Opinião

Sugestões para reformulação do tratamento dos internos no sistema penitenciário federal

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15 de janeiro de 2025, 15h14

1. Um resumo do trajeto que se faz atualmente

Os presídios federais foram concebidos como um microssistema penitenciário gerido pela União, com caráter transitório no cumprimento da pena para que presos com alta periculosidade permaneçam temporariamente recolhidos. É a exceção da exceção no sistema brasileiro, uma vez que as regras prisionais se colocam no limite constitucional da vedação a tratamento cruel, desumano ou degradante. Recordemos o suicídio de Elias Pereira da Silva no presídio federal de Catanduvas (SP) [1] ou o suicídio de Paulo Rogério de Souza Paz no presídio federal de Mossoró (RN) [2], exemplos do quão sensível é o tema do sofrimento imposto aos apenados do sistema penitenciário federal (SPF).

A inclusão no SPF deve ocorrer por período de no máximo três anos, sem prazo de encerramento da renovação de permanência. Normalmente a inclusão ou permanência no SPF ocorre por pedido de órgãos administrativos da segurança pública, polícias civis e MPs. O solicitante fundamenta o pedido com relatório de inteligência, para o juiz da VEP decidir, normalmente sem manifestação da defesa.

Após deferida a inclusão pela VEP, o preso vira “interno” e o Depen organiza a transferência colhendo do juiz federal corregedor da penitenciária a autorização (homologação, na verdade) para o ingresso naquela unidade. O juiz federal não tem poder de veto do ingresso por questões materiais, apenas decide questões formais segundo jurisprudência do STJ, como adequação do perfil ou alguma outra questão protocolar e administrativa sobre a quantidade de vagas, etc.

Alguns meses depois é providenciado o transporte do detento do estado de origem para a unidade prisional federal determinada pelo Depen, onde o interno fica recolhido 22 horas em sua cela, com a autorização para duas horas de banho de sol. Todo o contato com o mundo exterior é monitorado, visitas íntimas são proibidas, inclusive o parlatório com advogados é monitorado em tempo real pela central do Depen em Brasília. Não é permitido contato físico com os familiares (visita social) e normalmente o preso é transferido para unidades prisionais longe de sua cidade natal, com a expectativa de enfraquecer todo o vínculo social do interno.

O interno só sai do sistema federal se: 1) o solicitante do juízo de origem não pedir a renovação da permanência ou ela não for deferida; 2) se não houver mais pena ou prisão provisória a ser cumprida. Por outro lado, o STJ entende que a renovação da permanência não exige demonstração de fatos novos, bastando que se mantenham as razões que deram ensejo ao ingresso, argumento que tem mantido internos no SPF por mais de dez anos [3].

2. Propostas de reconfiguração

2.1. Transparência dos elementos de prova

A reconfiguração do procedimento se inicia pela efetivação do contraditório nos momentos de prova. Normalmente os relatórios das policiais ou os pareceres do Depen são “crus”, com referência a fonte probatórias indeterminadas, seguidas de uma nova remição a relatórios de inteligência dos próprios órgãos que não acompanham os autos e a própria petição. Quando analisa, o juiz da VEP se baseia neles como se verdade fosse e normalmente sem contraditório.

O primeiro requisito para reconfigurar o SPF seria instaurar uma mini-instrução em contraditório, exigindo que o solicitante apresente o pedido fundamentado baseado em elementos de prova concretos pois a dureza do SPF assim exige, sem olvidar da possibilidade de produção de contraprovas, dentro de determinado período.

2.1.1. A importância da audiência significativa

Em termos simples, a audiência significativa consiste em uma reavaliação periódica do comportamento carcerário do indivíduo em confinamento solitário. Essa reavaliação, conduzida em um processo judicial, visa determinar se a manutenção da medida extrema ainda se justifica. Diversos tribunais e organismos internacionais de direitos humanos têm reconhecido a importância da audiência significativa como salvaguarda contra a arbitrariedade e a aplicação desproporcional do confinamento solitário.

A audiência significativa seria a oitiva do próprio preso, em audiência, com a garantia de defesa técnica perante um órgão jurisdicional. Esse procedimento assegura a individualização da pena e a consideração de fatores relevantes, como a interação social, as condições materiais da cela, a temporalidade da medida, o perfil criminal do indivíduo e a presença de motivos determinantes e fatos novos que possam comprometer a segurança prisional.

Em conclusão, a audiência significativa assume um papel central na proteção dos direitos dos presos submetidos ao confinamento solitário prolongado. Assegurar a realização de audiências periódicas, justas e transparentes, com a participação do preso e a garantia de defesa técnica, é fundamental para garantir o respeito à dignidade humana e evitar abusos no sistema carcerário.

