Opinião

Assédio moral no trabalho sob a ótica da Convenção 190 da OIT e a jurisprudência do TST

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  • é advogada no escritório Pádua Faria Advogados graduada e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e especialista em Gestão de Pessoas pelo Instituto de Pesquisas e Educação Continuada em Economia e Gestão de Empresas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Pecege — USP/Esalq).

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16 de janeiro de 2025, 9h15

É indiscutível que o local de trabalho deve ser um ambiente que promova civilidade, educação e saúde, protegendo a dignidade dos trabalhadores. Isso não só contribui para a produtividade, mas também respeita os direitos fundamentais das pessoas. O artigo 225 da Constituição garante a todos o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, abrangendo também um ambiente de trabalho saudável. Neste sentido, o conceito de trabalho decente significa o respeito aos direitos básicos dos trabalhadores, essenciais para manter sua dignidade. A falta de observância a esses direitos leva à degradação da pessoa.

Embora não exista uma lei nacional específica sobre assédio moral no trabalho, várias normas condenam essa prática. O assédio moral é uma conduta abusiva que pode se manifestar por palavras, comportamentos ou gestos repetitivos, ferindo a dignidade do trabalhador. Esse tipo de assédio pode causar doenças e prejudicar a vida profissional, social e pessoal do trabalhador, ocorrendo no ambiente de trabalho ou por causa dele.

O assédio moral também é conhecido por termos como manipulação perversa, terrorismo psicológico, mobbing, bullying ou harcèlement moral. Essas práticas atentam contra a dignidade humana, muitas vezes originadas por ciúmes, inveja e rivalidades, gerados pela comparação e ostracismo entre os trabalhadores.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) possui dispositivos que reprimem algumas condutas que podem caracterizar assédio moral, como a proibição de alterações unilaterais prejudiciais ao empregado e exigências abusivas (artigos 468, 469 e 483 da CLT). Tais normas vedam práticas como exigir serviços além das forças do empregado, tratamentos rigorosos excessivos, colocar o empregado em perigo manifesto, descumprir obrigações contratuais e atos lesivos à honra e boa fama do trabalhador ou de suas famílias.

Por sua vez, o artigo 5º, incisos V e X da Constituição Federal, garante o direito à indenização por dano material ou moral decorrente da violação da imagem, bem como dos direitos à intimidade, vida privada e honra. Ainda, o artigo 7º, inciso XXII, prevê a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde e segurança.

Tipos de assédio

O assédio moral é geralmente sutil, pois agressões abertas permitem revide e expõem a estratégia do agressor. Algumas condutas identificáveis como assédio moral incluem: metas abusivas, retirada de autonomia, tarefas humilhantes, gritos ou desrespeito constante, espalhar rumores, punições vexatórias, mensagens depreciativas, isolamento do trabalhador, ócio forçado, monitoramento excessivo, falta de informações essenciais, críticas sistemáticas e exageradas, críticas à vida pessoal, ligações excessivas fora do trabalho, punições por afastamento médico, exigência de que mulheres não engravidem, alteração de horários de trabalho, obrigar a fazer dancinhas nas redes sociais, dentre outras. Portanto, inúmeras condutas podem ser classificadas como assédio moral, geralmente visando provocar sofrimento ou desmotivação, causando prejuízos pessoais e profissionais.

Existem três tipos de assédio no trabalho: vertical, horizontal e misto:

– Assédio moral vertical: envolve hierarquias distintas, podendo ser descendente (superior hierárquico vitimiza subordinado) ou ascendente (subordinado vitimiza superior);

– Assédio moral horizontal: ocorre entre colegas de trabalho sem relação hierárquica;

Assédio moral misto: combina assédios vertical e horizontal simultaneamente, afetando o trabalhador por superiores e colegas.

Assim, qualquer trabalhador, independentemente de sua posição hierárquica, pode sofrer assédio moral.

Na atual configuração jurídica brasileira, existe o entendimento majoritário de que uma conduta isolada não configura assédio moral, que é uma prática complexa, exigindo habitualidade, discriminação, agressão a indivíduos ou grupos e prolongamento no tempo. No entanto, mesmo uma conduta ofensiva isolada poderia constituir outras infrações jurídicas, gerando responsabilidade civil, administrativa, trabalhista ou criminal, dependendo do caso.

Convenção 190

Por outro lado, em uma perspectiva mais ampla, o Direito Internacional apresenta normas que divergem desse entendimento. A Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Violência e Assédio no Trabalho, define em seu artigo 1º, “a”, que: “a expressão ‘violência e assédio’ no mundo do trabalho designa um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou ameaças de tais comportamentos e práticas, manifestadas apenas uma vez ou repetidamente, que tenham por objetivo, que causem ou são suscetíveis de causar, um dano físico, psicológico, sexual ou econômico, incluindo as situações de violência e assédio em razão de gênero.”

A Convenção 190 é pioneira ao fornecer uma definição internacional de violência e assédio no ambiente de trabalho. Portanto, debates sobre essa convenção são essenciais para que os legisladores compreendam sua importância e votem pela sua ratificação no Brasil.

