Opinião

Meta, o tecnofeudalismo e o Constitucionalismo Digital

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  • é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj mestre em Direito Público pela Unisinos vice-diretor financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

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  • é doutor em Direito pela PUC-SP doutor e mestre em Bioética pelo Cusc professor de Direito Constitucional da PUC-Campinas professor de Bioética do Hiae presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP diretor da Sociedade Brasileira de Bioética e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

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15 de janeiro de 2025, 6h03

A recente alteração da política de verificação de autenticidade de fatos da Meta, que operacionaliza o Instagram, o Facebook e o Threads, chamou a atenção para um fenômeno: instituições privadas sendo utilizadas como longa manus de um Estado Nacional para influenciar institucionalmente em outros Estados Nacionais.

Ao menos foi isso que ficou claro no vídeo postado por Zuckerberg, especificamente ao anunciar que a Meta pretende trabalhar em conjunto com o governo norte americano para influenciar outros Estados Nacionais a não violar a liberdade de expressão por meio de censura. Dentre estes estariam países da América do Sul, que teriam tal conduta por meio de “tribunais secretos”.

Na ausência de decisões de outros tribunais da região sobre redes sociais, no sentido pretensamente apontado por Zuckerberg, parece que a menção ao STF é clara. Isso deixa claro que um dos objetivos da alteração de política da Meta, uma empresa norte-americana, é causar efeitos em normatizações e posturas judiciais no Brasil.

Aqui, se quisermos ousar, podemos falar em uma espécie de tecnofeudalismo (aquele falado por Cédric Durand e Yanis Varoufakis, de que se trata de uma nova forma de organização econômica e social, surgida na medida em que o capitalismo tradicional cede espaço para uma estrutura mais parecida com o feudalismo, mas que conta com o aparato tecnológico contemporâneo) de Estado. Na concepção tradicional de feudalismo, o poder residia no detentor da terra. Agora, no capitalismo, o poder reside nas mãos de quem detém os meios de produção, que extraem a renda de forma direta a partir do trabalho de quem não os detém.

Portanto, na concepção materialista histórica, o capitalismo possui três pilares: poder nas mãos dos detentores dos meios de produção, lucro e mercados. Importante guardar isso.

Spacca

Para Varoufakis, as grandes plataformas mudaram isso, visto que deixaram para trás o conceito de mercados, pois já não o são, parecendo mais com feudo, dado que apenas conecta compradores com vendedores. Isso parece soar quase como uma descrição perfeita de uma plataforma como a Amazon ou como o Mercado Livre. Mas o mesmo ocorre com as redes sociais, que nada mais são do que grandes concentradores das informações fornecidas pelos usuários, que são comercializadas em troca de pecúnia, diretamente, ou de engajamento e mais informações de outros usuários. Afinal, as informações lá depositadas são consumidas pelos demais utilizadores das redes sociais.

O dono da plataforma extrai sua renda não mais do lucro gerado pela mais valia do trabalhador, daquele que vende sua força de trabalho, mas de uma espécie de aluguel do espaço em que ocorre o comércio, inclusive das informações, como nas redes sociais. O poderoso dono deste feudo contemporâneo é o único que extrai renda desta operação.

Nos mercados tradicionais há reuniões de pessoas que realizam trocas voluntárias, ao passo que nas plataformas o senhor feudal cobra sua taxa a cada transação realizada em seus domínios. E, para que isso seja possível e eficiente, o senhor feudal, por meio do algoritmo, também determina o que será ofertado ao usuário e, consequentemente, o que este pode consumir.

Exatamente nessa escolha de quais informações serão ofertadas ao usuário é que reside um sério perigo para a democracia. Não se trata de censura ou liberdade de expressão, mas de responsabilização de quem aufere lucro com condutas vedadas pelo ordenamento. Afinal, da mesma forma que ocorrida e ainda ocorre com a imprensa tradicional, as redes sociais transmitem e circulam informações. Não se trata de apenas espraiar opiniões (que também podem ser ofensivas ao direito posto), mas de apontar informações falsas como verdadeiras e espalhá-las. São as chamadasfake news.

