Direto do Carf

Admissibilidade de recurso especial: uma “varinha mágica” chamada matéria de ordem pública

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15 de janeiro de 2025, 8h00

Antes de mais nada, é uma grande alegria passar a compor o time de colunistas da Direto do Carf, ao lado de profissionais que eu tanto admiro. E, na minha estreia, escolhi falar sobre um assunto que é fonte de muita polêmica: a admissibilidade de recurso especial. Por se tratar de matéria ampla e repleta de exemplos concretos, dividiremos nossas considerações em mais de um artigo. Nesse primeiro, abordaremos aspectos introdutórios do tema e, em seguida, nos debruçaremos sobre a admissibilidade de recurso especial envolvendo matéria de ordem pública.

Introdução

Nos termos dos artigos 37, §2º, II, do Decreto nº 70.235/72 e 118 do Regimento Interno do Carf, aprovado pela Portaria MF nº 1.634/23 (Ricarf), cabe às turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) julgar recurso especial interposto contra acórdão que der à legislação tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra Turma ou Câmara.

O recurso especial deve ser dirigido ao presidente da Câmara vinculada à Turma que prolatou a decisão recorrida, que, em despacho fundamentado, irá admitir o recurso, admitir parcialmente, caso verse sobre mais de uma matéria, ou não admitir, isto é, negar seguimento, na hipótese de estarem ausentes um dos pressupostos de sua admissibilidade. Caso seja negado seguimento ou dado seguimento parcial, poderá o recorrente interpor agravo dirigido ao presidente da CSRF, que, em despacho fundamentado, acolherá ou rejeitará, total ou parcialmente, o agravo.

Após a intimação da parte contrária para apresentar contrarrazões, as matérias admitidas são submetidas à CSRF, que, antes de adentrar ao mérito do recurso especial, realiza novo juízo de admissibilidade — oportunidade na qual, ainda que o despacho de admissibilidade do presidente da Câmara ou o despacho de agravo tenham dado seguimento ao recurso, o colegiado pode dele não conhecer. Na hipótese de os julgadores da CSRF não conhecerem do recurso especial, a decisão será irrecorrível, salvo a possibilidade de oposição de embargos de declaração caso a decisão contenha obscuridade, omissão ou contradição.

No exame de admissibilidade do recurso especial, são analisados, basicamente, três pressupostos: (1) tempestividade; (2) prequestionamento; e (3) divergência interpretativa.

Primeiro pressuposto de admissibilidade: tempestividade

No que se refere à tempestividade, o prazo [1] para o sujeito passivo e para a Fazenda Nacional [2] interporem recurso especial é de 15 dias contados da data de ciência da decisão recorrida. Eventuais embargos de declaração opostos tempestivamente, isto é, no prazo de 5 dias da ciência do acórdão embargado, interrompem o prazo para a interposição de recurso especial [3]. O recurso especial intempestivo não será admitido, cabendo, entretanto, agravo caso contenha preliminar expondo os motivos de fato ou de direito que fundamentam sua tempestividade [4].

Segundo pressuposto de admissibilidade: prequestionamento

O prequestionamento implica a obrigatoriedade de o recorrente demonstrar que as matérias recorridas foram enfrentadas no acórdão ou, ainda no despacho que rejeitou os embargos opostos tempestivamente ou no acórdão de embargos [5]. Aqui cabe uma observação importante: matéria recorrida é diferente de tese ou infração. Uma mesma infração pode se desdobrar em diversas matérias, que, por sua vez, podem comportar várias teses [6] – esse tema será melhor explicado oportunamente, ao tratarmos da admissibilidade de recurso especial em matérias que, por sua natureza, se desdobram em diversas teses.

Terceiro pressuposto de admissibilidade: divergência interpretativa

A divergência interpretativa é, sem dúvidas, o pressuposto de admissibilidade mais polêmico. Nos termos do Ricarf, a divergência deve ser demonstrada “analiticamente, com a indicação dos pontos nos paradigmas colacionados que divirjam de pontos específicos no acórdão recorrido[7]. Os casos confrontados, entretanto, não precisam ser idênticos, bastando que haja similitude fática e jurídica entre eles [8].

Maria Carolina Maldonado

Cumpre ressaltar que tal similitude não precisa estar presente em todas as circunstâncias do recorrido e do paradigma. Na verificação da similitude, é preciso se atentar para aqueles aspectos, principalmente fáticos, que importaram ao Colegiado a quo na sua decisão. Em outras palavras: não se exige igualdade entre recorrido e paradigma, mas, se alguma circunstância foi relevante para a decisão contida no recorrido, é preciso que o paradigma contenha situação semelhante. Do contrário, não se poderá afirmar que os julgadores do paradigma, diante daquele aspecto contido no recorrido – que, frise-se, foi indispensável para a decisão nele contida – reformariam o julgado.

