Garantias do Consumo

Fase pré-processual e ação judicial: entendendo os caminhos do artigo 104-A do CDC para os endividados

Autor

  • é procurador do estado do Espírito Santo mestre em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de diversos cursos e autor de diversas obras jurídicas tendo atuado como assessor do relator no Senado do projeto de lei do superendividamento.

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15 de janeiro de 2025, 8h00

A redação do artigo 104-A do Código de Defesa do Consumidor (CDC), introduzido pela Lei nº 14.181/2021, trouxe uma importante inovação ao prever duas opções para o consumidor superendividado: requerer um processo de repactuação de dívidas na fase pré-processual, por meio dos Núcleos de Apoio ao Superendividado, ou ajuizar diretamente uma ação de repactuação no âmbito judicial.

Essa dualidade, apesar de ampliar as possibilidades de proteção ao consumidor, tem gerado uma confusão interpretativa que afeta a aplicação prática da norma, prejudicando a eficácia do tratamento do superendividamento.

É sabido que a Comissão de Juristas que elaborou as diretrizes da Lei nº 14.181/2021 tinha como objetivo principal a implementação de um modelo prioritariamente pré-processual. A ideia era que os consumidores fossem atendidos por equipes multidisciplinares nos Núcleos de Apoio ao Superendividado, como os Cejuscs, com audiências conciliatórias realizadas extrajudicialmente, sem a necessidade de formalidades judiciais ou representação por advogado.

Esse modelo visava promover soluções rápidas, acessíveis e de baixo custo, alinhadas à realidade de consumidores vulneráveis. Contudo, a redação final do artigo 104-A não tornou obrigatória a fase pré-processual, deixando claro que o consumidor pode optar diretamente pelo ajuizamento da ação, inaugurando um procedimento processual. Essa possibilidade trouxe à tona um conflito de interpretações que, em muitos casos, prejudica o próprio consumidor.

Entender o contrário, ou seja, interpretar que a fase pré-processual seria um passo obrigatório antes do ajuizamento da ação judicial, implicaria retirar do consumidor seu direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário. Isso equivaleria a condicionar o exercício desse direito à participação em uma etapa conciliatória prévia, transformando um mecanismo facultativo em uma exigência inédita no ordenamento jurídico brasileiro.

Essa interpretação não apenas contraria a redação clara do artigo 104-A, mas também poderia inviabilizar a proteção efetiva ao superendividado, especialmente em comarcas onde os núcleos especializados ainda não foram implementados. Nessas localidades, restaria ao consumidor apenas a possibilidade de ajuizar a ação judicial diretamente, reafirmando a importância de se garantir a plena liberdade de escolha prevista na legislação.

Uma das consequências mais preocupantes dessa confusão é o indeferimento, por parte de alguns magistrados, de pedidos de tutela antecipada apresentados em ações de repactuação.

Leonardo Garcia, procurador

Muitos juízes têm argumentado que, no modelo pré-processual, não cabe a concessão de tutelas de urgência, como a limitação de descontos em folha ou a suspensão de cobranças e execuções, sob o pretexto de que a fase inicial seria conciliatória e não contenciosa.

Esse raciocínio ignora o fato de que, ao optar pelo modelo processual, o consumidor já se encontra submetido às regras do Código de Processo Civil, que permitem a concessão de tutela de urgência sempre que presentes os requisitos do artigo 300 do CPC. Essa postura equivale a tratar a ação judicial como se ainda estivesse no âmbito extrajudicial, negando ao consumidor superendividado o acesso a medidas essenciais para evitar o agravamento de sua situação financeira enquanto aguarda a conclusão do processo.

Paradoxo

A confusão também gera contradições práticas graves. Em diversas situações, consumidores que ajuizam a ação de repactuação têm seus pedidos de gratuidade da justiça indeferidos, sendo intimados a pagar custas processuais prévias. Essa exigência só faz sentido no modelo processual, uma vez que, no pré-processual, não há custas ou necessidade de representação por advogado.

O problema surge quando, mesmo reconhecendo que se trata de uma ação processual, o magistrado indefere a gratuidade sem considerar que o superendividamento é, por si só, uma evidência de insuficiência financeira. Esse paradoxo, além de contraditório, compromete o objetivo maior da Lei do Superendividamento, que é permitir que o consumidor acesse os mecanismos de repactuação sem ser ainda mais onerado.

É crucial que essa confusão interpretativa seja resolvida para que o consumidor possa exercer plenamente as opções previstas no artigo 104-A. Se optar pelo modelo pré-processual, ele não precisará pagar custas processuais, não terá obrigação de estar assistido por advogado e poderá buscar um acordo nos Núcleos de Apoio ao Superendividado.

Por outro lado, ao escolher o modelo processual, o consumidor deverá estar representado por advogado ou defensor público, terá que solicitar a gratuidade da justiça, se necessária, e poderá se valer das ferramentas processuais previstas no CPC, como a tutela antecipada para proteger seu patrimônio e garantir o mínimo existencial durante o andamento da ação.

O reconhecimento e a correta aplicação dessas duas opções são essenciais para a efetividade da Lei do Superendividamento e para a proteção dos consumidores em situação de vulnerabilidade financeira.

Autores

  • é procurador do estado do Espírito Santo, mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, diretor do Brasilcon, membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, autor do livro Lei do Superendividamento Comentada e Anotada (Editora Juspodivm, 2024).

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