Spacca

Adotada pela OIT desde 2019, a Convenção 190 já foi ratificada por 25 países, entre eles Argentina, México e Uruguai. Em 8 de março de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou ao Congresso Nacional um pedido para que o Brasil ratifique a convenção, que agora tramita de forma semelhante a uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Atualmente, a Convenção 190 aguarda apreciação na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados.

Vale notar que, ao contrário da doutrina predominante que exigia a reiteração e sistematização de condutas para caracterizar o assédio moral, a Convenção nº 190 considera que a violência e o assédio no trabalho podem ser identificados em atos únicos, desde que sejam graves o suficiente para ultrapassar os limites do poder diretivo do empregador e se enquadrarem na ilegalidade. Isso abre espaço para uma revisão doutrinária sobre o aspecto temporal que, até então, definia o assédio moral.

Jurisprudência

E é neste sentido que vem se posicionando a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, ainda que não ratificada sobredita Convenção, conforme os julgados abaixo, a título de exemplo:

INDENIZAÇÃO POR ASSÉDIO MORAL. CONDUTA DISCRIMINATÓRIA EM RAZÃO DO GÊNERO. OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DA MULHER TRABALHADORA. DIREITOS HUMANOS DA MULHER. DIRETRIZES DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA OIT (4º E 5º). CONVENÇÕES Nº 111 E 190 DA OIT. AGENDA 2030 DA ONU. ODS Nº 5 E 8. RECOMENDAÇÕES GERAIS Nº 33 E 35 DO CEDAW. CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER (“CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ”). APLICAÇÃO DO PROTOCOLO DE JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO DO CNJ. CABIMENTO DE MAJORAÇÃO DA INDENIZAÇÃO. […] No âmbito internacional, ainda que, de uma forma geral, as normas da OIT se direcionem a proteção de todas as pessoas (homens e mulheres), muitas delas, considerando a desigualdade estrutural de gênero manifesta nas relações de trabalho por todo o mundo, visam à proteção específica das mulheres para avançar no objetivo de promoção dos direitos iguais no trabalho. […] Também merece destaque a Convenção 190 da OIT, aprovada em 10 de junho de 2019, que trata da eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho, nos setores públicos e privados – cujo processo de ratificação se encontra em curso na Câmara dos Deputados, por meio da Mensagem de Acordos, convênios, tratados e atos internacionais – MSC 86/2023 . Reconhece a Convenção 190 em seu preâmbulo: “o direito de todas as pessoas a um mundo de trabalho livre de violência e assédio, incluindo a violência e o assédio com base no gênero “; “que a violência e o assédio no mundo do trabalho podem constituir uma violação ou abuso dos direitos humanos, e que a violência e o assédio são uma ameaça à igualdade de oportunidades, são inaceitáveis e incompatíveis com o trabalho decente” ; “a importância de uma cultura de trabalho com base no respeito mútuo e na dignidade do ser humano destinada a prevenir a violência e o assédio “; e “que a violência e o assédio com base no género afetam de forma desproporcionada as mulheres e as raparigas, e reconhecendo que uma abordagem inclusiva, integrada e sensível ao género, que aborde as causas subjacentes e os factores de risco, incluindo os estereótipos de género, a multiplicidade e a intersecção das formas de discriminação, e a desigualdade das relações de poder com base no género, é essencial para acabar com a violência e o assédio no mundo do trabalho”. Fundada na Declaração de Filadélfia, a Convenção 190 possui como núcleo a dignidade da pessoa humana, e é o primeiro instrumento que congrega a igualdade e não discriminação – bases norteadoras da atuação da OIT na promoção da Justiça Social – com a segurança e saúde no trabalho. A Convenção 190 reconhece a violência e o assédio como questões relacionadas à segurança e saúde no trabalho (artigos 9, 10 (g) e (h), 11 (a)), 5º princípio fundamental da OIT. Assim, inobstante a Convenção 190 ainda não tenha ingressado na ordem jurídica interna brasileira, há que se ponderar que as diretrizes constantes desse diploma devem ser promovidas e respeitadas, como um direito fundamental de todos os trabalhadores e trabalhadoras a um meio ambiente do trabalho livre de violência e assédio com base no gênero. […] Firmados tais pontos, na hipótese , o direito à indenização pretendida pela Reclamante se alicerça em alegada conduta abusiva da chefia imediata. Dos elementos transcritos no acórdão, fica evidenciada a discriminação, inclusive de gênero, perpetrada pela chefia da Reclamante – tanto que reconhecida pelo Tribunal Regional que confirmou a sentença de origem nesse sentido, demonstrando atenção e aplicação a todo o arcabouço normativo descrito […] Recurso de revista conhecido e provido. (TST, RRAg-11608-79.2016.5.15.0102, relator Maurício Godinho Delgado, 28 de maio de 2024, trechos da ementa, grifos nossos)

AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. REEXAME DE FATOS E PROVAS. VEDAÇÃO EM INSTÂNCIA EXTRAORDINÁRIA. SÚMULA 126 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. ASSÉDIO ELEITORAL NAS RELAÇÕES DE TRABALHO. CONSTRAGIMENTO POLÍTICO. ABUSO DO PODER ECONÔMICO EMPRESARIAL. GRAVE AFRONTA À DEMOCRACIA NO MUNDO DO TRABALHO. VEDAÇÃO À CAPTURA DA DEMOCRACIA PELO PODER ECONÔMICO. REPRESSÃO À BURLA DO PROCESSO DEMOCRÁTICO. LIMITAÇÃO DO PODER DIRETIVO PATRONAL. IMPOSSIBILIDADE DE PROJEÇÃO SOBRE AS LIBERDADES DO TRABALHO. DEMOCRACIA COMO “LUMINAR NORMATIVO” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ASPECTO MULTIDIMENSIONAL DO DIREITO AO VOTO NO REGIME DEMOCRÁTICO. PRESERVAÇÃO DA PLURALIDADE POLÍTICA. PROTEÇÃO À SAÚDE E À SEGURANÇA NO MUNDO DO TRABALHO. AMBIENTE DE TRABALHO LIVRE DE ASSÉDIO. DIREITO AO TRABALHO DECENTE. RESPEITO À CIDADANIA EM SUA DIMENSÃO SOCIAL. […] O assédio eleitoral nas relações de trabalho representa uma dessas tentativas de captura de voto do trabalhador pelo empregador, que busca impor-lhe suas preferências e convicções políticas. Trata-se de espécie do gênero “assédio moral”, e por assim o ser (espécie), a ele não se reduz. Configura-se quando “um empregador oferece vantagens ou faz ameaças para, direta ou indiretamente, coagir um empregado a votar ou não em um determinado candidato.” (Feliciano, Guilherme & Conforti Luciana, 2023). Representa violência moral e psíquica à integridade do sujeito trabalhador e ao livre exercício de sua cidadania. Pode ser intencional ou não, bem como pode ter ocorrido a partir de única ou reiterada conduta. Os danos são de natureza psicológica, física ou econômica, os quais serão medidos a partir dos efeitos – e não da reiteração- causados na vítima (Convenção nº 190 da OIT). Ainda, as características específicas do meio ambiente de trabalho, bem como as vulnerabilidades que intersecionam a vida dos trabalhadores são elementos essenciais para a identificação do assédio eleitoral. Este, aliás, tem no psicoterror direcionado ao trabalhador – abusos de poder, dominação, intencionalidade (Hirigoyen, 2015)- uma de suas características centrais. Essa modalidade de assédio, que abarca igualmente constrangimentos eleitorais de toda natureza, pode ser praticada antes, durante ou após as eleições, desde que os atos estejam relacionados ao pleito eleitoral. Incluem-se na ideia de “constrangimentos eleitorais” os atos de pressão, discriminatórios, coativos e outros análogos realizados de forma direta ou indireta no mundo do trabalho. É essa a interpretação combinada do art. 297 do Código Eleitoral c/c Convenções 111, 155, 187 e 190 da OIT, somados aos dispositivos supramencionados. Ademais, o direito a um ambiente de trabalho livre de assédios, bem como o direito ao voto livre, secreto e informado está associado a outras liberdades fundamentais, tais como o direito a não discriminação, à livre manifestação de pensamento, à convicção política ou à religiosa, conforme prevê a Convenção nº 111 da OIT. Esta veda, entre outros, qualquer distinção em matéria de emprego, decorrente da opinião política do trabalhador. Ainda sob o pálio da legislação internacional, as Convenções nº 155 (Segurança e Saúde dos Trabalhadores) e nº 187 (o Quadro Promocional para a Segurança e a Saúde no Trabalho) da OIT preveem medidas de proteção à saúde e à segurança no trabalho e igualmente o direito dos trabalhadores a um ambiente laboral livre de riscos, no que se incluem aqueles relacionados à integridade psíquico-social dos trabalhadores (TST, Ag-AIRR-195-85.2020.5.12.0046, relator Alberto Bastos Balazeiro, 28 de maio de 2024, trechos da ementa, grifos nossos).

Desta forma, é certo que a atual legislação brasileira, embora abrangente em diversos aspectos, ainda carece de uma normatização específica sobre o assédio moral. Neste cenário, tem-se que a Convenção nº 190 tem sido considerada, desde já, pela corte superior trabalhista, como um instrumento jurídico crucial, independentemente de sua ratificação, ao definir a violência e o assédio no trabalho e reconhecer a gravidade de atos reiterados e isolados, o que amplia a proteção aos trabalhadores. A ratificação dessa convenção no Brasil representaria um avanço significativo na garantia de um ambiente laboral seguro e digno, alinhando o país às práticas internacionais e reafirmando o compromisso com os direitos fundamentais dos trabalhadores.

Autores

  • é sócia e advogada no escritório Pádua Faria Advogados na área de Direito do Trabalho, graduada e mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), especialista em Gestão de Pessoas pelo Instituto de Pesquisas e Educação Continuada em Economia e Gestão de Empresas, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz - Universidade de São Paulo e pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto (SP).

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