Admissibilidade de recurso especial em matéria de ordem pública

O tema “matéria de ordem pública” não é inédito nesta coluna. Ludmila Mara Monteiro de Oliveira tratou do assunto aqui, sem, entretanto, definir o que se entende por matéria de ordem pública – o que, igualmente, não se pretende fazer no presente artigo. O importante, para os fins aqui propostos, é verificar se a jurisprudência do Carf considera a matéria de ordem pública uma “varinha mágica”, que permite o exame do recurso especial independentemente do preenchimento dos pressupostos de admissibilidade.

Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “as questões de ordem pública não estão sujeitas à preclusão e podem ser apreciadas a qualquer tempo, inclusive de ofício[9], no entanto, isso não afasta a exigência de prequestionamento [10].

No âmbito do Carf, o Manual de Admissibilidade de Recurso Especial determina que é preciso apresentar paradigma para cada uma das matérias suscitadas no recurso especial, ainda que se trate de matéria de ordem pública, sob pena de não seguimento do recurso [11]. Além disso, a jurisprudência há muito enfrenta a exigência de preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso especial quando se trata de matéria de ordem pública.

No Acórdão nº 9101-006.567, julgado em 9/5/2023, a relatora faz importantes ponderações acerca do papel desempenado pela CSRF e seu impacto no conhecimento de matérias de ordem pública: “A CSRF é instância especial vocacionada exclusivamente a dirimir divergências entre julgados deste CARF (…). Matérias de ordem pública que eventualmente até poderiam ser conhecidas de ofício por turmas ordinárias deste Tribunal não necessariamente, por isso, podem ser conhecidas pela CSRF, eis que nesta esfera agrega-se a questão acerca da competência específica desta Turma, especificamente delimitada no RICARF/2015”.

Por sua vez, no Acórdão nº 9101-006.595, julgado em 10/5/2023, a Fazenda Nacional requer a reforma do recorrido, independentemente do seguimento do recurso especial, tendo em vista a natureza de ordem pública da preliminar arguida que, no caso, consistia em preclusão das alegações do contribuinte. Nesse contexto, afirma o Relator que “o conhecimento de qualquer alegação recursal não prescinde do prequestionamento da matéria e/ou da demonstração de divergência, mesmo em se tratando de matéria de ordem pública”. No mesmo sentido, no Acórdão nº 9202-011.320, julgado em 18/6/2024, bem como no Acórdão nº 9303-010-650, julgado em 15/9/2020, reafirmou-se que o recurso especial não deve ser conhecido quando a matéria suscitada, ainda que de ordem pública, não tenha sido prequestionada.

No que se refere à tempestividade, o Acórdão nº 9101-006.776, julgado em 5/10/2023, examinou a possibilidade de análise de matéria de ordem pública – no caso, decadência – em recurso intempestivo. E, diante disso, concluíram os julgadores que as matérias de ordem pública, ainda que possam ser conhecidas de ofício, exigem a presença dos pressupostos de admissibilidade e, sendo intempestivo o recurso, o tema não pode ser examinado, “porque não se ultrapassou sequer a fase de conhecimento do recurso”. Note-se que o caso não versava sobre tempestividade como pressuposto de admissibilidade de recurso especial, mas as considerações do relator se amoldam perfeitamente à hipótese.

Aqui, cabe uma importante ressalva: embora a jurisprudência atual não dispense a verificação dos pressupostos de admissibilidade quando se trata de matéria de ordem pública, por óbvio que o próprio reconhecimento de uma matéria como sendo de ordem pública ou os seus efeitos podem ser o objeto da divergência interpretativa. Foi o que ocorreu, por exemplo, no Acórdão nº 9101-007.077, julgado em 06.08.2024, no qual a matéria conhecida foi “ausência de preclusão de matéria de ordem pública”. E, nesse contexto, uma vez conhecido o recurso especial para sanar a divergência, os julgadores terão competência para aplicar todos os efeitos decorrentes da matéria de ordem pública.

A declaração de voto apresentada no já citado Acórdão nº 9202-011.320 foi além. De acordo com a conselheira, ainda que a matéria de ordem pública não seja o objeto da divergência interpretativa, admite-se, excepcionalmente, sua apreciação de ofício, uma vez que o recurso especial seja conhecido com relação a qualquer matéria.

Por fim, vale notar que, embora a jurisprudência atual do Carf caminhe no sentido de que a matéria de ordem pública não é uma “varinha mágica” que dispensa a verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso especial, isso nem sempre foi assim.