2.2. Necessidade de certeza sobre a permanência do vínculo criminoso

A segunda proposta está neste campo fático: a renovação precisa demonstrar que o tempo em que o interno ficou preso não foi suficiente para afastar os riscos que justificaram o ingresso. O preso é monitorado o tempo inteiro, então esta prova está ao alcance do órgão e deveria ser pressuposto para manutenção do preso. Um exemplo: só pode permanecer internado por um novo período se o interno continuar praticando crimes ou permanecer vinculado à organização criminosa.

A interpretação do STJ sobre o tema é de que seria necessário demonstrar a permanência dos motivos, o que na prática foi tornado equivalente à manutenção dos motivos para o ingresso, permitindo a renovação sucessiva e indefinidamente, até porque os estados de origem não têm interesse em receber novamente os presos com a etiqueta de preso do sistema federal.

A exigência deveria ser outra: só “persistem” os motivos para permanência se houvesse fato novo, sob pena de reconhecer que todo o período em que o interno permaneceu no SPF não teve efeito dissuasório. Agora, se a situação estiver a mesma em relação ao ingresso, ou pior, como no caso em que o preso continua praticando crimes dentro do SPF, aqui a permanência se justifica ou até demanda o RDD, se for o caso.

Como consequência desse entendimento, a transferência de diversos presos, de maneira açodada, provoca o desvirtuamento do perfil do preso concebido para o SPF, cujas consequências, além de não propiciar a desarticulação da organização criminosa, acaba, ao final, produzindo maiores problemas para o sistema prisional do estado quando do retorno dos mesmos, visto que ganham status de liderança, em um verdadeiro fenômeno de “popularização do preso federal” que entra em contato com reais lideranças de organizações criminosas dentro do SPF [4].

2.3. Sistema de duplo controle: repensando a competência do juiz corregedor

A terceira proposta de reconfiguração é reinterpretar a competência do juiz federal corregedor do presídio, autorizando que ele possa decidir materialmente sobre os pedidos. Não há por que temer o duplo juízo de controle sobre a necessidade do ingresso no SPF, eis que este juiz é quem convive o dia a dia dos presos federais e tem conhecimento profundo sobre quem está lá e em quais condições está custodiado.

Retirar do juiz corregedor federal o juízo decisório sob os aspectos materiais da decisão de inclusão e renovação da permanência no SPF é um aspecto de reforço à comprovação da necessidade e não deve ser temido. No parágrafo único do artigo 2º da Lei nº 11.671/08 claramente aumentou-se a competência do juiz federal corregedor dos presídios na análise dos casos de renovação e permanência. O juiz federal corregedor tem competência para decidir incidentes relacionados à execução da pena, ou seja, houve um acréscimo de competência que antes não era previsto.

O juiz federal corregedor tem parâmetros de comparação concretos e mais apurados que o juiz estadual solicitante, especialmente por conhecer outros pedidos feitos por outros órgãos do país e os critérios utilizados, podendo saber quando há ou não exagero na medida pleiteada. O juiz federal corregedor consulta os setores de inteligência prisional, tanto dos estados, quanto da União (por intermédio do Depen), e exerce a fiscalização da rotina prisional cumprida pelos internos (artigo 8º da Lei nº 11.671/08) [5].

Neste aspecto, o duplo controle é até necessário porque existe um pano de fundo grave, identificado no relatório da CGU [6], onde os estados de origem pressionam os servidores do Depen para elaborar relatórios favoráveis à permanência ou inclusão no SPF.

Na página 27 do documento oficial, nenhum dos servidores do Depen entrevistados disseram “nunca”, ou seja, todos já sofreram pressão indevida e a frequência desta pressão é: 50% relatam que às vezes sofreram algum tipo de pressão externa para direcionamento na opinião sobre a permanência, sendo que destes, 33,3% relataram sofrer pressão “muitas vezes”. Portanto, o sistema de duplo controle material, em que juiz estadual e juiz corregedor federal avaliam e decidem sobre a inclusão ou permanência é a medida adequada para minimizar os vieses dos relatórios elaborados pelo Depen.

A nota técnica da Defensoria Pública da União ao “pacote anticrime” (PL 882/19) tratou do tema e foi categórica em identificar que muitos presos no SPF, cujas transferências ocorreram há muitos anos, passam sistematicamente pela renovação da permanência sem que haja a devida preocupação da autoridade solicitante em fundamentar a necessidade da renovação.

