artigo 145, § 3º, da Constituição), o que torna mandatório que a administração tributária se comporte de forma justa na relação com o contribuinte.

Justiça tributária

A justiça tributária, termo não definido legalmente, porém, amplamente utilizado pela jurisprudência pátria, consiste na pacificação das relações entre o ente tributante, na qualidade de detentor dos meios coercitivos de cobrança dos seus créditos, e o sujeito passivo da obrigação tributária, enquanto devedor de valores legalmente definidos.

É o que lecionou com muita precisão o professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, em texto publicado na ConJur, ao assumir para si a difícil tarefa de definir o termo “justiça fiscal”.

A justiça fiscal sugere comutatividade, na medida (tanto quanto possível, exata) que se deva extrair de cada um o quanto efetivamente devido. Refiro-me, evidentemente, à taxa de extração fiscal, que fixa o montante que o poder tributante está autorizado a retirar de quem recolhe tributos, direta ou indiretamente. Isto é, mediante cobrança de tributos ou por intermédio de políticas inflacionárias. (…)

O critério é relacional. Por óbvio, deve ser sempre aferido em relação a alguma coisa ou a alguém; busca-se realidade proporcional e simétrica entre situações tributáveis e sujeitos passivos. (…)

A justiça fiscal é uma justiça equitativa, numa dimensão anunciada por John Rawls e recentemente retomada por Amartya Sen, no sentido de que uma imaginária razão pública deve nortear a formulação de nossas instituições para que estas possam — substancialmente — se revelarem como efetivamente justas.

A justiça fiscal seria, assim, um combinado de justiças distributivas, comutativas, repressivas, equitativas e legais. Seu exato termo médio consistiria na adequada distribuição de encargos, com a não menos adequada distribuição de resultados, informando instituições justas, punindo os desviantes, sempre, no também não menos importante contexto de leis devidamente discutidas e aprovadas. Justiça fiscal é indicativo de funcionamento de instituições democráticas.

Por isso, sendo obrigatória a tributação da receita decorrente da negociação de CBIOs, nada mais justo do que tal obrigação seja acompanhada da possibilidade de aproveitamento de créditos com as despesas decorrentes da aquisição de tais títulos.

 


[1] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(…)

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

[2]  Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (…)

§ 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente.

[3] Destaca-se que se não houvesse obrigação legal ao adquirente, a consequência dessa prática seria o desincentivo do RenovaBio e aos biocombustíveis, o que prejudica práticas regulatórias e extrafiscais de proteção ao meio ambiente.

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