No Acórdão nº 9303-002.298, julgado em 18/6/2013, negou-se seguimento aos embargos, pois a matéria sobre a qual não se pronunciou o colegiado não foi objeto de prequestionamento e, em seu voto, afirma o relator que “o julgador, à exceção das matérias de ordem pública, somente pode enfrentar as questões trazidas pelas partes, e, nas instâncias recursais, quando ultrapassado o óbice do conhecimento”. A contrario sensu, pode-se concluir que a matéria de ordem pública seria enfrentada pelo colegiado independentemente do conhecimento.

No Acórdão nº 9101-002.355, julgado em 16/6/2016, os conselheiros, por maioria, acataram a nulidade alegada pela Fazenda Nacional em relação à decisão recorrida e, em razão disso, afastaram a necessidade de prequestionamento, afirmando que há “possibilidade de se analisar uma preliminar de nulidade antes mesmo de adentrar em questões de admissibilidade/conhecimento do recurso especial”. Interessante notar que o referido acórdão parte do pressuposto de que a CSRF desempenha não apenas o papel de “instância de pacificação de jurisprudência”, mas também de “revisora do ato administrativo do lançamento”.

Conclusão

A admissibilidade do recurso especial é condicionada à verificação de, basicamente, três pressupostos: (1) tempestividade; (2) prequestionamento; e (3) divergência interpretativa. E, como visto, atualmente, a jurisprudência do Carf não trata a matéria de ordem pública como uma ”varinha mágica” capaz de afastar qualquer dos pressupostos de admissibilidade.

No entanto, em acórdãos mais antigos, os pressupostos de admissibilidade foram flexibilizados frente à matéria de ordem pública. E essa alteração na jurisprudência veio acompanhada por uma evolução na compreensão do próprio papel desempenhado pela CSRF, que deixou de supostamente exercer também a função de “revisora do ato administrativo do lançamento” e passou a ser apenas uma “instância especial vocacionada exclusivamente a dirimir divergências entre julgados deste CARF”.

 


[1] De acordo com o art. 5º do Decreto nº 70.235/1972, os prazos são contínuos, excluindo-se na sua contagem o dia do início e incluindo-se o do vencimento. Ademais, os prazos só se iniciam ou vencem em dia de expediente normal no órgão em que corra o processo ou deva ser praticado o ato.

[2] Especialmente no que se refere à Fazenda Nacional, o prazo conta-se a partir da data da intimação pessoal presumida, isto é, 30 dias contados da entrega dos respectivos autos à PGFN, ou em momento anterior, na hipótese de o Procurador se dar por intimado mediante assinatura no documento de remessa e entrega do processo administrativo (artigos 23, § 9º, do Decreto nº 70.235/1972, e 7º, §5º, da Portaria MF 527/2010).

[3] Artigos 119 e 116 do Ricarf.

[4] Art. 122, I, do Ricarf.

[5] Art. 118, § 5º, do Ricarf.

[6] Sobre o tema é o seguinte excerto do Manual de Admissibilidade de Recurso Especial:

Atenção especial deve ser dada à identificação e especificação da(s) matéria(s) suscitada(s). Matéria é o ponto que o recorrente deseja rediscutir, não se confundindo com tese jurídica. Nesse passo, cada matéria pode comportar diversas teses jurídicas, que podem ser apresentadas nos paradigmas, desde que respeitada a limitação regimental (Disponível em https://carf.economia.gov.br/publicacoes/arquivos-e-imagens-pasta/manual-admissibilidade-recurso-especial-v-3_1-ed_14-12-2018.pdf, acesso em 09.01.2025).

[7] Art. 118, §8º do Ricarf.

[8] Nesse sentido, o Pleno da CSRF concluiu que “a divergência jurisprudencial deve ser comprovada, cabendo a quem recorre demonstrar as circunstâncias que identifiquem ou assemelham os casos confrontados, com indicação da similitude fática e jurídica entre eles” (Acórdão n. 9900-00.149. Sessão de 08/12/2009).

[9] AgInt no REsp n. 1.967.572/MG, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 25/4/2022, DJe de 29/4/2022.

[10] STJ – AgInt no REsp n. 1.412.613/CE, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 15/3/2021, DJe de 23/3/2021

[11] Disponível em https://carf.economia.gov.br/publicacoes/arquivos-e-imagens-pasta/manual-admissibilidade-recurso-especial-v-3_1-ed_14-12-2018.pdf, acesso em 9/1/2025.

Autores

  • é mestre e doutoranda em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), conselheira da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) do Carf, advogada licenciada, contadora e professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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