2.4. Perspectiva de saída do SPF

Em quarto lugar, devemos recuperar a ideia de que a lógica do sistema penal está amparada em incentivos. Alcançando a fração penal em decorrência do cumprimento da pena, bem como reconhecido pelo diretor da unidade prisional federal Do bom comportamento carcerário do interno a progressão deve ser declarada pelo juiz corregedor para o regime menos rigoroso, ainda que negado seu retorno pelo juízo de origem, excluindo-se o preso do SPF. Nada impede que caso os motivos reapareçam o preso seja novamente incluído no SPF com todo seu rigor.

Além disso, existe uma outra alternativa que seria menos lesiva ao preso em relação ao que acontece hoje: dever-se-ia conceder formalmente a progressão de regime pelo juiz corregedor federal, cuja consequência estaria no fato do interno, ainda que mantido em penitenciária federal, passar a gozar do status e tempo de pena em regime menos rigoroso. Portanto, ao retornar ao juízo de origem, estaria apto a, imediatamente, ingressar no regime prisional o qual já implementara os requisitos legais, ao tempo em que custodiado no SPF.

2.5. Humanização do contato com os familiares

Em quinto lugar, a questão do contato social com a família, através de videoconferência com barreiras arquitetônicas, é cruel e viola não só a dignidade do preso mas também de sua família. O fato de visitar o familiar no presídio já é extremamente doloroso, mas no SPF a intimidação ambiental com protocolos rígidos e tempo curto de visitação tornam a situação ainda mais dramática. Existe um mínimo essencial que o Estado não pode atingir, que é o direito de abraçar um filho ou a esposa presencialmente, e não simplesmente abanar por videoconferência, ou seja, não é difícil ver que a pena passa da pessoa do condenado, conforme reconheceu o ministro Fachin na ADPF nº 518.  A visita de crianças e adolescentes em estabelecimento penal federal fica restrita ao contato visual com seus pais, visto que as únicas opções vigentes, por expressa previsão legal, para os casos de ingresso em razão de segurança pública, impedem o contato físico (visita em parlatório ou virtual) entre os visitantes e a pessoa privada de liberdade.

2.6. Constrangimento situacional ao direito de defesa

Sexto lugar: todos os parlatórios são monitorados em tempo real e gravados pelo Depen em Brasília. O advogado não tem contato direto como preso e sofre um constrangimento situacional quando vai visitar seu cliente, com medo de ser mal interpretado e prejudicar o cliente ou acabar preso injustamente. Existem advogados criminosos? Existem, mas esses devem ser presos e perseguidos individualmente, não sendo admissível o monitoramento indiscriminado de todos, presumindo que haverá transmissão de informações do preso para a facção via advogado.

3. Conclusões

São propostas para repensar o modo de tratamento dos presos no SPF que deveriam passar por questões de lege ferenda, embora seja possível criar analogias dentro da própria lei dos presídios federais a partir do rito ordinário e da interpretação constitucional das regras vigentes até então. Mas o crucial é compreender que essas medidas não terão efetividade se não for admitida a legitimidade ativa da defensoria pública da União para proposição de ações de controle concentrado no STF, eis que é esta honrosa instituição que está na linha de frente e conhece com detalhes as mazelas das “internações”, cujo sentido remete às práticas de manicômio e o internamento para fins terapêuticos. O HC coletivo é uma medida importante que tem sido admitida pela 2ª Turma do STF, mas encontra resistência na jurisprudência dos tribunais.

Uma sugestão é interpretar a competência destes HCs através de analogia com as regras do conflito de competência dos artigos 102, I, ‘o’, 105, I, ‘d’, 108, I, ‘e’, 125, caput, todos da Constituição Federal, quando os potenciais pacientes estiverem submetidos a mais de uma comarca ou subseção judiciária, exigindo-se apenas que na petição de HC coletivo seja indicada a coação ou ameaça de coação à liberdade de locomoção potencialmente compartilhada pelos pacientes a partir de uma violação ao ordenamento jurídico comum que possibilite a identificação do grupo de beneficiários, cuja quantidade específica ou identidade particular é indeterminada.

 


[1]     https://oglobo.globo.com/rio/cartas-de-despedida-sao-encontradas-na-cela-do-traficante-elias-maluco-24656178 >

[2]     https://extra.globo.com/casos-de-policia/corpo-de-traficante-mica-encontrado-morto-em-presidio-federal-chega-ao-rio-nesta-quarta-feira-24371848.html >

[3]     https://extra.globo.com/casos-de-policia/traficante-marcinho-vp-conta-em-livro-que-cabral-pediu-ajuda-durante-campanha-21626214.html >

[4] Neste sentido, Hélio Roberto C. de Oliveira (2020, p. 17)

[5] CESTARI, Daniel Pheula. e LOVATTO, Daniel Correa. Sistema Penitenciário Federal. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021, p.239.

[6]     Disponível em: < https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/download/1004195 >

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