Os sapos morrem de verdade

Aqui há a necessidade da entrada em cena do conceito de Constitucionalismo Digital, que produz uma revisão crítica sobre a própria estrutura do constitucionalismo. Entre nós, o tema já foi muito bem tratado (Por todos, vejamos Ilton Norberto Robl Filho e Ingo Wolfgang Sarlet). Isso, com vistas a aplacar a manifestação de um tecno-autoritarismo, tratado de forma aguda por Gabrielle Bezerra Sales Sarlet e Ingo Wolfgang Sarlet, que por si só renderia uma outra análise, com viés um pouco diferente.

A preocupação com os riscos anunciados da ausência de checagem de fatos não se trata de mera ficção científica. Um único caso é significante para motivá-la: o massacre da minoria rohingya em Mianmar, que ocorreu em 2016-17. Os rohingyas são habitantes muçulmanos no oeste de Mianmar e, desde 1970, sofrem discriminações e violências da maioria budista. Após um longo período ditatorial, o processo de redemocratização no início dos anos 2010 deu esperanças à minoria de que poderiam viver dias melhores com redução da perseguição. Todavia, o que ocorreu foi um drástico aumento da violência contra a minoria, com a morte de milhares de civis desarmados, estupro de cerca de 60 mil mulheres rohingyas, bem como a expulsão de cerca de 730 mil rohingyas do país, com o ódio fomentado por fake news e propaganda contrária aos rohingyas disseminadas pelo Facebook [1].

Ainda que as postagens fossem criadas por pessoas identificáveis, foram os algoritmos sem checagem de fatos e tendenciosos a promover conteúdo de ódio que estimularam a circulação de tais informações. Anistia Internacional, por exemplo, descobriu que os algoritmos do Facebook proativamente amplificaram e promoveram conteúdos na plataforma que “incitavam a violência, o ódio e a discriminação contra os rohingyas” [2], e a ONU concluiu que o Facebook desempenhou papel determinante na campanha de limpeza étnica contra os rohingyas [3].

O exemplo é grave e suficiente para demonstrar como o discurso propagado por redes sociais não pode ser amplamente tutelado a título de “liberdade de expressão”, e o simples mecanismos de checagem pela “comunidade de usuários” não é suficiente para impedir os impactos reais que decorrem da circulação de tais dados — circulação que, no intuito de obter mais likes, pode ainda ser artificialmente amplificada, como no caso dos rohingyas. Há riscos a pessoas e comunidades vulneráveis, a preceitos essenciais à sociedade, como saúde, segurança e educação, e à própria democracia. E, se toda expressão é livre, então o Direito enfrentará um grave problema autoimune: a proteção da liberdade de expressão que irá contra os demais direitos fundamentais — algo que, há muito, o Supremo Tribunal Federal já havia demonstrado no caso Ellwanger.

E, muito embora possam soar apenas postagens, palavras e mensagens que deixarão de circular sem efeitos, elas impactarão o mundo fático e os direitos fundamentais de pessoas reais. É como no poema de Erich Fried, poeta austríaco que deixou seu país para fugir do nazismo: “Os jovens/jogam/por diversão/pedras/nos sapos//Os sapos/morrem/de verdade” [4].


[1] MYINT-U, Thant. The hidden history of Burma: Race, Capitalism, and the crisis of Democracy in the 21st Century. Nova York: W. W. Norton, 2020, p. 165.

[2] ANISTIA INTERNACIONAL. The Social Atrocity: Meta and the Right to Remedy for the Rohingya. Londres: Amnesty International, 2022, p. 7. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/asa16/5933/2022/en/

[3] ZALEZNIK, Daniel. Facebook and GenocideHow Facebook contributed to genocide in Myanmar and why it will not be held accountable. Harvard Law School – Systemic Justice Program: 2021. Disponível em: https://systemicjustice.org/article/facebook-and-genocide-how-facebook-contributed-to-genocide-in-myanmar-and-why-it-will-not-be-held-accountable/

[4] FRIED, Erich. Humorlos. In: Gedichte. Stuttgart: Reclam Universal-Bibliothek, 1993. Tradução livre. No original: “Die Jungen/werfen/zum Spaß/mit Steinen/nach Fröschen//Die Frösche/sterben/im Ernst”

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